Apesar de ter afundado na insignificância em seu lançamento inicial, a eventual ascensão de “A felicidade não se compra” [It’s a Wonderful Life, em inglês] sempre foi quase inevitável. Para começar, o filme é protagonizado por James Stewart. Além disso, como toda grande literatura de Natal, ele possui uma escuridão latente. Assim como “Um Conto de Natal”, de Charles Dickens [A Christmas Carol], ou “O Natal do Charlie Brown” [A Charlie Brown Christmas], a película fala tanto da morte das esperanças humanas como de sua renovação. E (o mais importante) seu impacto emocional aumenta, não diminui, conforme ele é revisto ao longo dos anos.

Qualquer obra tão icônica, que alcance um status tão bem estabelecido, torna-se um alvo irresistível, e a acirrada competição para apresentar a crítica contrária definitiva ao filme é agora uma sub-tradição natalina por si só. Todos os anos as pessoas escrevem seus pequenos artigos argumentando que o Sr. Potter é, na verdade, um novo urbanista; ou que Bedford Falls está cheia de bairristas e caipiras; ou que George é um narcisista tóxico; ou que foi o tio Billy quem causou a crise financeira; ou, até mesmo, que o filme é deveras deprimente e ginásios de colégios nunca tiveram piscinas subterrâneas. Todos os anos eu os leio e me divirto, sabendo que o filme os vai enterrar a todos.

No entanto, sempre houve uma crítica que achei mais difícil de ignorar: o problema de Mary. Após uma vida inteira de ambições e sonhos sacrificados e frustrados, George se vê obrigado a enfrentar a ruína e a desgraça nas mãos de seus inimigos inescrupulosos e amigos incompetentes. Neste momento, ele decide suicidar-se; e é aí que seu anjo da guarda, Clarence, é enviado para ajudá-lo. E para convencer George de que ele, de fato, teve “uma vida maravilhosa” [a wonderful life], e seria um crime jogá-la fora, Clarence mostra-lhe como teria sido a sua cidade se George nunca tivesse nascido nela. Até aqui, tudo bem.

Clarence mostra a George as vidas nas quais ele interveio num momento crítico, ou que ele moldou através das consequências de suas escolhas: o irmão que ele salvou de um afogamento na infância, o farmacêutico distraído com o próprio luto a quem ele impediu de envenenar acidentalmente uma criança, e assim por diante. Finalmente, George pede a Clarence que lhe mostre a sua mulher, Mary. “Você não vai gostar”, diz Clarence. Em sua ausência, George vê Mary, de vestuário formal e óculos, fechando a biblioteca tarde da noite. Ela havia se tornado uma solteirona. 

Além da duvidosa implicação de que o pior destino que pode suceder a uma mulher é terminar solteira como bibliotecária de uma pequena cidade, este cenário me pareceu simplesmente inacreditável. A ideia de que Mary, interpretada por uma brilhante Donna Reed, que por uma hora e meia iluminara a tela com seu carisma e calor, não teria pretendentes na ausência de George, é ridícula. O fato de ela precisar que George a resgate da solteirice, tal como seu irmão precisou ser resgatado da morte, é ofensivo. E acrescenta uma mancha ao espetáculo que Clarence apresenta. Acaso o protagonista, mesmo em seus relacionamentos mais íntimos, deve sempre e somente relacionar-se com os outros como um salvador? Com ele fora de cena — eu pensava —, Mary muito provavelmente estaria casada com Sam Wainwright, o rico fabricante de plásticos, embrulhada num novo casaco de pele e poupada de uma vida de labuta e preocupações, bem como dos humores sombrios de George.

Decerto era uma falha no filme, eu tinha de admitir, mesmo que não gostasse dos críticos que me chamavam a atenção para ela. Na melhor das hipóteses, eu poderia interpretá-la como uma insinuação sutil de que George era um herói complicado; e de que Clarence só poderia lhe mostrar uma versão da realidade que ele pudesse suportar — uma versão em que, mesmo ausente, ele não seria substituído por outro. O filme é perfeito — argumentei — precisamente porque mostra a redenção de um egoísta que se compadece de si próprio, bem como a apologia de um herói abnegado que preserva a sua casa e serve o seu povo. Em muitas histórias, estes papéis excluem-se mutuamente. Na vida, e neste filme, eles coexistem em tensão, mas sem contradição — tal a piedade e as [múltiplas] possibilidades do coração humano.

Continuo a acreditar que o filme nos brinde com essa tensão. Mas já não creio que ela esteja relacionada da mesma forma com o problema de Mary, nem mantenho a minha solução anterior para a questão. Mudei de ideia ano passado, quando tive a oportunidade de ver “A felicidade não se compra” no cinema da minha cidade. Talvez a gente repare nas coisas de uma forma diferente com o passar dos anos — este é, afinal, um dos encantos da obra. Talvez o fato de assistirmos ao filme tal como ele foi concebido para ser exibido revele realmente uma nova visão. Seja como for, deparei-me atento em um pequeno diálogo como nunca havia feito antes.

George: Mary Hatch, por que é que você se casou com um tipo como eu?
Mary: Para não me tornar uma solteirona.
George: Você podia ter se casado com Sam Wainwright, ou com qualquer outro da cidade.
Mary: Eu não queria mais ninguém da cidade. Quero que o meu filho se pareça com você.

O cenário que o mundo alternativo [sem George] nos apresenta é explicitamente prenunciado pela réplica divertida, e obviamente ridícula, de Mary: “Para não me tornar uma solteirona”. Quando me dei conta disso, esta se tornou a minha chave de leitura para a problemática cena posterior. 

Desde o início, é Mary quem escolhe George, não o contrário. Numa cena de sua infância, ela senta-se no balcão e sussurra-lhe ao ouvido: “George Bailey, vou te amar até o dia de minha morte”, enquanto George, alheio, tagarela sobre cocos. Reunidos no baile do colégio, os olhos dela fixam-se nele com o brilho amoroso e predatório de uma pantera fêmea. Ao longo de seu estranho e amargo namoro, é ela quem o persegue — tal como Barbara Stanwyck em “As três noites de Eva” [The Lady Eve], Katharine Hepburn em “Levada da Breca” [Bringing Up Baby], ou Barbra Streisand em “Essa pequena é uma parada” [What’s Up, Doc?]. Por outro lado, George é tão revoltado, tão inconformado e tão desamparado como qualquer um dos seus equivalentes [nos filmes em questão]. Trata-se de uma perseguição de idiotas recontada em tom de drama, com George interpretando o papel do idiota.

Ora, Mary pode casar-se com qualquer homem da cidade. Ela não quer. Ela quer George. Ela o mede de alto a baixo, e vê nele algo que ele próprio não consegue ver, e que talvez seja só parcialmente visível para nós. O que Mary vê nele não reflete nenhuma das formas autodestrutivas com que George vê a si próprio.

Da mesma forma, é Mary que vê o potencial na velha casa desde o início; ela que a adquire e a restaura pacientemente ao longo dos anos. É Mary que vê a corrida ao banco que se aproxima, bem como a sua solução; ela que oferece o dinheiro da lua de mel sem perder tempo em pedir permissão ou consumir-se em remorso. A vida de George é moldada por um ato característico recorrente: a adesão heroica ao dever quando as circunstâncias o exigem. Mas Mary tem uma visão mais ampla desde o início. Ela está determinada a que George lace a lua, mesmo que seja ela a única pessoa que a vê-la no céu.

É certamente agradável, mas não muito extraordinário, ser uma mulher popular e bonita que pode casar-se com um homem rico e popular, se assim o quiser. Menos comum é enxergar, com a perfeita clareza e a estranha certeza de Mary, a vida e o homem que se quer, e escolhê-los contra todo o desânimo, contra todas as suas desvantagens aparentes, e persistir com determinação diante das dificuldades. “A felicidade não se compra” é, em parte, a história de alguém que se torna, aos trancos e barrancos, contra todas as intenções e desejos, um grande homem. E Mary vê este grande homem em George desde o início, porque ela é uma grande mulher.

Ela é, tanto quanto George, uma pessoa profundamente incomum lutando contra o seu próprio destino. No mundo onde George não existe, ela não se casou não porque não pudesse, mas porque não queria. Não existe na cidade nenhum homem à altura de Mary Hatch, e ela só não faz nada porque é o que se espera dela. A sua história sem George é triste, mas não é uma história de submissão passiva às circunstâncias.

Ser escolhido, conhecido e amado por uma mulher assim não é pouca coisa. É o fato de ver Mary sem ele que destrói George a ponto de fazê-lo pedir de volta a vida, assim como é a raiva dela contra ele que o leva à fase mais desesperada de seu declínio. Quando, em seu mundo alternativo, ele persegue Mary pelas ruas, o seu grito desesperado não é: “Mary! O que é que eles fizeram com você?”, mas, sim: “Você não me conhece? O que aconteceu conosco?”. Pois se Mary não o conhece, se ela não vê quem ele é realmente, então, de fato, ele não existe mais.

Agora, após perceber isso, mesmo que eu tivesse a atenção de Frank Capra, um copo de uísque e um Martini na mão, bem como o estúdio às minhas ordens, eu não voltaria atrás para mudar a cena que outrora considerava a única grande falha num filme perfeito. É o ponto mais alto de uma grande história de amor — entre pessoas com filhos e pouco dinheiro, frustrações e fracassos vergonhosos, como muitas das grandes histórias de amor. É um reconhecimento das profundezas imprevisíveis de uma mulher muito facilmente classificada como decoração encantadora em sua própria história. Contudo, mais importante, é a reviravolta na história que Clarence conta a George. Apesar de todo o bem extraordinário e insubstituível que ele fez aos outros, o que torna a sua vida finalmente maravilhosa — inspiradora, misteriosa — é o que ela fez por ele. Afinal de contas, ele nunca se propôs a conquistar Mary Hatch.

Esta é a revelação que o coloca de joelhos, implorando por sua vida — crucialmente, ainda acreditando que estava prestes a enfrentar a ruína e a desgraça.

George: Clarence! Clarence! Ajude-me, Clarence. Ajude-me. Ajude-me. Não me interessa o que me vai acontecer. Só me leve de volta para a minha mulher e filhos. Ajude-me, Clarence, por favor! Por favor, Clarence! Eu quero viver novamente!

Todavia, quando ele regressa, não há ruína nem desgraça. Todos na cidade ouviram dizer que ele estava em apuros, e todos — as pessoas que ele serviu e salvou ao longo dos anos — entraram em ação para tirá-lo de sua situação difícil. O dinheiro apareceu mais uma vez na última hora, como se surgisse do nada, e desta vez não para salvar sua empresa, a Building and Loan, mas para o bem dele.

“Não é maravilhoso?”, diz o tio Billy. “Foi a Mary, George, foi a Mary que fez isso”.

O que achou desse conteúdo?

Mais recentes
Mais antigos