Quando foi a última vez que você leu o breve livro do profeta Jonas? 

Trata-se de um dos contos mais vívidos do Antigo Testamento, com muitos matizes exuberantes e até humorísticos (nesse sentido, como o livro de Tobias) [i]. Penso neste livro para a Quaresma porque Jonas é verdadeiramente, para nós, um modelo da graça de Deus triunfando sobre a fraqueza e o pecado humanos.

Jonas nos mostra muitas fraquezas típicas: fugir do chamado de Deus; recusar suas exigências; dormir em vez de ficar vigilante; reclamar com autopiedade; sentir raiva da vontade de Deus; ter um espírito mesquinho em relação à generosidade e à misericórdia de Deus para com os outros. Basicamente, todas as reações mais mesquinhas que podemos ter diante de Deus são demonstradas por Jonas e, ainda assim, Deus não desiste dele, mas continua a persegui-lo, continua dando-lhe a graça de se levantar novamente depois de uma queda — a graça da conversão contínua, ainda que dolorosa. 

A conversão de Jonas, além disso, não segue uma linha reta, de vitória em vitória, mas uma linha tortuosa e vacilante, do fracasso ao sucesso e ao fracasso novamente. É um homem que sucumbe mais de uma vez e parece estar, por assim dizer, descontente com o papel que Deus lhe atribuiu ou com os resultados que obteve em seu trabalho.

Ele é, dessa forma, totalmente típico de nós mesmos. Muitas vezes não gostamos do papel que nos é atribuído no drama da história. Isso me faz lembrar os testes feitos para peças ou musicais no Ensino Médio. Havia apenas alguns papéis realmente gloriosos a ser interpretados; o resto era desconexo e trivial, como os papéis de Guildenstern e Rosencrantz em Hamlet. Nós sentimos muitas vezes que recebemos as partes desconexas e triviais do drama da vida, e não as gloriosas nas quais nos gabamos de poder realmente brilhar com todos os nossos talentos.

Observe também como Jonas é lento de compreensão. Deus não o tratou gentilmente. Ele o agarra, joga-o no oceano, abandona-o na barriga de uma baleia e depois o resgata do mesmo animal. E, no entanto, depois de tudo isso, Jonas ainda não é submisso à vontade de Deus; ele ainda recalcitra contra os aguilhões (cf. At 26, 14), reclamando que os ninivitas serão poupados por causa de seu arrependimento, reclamando que sua querida mamoneira tenha sido roída por um verme. Isso faz lembrar os judeus que viram a ressurreição de Lázaro e ainda assim não conseguiram colocar sua fé em Jesus, mas planejaram sua morte.

“Jonas alegrou-se grandemente com aquela ma­moneira” (Jn 4, 6). Isso não acontece também conosco? Aqui está Jonas — cuja pregação bastante monótona (pelo menos os fragmentos registrados dela) resultou, pela graça de Deus, no arrependimento e resgate de milhares de almas — sentindo-se muito feliz com uma planta, ao invés de se alegrar por Nínive. Não nos vemos cada vez mais apegados a pequenas coisas e chateados quando não estão disponíveis — um certo tipo de chá ou café, um programa particular para o dia, as palavras amigáveis de uma certa pessoa de quem gostamos — e esquecendo as inúmeras bênçãos que Deus todo-poderoso está derramando sobre nós e nossos semelhantes todos os dias? Quantas vezes pensamos na inabitação da Santíssima Trindade na alma do justo? Se você está na graça santificante, o Pai, o Filho e o Espírito Santo fazem morada em sua alma intelectual imortal. Você é maior que o maior templo construído por mãos humanas. Do que é mesmo que estava a reclamar?

“Jonas pregando aos ninivitas”, de Gustave Doré.

Como no emocionante poema The Hound of Heaven (“O Cão do Céu”), de Francis Thompson, Deus persegue Jonas implacavelmente porque o ama e sabe que ele pode realmente mudar — ou melhor, ser mudado. Deus não permitirá que a personalidade limitada de Jonas, com suas falhas e desobediências, o domine e seja a palavra final em sua lápide. Não, em certo sentido, Jonas vai ser um santo apesar de si mesmo, porque é Deus quem realiza essa obra em nós. Como lemos nos Salmos: Ipse fecit nos et non ipsi nos — “Ele mesmo nos fez, e não nós a nós mesmos” (Sl 99, 3). Os homens não se fazem santos. É Deus quem os faz santos. Isso devemos clamar contra todo o pelagianismo manifesto e sutil de nossos tempos.

algo, no entanto, que é exigido de nós: a disposição de ser tomado por Deus e moldado por Ele; a disposição de ser barro nas mãos do oleiro. Independentemente do que quer que possa ser dito contra o velho Jonas, ele finalmente se rendeu a Deus. Por mais resmungão que fosse, ele deixou que o Onipotente o moldasse. O livro de Jonas termina com uma pergunta [de Deus: “E, então, não hei de ter compaixão da grande cidade de Nínive, onde há mais de cento e vinte mil seres humanos, que não sabem discernir entre a sua mão direita e a sua mão esquerda, e uma inumerável multidão de animais?...” (Jn 4, 11)]; não nos diz como Jonas lhe respondeu. Podemos presumir que Deus é bem-sucedido em fazer valer seu ponto de vista, e que Jonas também é controlado pela paciência divina. Ele aprende quem é Deus e o que, portanto, ele mesmo tem de ser. Deus não o abandonou até este ponto e não o abandonará agora. Jonas se tornará um santo porque não permanecerá em uma postura de resistência e rebelião, como Lúcifer, mas estará disposto a aprender e mudar.

É por isso que todos nós somos afortunados por ser homens e não anjos. Se fôssemos anjos, poderíamos ter sido Lúciferes. Se somos homens, podemos ser Jonas. Até mesmo Judas, como sabemos, poderia ter se arrependido, e sua tragédia consiste precisamente em seu fracasso em fazê-lo. Pedro, que fez algo não menos mau do que Judas, arrependeu-se e tornou-se um mártir, uma testemunha perfeita, alguém que seguiu Cristo perfeitamente. Como anjos, um ato de rebelião seria nossa morte eterna. Como homens, um ato diário de arrependimento será nossa vida eterna. Não percamos esta chance de ganhar a vida — o Senhor é um doador generoso, que prontamente dá a vida. Que a nossa oração seja como a de Jonas desde o ventre da baleia:

Quando desfalecia a minha vida,
pensei no Senhor;
minha oração chegou a vós,
no vosso santo templo.
Os que servem a ídolos vãos
abandonam a fonte das graças.
Eu, porém, oferecerei um sacrifício
com cânticos de louvor,
e cumprirei o voto que fiz.
Do Senhor vem a salvação (2, 8-10).

Amém.

Notas

  1. Foi o livro do Pe. Paul Murray A Journey with Jonah: The Spirituality of Bewilderment [“Uma Jornada com Jonas: Espiritualidade da Perplexidade”, Columba Press, 2002, sem tradução portuguesa] que primeiro me chamou a atenção para os elementos de humor em Jonas. A obra também me ajudou a perceber que, às vezes, uma reverência falsa (puritana) que temos para com a Bíblia nos impede de ver o humor genuíno presente em tantas passagens (N.A.).

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