[Este texto é de 2012.]
Reconhecer como matrimônios legais as relações entre pessoas do mesmo sexo seria de fato um divisor de águas? Que impacto sobre a concepção comum de casamento e os costumes matrimoniais dos países teria esse reconhecimento?
Não se tem poupado esforços nas discussões a esse respeito. No entanto, a falta de experiência, até o momento, com o “casamento” homossexual no Brasil, não nos dá nenhuma resposta concreta. Por isso, é razoável levar em consideração a experiência canadense, já que o Canadá foi o primeiro país a reconhecer legalmente, em 2002, o “casamento” entre pessoas do mesmo sexo. Existem, é claro, sensíveis diferenças culturais e institucionais entre os dois países e, como sucede em todo e qualquer assunto público, tudo depende das ações dos protagonistas políticos e culturais de cada lugar. Isso significa, em outras palavras, que não é cem por cento seguro presumir que a experiência canadense se repetirá no Brasil. Em todo caso, ela deveria ser levada em conta. De fato, o que se tem passado no Canadá constitui a melhor evidência que temos à disposição sobre os impactos a curto prazo do “casamento” homossexual em uma sociedade democrática.
Qualquer pessoa interessada em avaliar o impacto do “casamento” homossexual na vida pública deveria investigar os seus efeitos a partir de três pontos de vista:
- em primeiro lugar, no âmbito dos direitos humanos (incluídos aí os impactos sobre os direitos à liberdade de expressão, os direitos dos pais na educação pública e a autonomia das instituições religiosas);
- em segundo lugar, da perspectiva aberta pelo “casamento” homossexual à possibilidade de se reconhecerem como matrimônios outros tipos de relacionamento como, por exemplo, a poligamia;
- por fim, no âmbito da prática social do casamento.
Impacto sobre os direitos humanos
No Canadá, o resultado formal das decisões judiciais (e da legislação consequente) que institucionalizaram o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo foi o mero reconhecimento governamental do relacionamento de tais pessoas como um verdadeiro matrimônio; os seus efeitos culturais e legais, no entanto, foram muito mais amplos. O que ocorreu de fato foi a adoção de uma nova “ortodoxia”: as relações homossexuais equivalem agora, sem restrições, ao casamento tradicional e devem, portanto, ser tratadas em pé de igualdade com ele perante a lei e a sociedade.
Como consequência disso, quem quer que rejeite essa nova “ortodoxia” é considerado um intolerante, animosamente contrário a gays e lésbicas; qualquer expressão de desacordo com a ideia de “casamento” homossexual é qualificada automaticamente de “ódio” contra uma minoria sexual; despreza-se sem piscar como mero “pretexto” qualquer oposição razoável como, por exemplo, as que embasaram argumentos jurídicos segundo os quais o “casamento” homossexual é incompatível com uma concepção de matrimônio — chamada às vezes “concepção conjugal” — que responda à necessidade que têm as crianças de crescer dentro de uma união estável, fiel e permanente [1].
Quando se passa a ver na oposição ao “casamento” homossexual manifestações de intolerância e ódio, então se torna bastante difícil suportar por muito tempo as divergências. Foi assim que no Canadá se modificaram à pressa os termos de participação na vida pública. Foram os oficiais responsáveis pela celebração de uniões civis os primeiros a sentir a dureza da nova “ortodoxia”; muitas províncias recusaram-lhes o direito de objeção de consciência a presidir celebrações de casamentos homossexuais e obrigaram-nos a desligar-se de suas funções [2]. Ao mesmo tempo, entidades religiosas como os Cavaleiros de Colombo foram multadas por se recusarem a disponibilizar suas dependências para festas de casamento [3].
O direito à liberdade de expressão
Os efeitos da nova “ortodoxia”, porém, não se limitam ao número, relativamente pequeno, de pessoas em risco de ser obrigadas a auxiliar ou presidir a celebração de um casamento homossexual; a mudança, pelo contrário, tem atingido muitas pessoas, inclusive clérigos, que desejam tornar público o que pensam acerca da sexualidade humana.
Muito do que se podia opinar antes sobre o “casamento” homossexual, agora é arriscado dizê-lo; muitos dos que persistiram abertamente em discordar tornaram-se objeto de investigação de comissões de direitos humanos e, em alguns casos, foram até mesmos processados e levados a tribunais de direitos humanos. As pessoas carentes sem boa formação e afiliação institucional têm sido, de modo particular, alvos fáceis, já que as leis antidiscriminação nem sempre são aplicadas de maneira igualitária; algumas delas foram obrigadas a pagar multas, desculpar-se e nunca mais tocar no assunto em público outra vez [4]. Entre os alvos contam-se pessoas que apenas escreveram cartas aos editores de um jornal local [5], além de ministros de pequenas congregações cristãs [6]. Um bispo católico foi denunciado duas vezes — ambas as denúncias foram revogadas — devido a comentários feitos por ele numa circular sobre matrimônio [7].
Muitas cortes de revisão começaram a tomar as rédeas nas comissões e tribunais (sobretudo depois de alguns processos mal instruídos contra o jornalista Mark Steyn e a revista Maclean’s em 2009) [8], e vêm defendendo uma compreensão mais abrangente do direito à liberdade de expressão. Em resposta aos protestos públicos que se seguiram ao caso de Steyn e Maclean’s, o Parlamento do Canadá revogou recentemente uma disposição da Comissão Canadense de Direitos Humanos que previa instrumentos legais contra os “discursos de ódio”.
Como quer que seja, o custo despendido na luta contra a maquinaria dos direitos humanos continua gigantesco: só a revista Maclean’s gastou centenas de milhares de dólares com taxas judiciais, nenhuma das quais lhe será devolvida pelas comissões, tribunais e denunciantes a que foram entregues. E casos como este podem levar até dez anos para ser resolvidos. Um pessoa comum, com poucos recursos e que porventura tenha chamado a atenção de uma comissão de direitos humanos, não tem a quem recorrer, nem mesmo às cortes de apelação; a alguém nestas condições resta apenas aceitar as advertências da comissão, pagar uma (relativamente) pequena multa e obedecer à orientação de ficar em silêncio para sempre. Enquanto estes instrumentos estiverem à disposição das comissões, das quais a nova ortodoxia não permite discordar, discutir publicamente a respeito do “casamento” homossexual significa expor-se ao perigo de ser condenado judicialmente.
Uma pressão semelhante sobre quem discorda pode ser, e é efetivamente exercida, por profissionais à frente de organizações como associações de bares, corpos docentes etc., que têm o poder jurídico de punir seus membros por condutas incompatíveis com a profissão [9]. Manifestações de discordância com a razoabilidade de tornar institucional o “casamento” entre pessoas do mesmo sexo são entendidas por esses organismos como atos de discriminação ilegal, o que abre a possibilidade de censura profissional.
Os professores constituem, em particular, um grupo de risco e muito suscetível a medidas disciplinares; com efeito, mesmo os que se manifestam contra o “casamento” homossexual apenas fora de sala de aula são acusados de criar um ambiente hostil a estudantes gays e lésbicas [10]. Por já terem assimilado a nova “ortodoxia”, a cujos olhos discordar do “casamento” homossexual é uma injusta discriminação que jamais se pode tolerar, outros grupos profissionais e associações de voluntariado vêm adotando políticas parecidas [11].
Os direitos dos pais na educação pública
A institucionalização do “casamento” homossexual mudou rápida e drasticamente os direitos parentais na educação pública. O debate sobre como abordar em classe o tema do “casamento” gay é muito parecido com a discussão sobre o papel da educação sexual nas escolas e as pretensões do governo de exercer sobre as crianças uma autoridade primária. A educação sexual, entretanto, foi sempre um assunto discreto, no sentido de que, por sua própria natureza, ele é incapaz de permear todo o currículo escolar; o “casamento” homossexual, por outro lado, é algo totalmente distinto.
Dado que um dos princípios da nova “ortodoxia” é a necessidade de tratar o “casamento” homossexual com o mesmo respeito com que tratamos o matrimônio tradicional, os seus proponentes têm se saído muito bem na hora de exigir que o “casamento” gay seja retratado positivamente em sala de aula. As reformas curriculares levadas a cabo em jurisdições como, por exemplo, a Colúmbia Britânica, agora impedem os pais de exercer o seu poder de veto em matérias referentes a práticas educacionais controversas [12].
Os novos currículos estão permeados de referências positivas ao “casamento” gay, não em uma ou outra disciplina, senão em todas. Diante dessa artimanha, a única defesa que sobra aos pais é retirar de uma vez por todas a criança do sistema público de ensino. As cortes têm se mostrado muito pouco favoráveis às reclamações dos pais: se estes estão se apegando a fanatismos fora de moda, então as crianças serão obrigadas a carregar o fardo de uma “dissonância cognitiva”, pois têm de aprender coisas conflitantes em casa e na escola, enquanto esta tenta sair vencedora.
As reformas, é claro, não foram vendidas ao público como uma maneira de implementar e reforçar a nova “ortodoxia”; ao contrário, a razão apresentada foi a urgência de combater o bullying, quer dizer, de promover a aceitação de jovens gays, lésbicas e crianças vindas de lares homossexuais [13].
É louvável querer acolher toda e qualquer pessoa; mas, independentemente do que se tenha dito, os meios escolhidos para alcançar esse objetivo constituem um grave atentado contra a família. Trata-se nada menos do que a doutrinação premeditada das crianças, sem embargo da oposição paterna, conduzidas a aceitar uma concepção de casamento que é fundamentalmente hostil ao que seus pais crêem ser bom para elas. Tudo isso subtrai aos pais o poder de transmitir aos filhos uma compreensão do matrimônio que lhes permita amadurecer e tornar-se adultos; já desde pequenas as crianças são ensinadas a desprezar a lógica do casamento e a entendê-lo como um simples meio de satisfazer o desejo que têm os adultos de encontrar um “parceiro” ou uma “companhia”.
O direito de autonomia das instituições religiosas
Num primeiro momento, os clérigos e os centros religiosos pareciam de todo imunes à obrigação de aceitar ou celebrar “casamentos” homossexuais. Com efeito, esta foi a grande promessa da legislação pró-“casamento” gay: os clérigos continuariam a ter o direito a não celebrar um casamento que lhes ferisse as convicções religiosas; as casas de culto, por sua vez, não poderiam ser contratadas sem o consentimento de suas respectivas autoridades [14].
Deveria ter ficado claro desde o começo o quão estreitas eram estas garantias. Elas apenas impediam que clérigos fossem obrigados a celebrar cerimônias matrimoniais; o que elas não protegiam da vigilância das comissões de direitos humanos, como vimos acima, eram os sermões e as circulares pastorais. As congregações tornaram-se, pois, vulneráveis a intervenções judiciais, caso se recusassem a ceder seus espaços a casais do mesmo sexo que ali quisessem celebrar seu “casamento”; o mesmo vale para toda organização que não deseje disponibilizar suas dependências para promover uma visão da sexualidade diametralmente oposta à defendida por ela.
As referidas garantias tampouco impedem que os governos municipal e provincial privem entidades religiosas de seus lucros por causa do que ensinam sobre o matrimônio. A Bill 13, por exemplo, o mesmo estatuto de Ontário que obriga colégios católicos a permitir a abertura e manutenção de clubes gays, também proíbe que escolas públicas aluguem suas instalações a quem não concorda com o “código de conduta” exigido pela nova “ortodoxia” [15]. Ora, dado que muitas congregações cristãs de pequena proporção alugam auditórios escolares para realizar seus ofícios e cultos, é bastante fácil dar-se conta de sua vulnerabilidade.
Mudanças na concepção pública de matrimônio
Tem-se argumentado que, se o “casamento” gay é institucionalizado, então se devem aceitar também novas “categorias maritais”, como a poligamia. A partir do momento em que abandonamos uma concepção conjugal do matrimônio e a substituímos por uma visão centrada na figura do “parceiro” adulto, então já não há nada mais em que nos possamos basear para resistir à expansão do estatuto de “matrimônio” a uniões poligâmicas e poliamorosas, por exemplo.
Noutras palavras, se o casamento se resume à satisfação de um desejo por “companhia”, qualquer que seja ela, e se o desejo de alguns se estende a novos tipos de configuração familiar, com que direito lhes podemos negar a satisfação desse desejo? Não é aqui minha intenção tomar partido a esse respeito; pretendo tão-somente descrever como esta situação se desenvolveu no Canadá.
Uma conhecida comunidade polígama na Colúmbia Britânica esteve fortemente envolvida na promoção do “casamento” homossexual, e saiu a público para defender que não havia razão alguma que fundamentasse a atual criminalização da poligamia no Canadá. Dentre todas as cortes do país, somente um tribunal de primeira instância na Colúmbia Britânica pôs em juízo se a proibição da poligamia tem base na Constituição nacional, e endereçou ao governo da província uma opinião prévia sobre o assunto [16].
A criminalização da poligamia foi mantida, mas sobre uma frágil base que a define em termos de contração múltipla e simultânea de vários casamentos civis. A corte, em todo caso, não abordou o fenômeno da celebração de múltiplas uniões estáveis. Por isso, as formas preponderantes de poligamia e poliamor até o momento não foram admitidas pelo direito canadense, mas nem uma nem outra encontram impedimentos na prática.
O que fica de lição é o seguinte: uma sociedade que institucionaliza o “casamento homossexual” não institucionaliza, necessariamente, a poligamia. O exemplo da Colúmbia Britânica, ainda assim, sugere que de uma à outra coisa basta um passo. Os argumentos brandidos pelos defensores da poligamia não explicam de forma convincente por que é discriminação negar às uniões homossexuais e lésbicas o rótulo de “matrimônio”, mas não o seria negá-lo aos polígamos e adeptos do poliamor. De fato, o veredito parece indicar que o problema reside no “preconceito” contra a poligamia e o poliamor, que não são um instituto jurídico estável.
O impacto na prática matrimonial
No que diz respeito à prática matrimonial, é ainda muito cedo para tirar conclusões. As informações colhidas no censo de 2011 mostram, em primeiro lugar, que o matrimônio está em decadência no Canadá, assim como em todo o resto do Ocidente; em segundo, que o “casamento” gay é, do ponto de vista estatístico, um fenômeno raro; e, por fim, que há muito poucos casais homossexuais (estejam ou não casados) que tenham crianças em casa [17].
Dentre os 6,29 milhões de matrimônios existentes no Canadá, aproximadamente 21.000 são homossexuais. Os casais do mesmo sexo, casados legalmente ou não, constituem 0,8% de todos os casais no país; 9,4% dos 65.575 de casais homossexuais (incluídos os casados civilmente e as uniões estáveis) têm crianças em casa, e 80% deles são formados por lésbicas. O Canadá deixou de contabilizar os divórcios a partir de 2008, e desde então não tem disponibilizado nenhuma informação sobre a incidência de divórcios na comunidade homossexual.
O que podemos deduzir de tudo isso é que o “casamento” gay, ao contrário do que previam os argumentos a seu favor, não tem revitalizado a cultura matrimonial no Canadá; tampouco existe, de qualquer modo, um censo ou banco de dados que forneça argumentos empíricos que permitam vincular a institucionalização do “casamento” homossexual à estabilidade matrimonial.
À falta de dados concretos (indisponíveis no Canadá) acerca das taxas de divórcios, só nos restam argumentos conceituais, que têm de ser avaliados por sua coerência. Neste caso, a experiência canadense não nos é de muita ajuda. E aqui podemos fazer-nos a pergunta: a institucionalização do “casamento” entre pessoas do mesmo sexo baseia-se numa concepção de matrimônio que prioriza a estabilidade, como o faz a concepção conjugal? Se a resposta for negativa, então podemos crer com tranquilidade que o “casamento” gay irá acelerar a aprovação cultural de uma concepção de matrimônio — o modelo do “parceiro” adulto — que vem fazendo muito mal à sociedade ao longo das últimas cinco décadas.
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