Um dos grandes benefícios de se rezar o Ofício Divino é o contato contínuo que passamos a fazer com toda a história da salvação — contato que realmente nos toca o íntimo, como uma experiência viva, que não só acrescenta “cultura”, mas que também faz aumentar o amor a Deus e a devoção.

Essa é, na verdade, desde muito tempo, a grande diferença entre católicos e protestantes: enquanto estes se gabam de ter um cristianismo “bíblico” — principalmente através do “dogma” da sola Scriptura —, aqueles têm consciência de que sua religião nasceu muito antes da popularização dos livros

Por isso nunca houve, da nossa parte, uma “fixação” com a palavra escrita. A Igreja Católica conserva e venera a Bíblia, sim, mas ela não é uma “religião do livro”; somos também o povo da Missa e do presépio, do Terço e da Liturgia. É através desses instrumentos que entramos em contato com os mistérios da fé: na manjedoura de Belém, aprendemos que Deus se fez homem para nossa salvação e pão para nosso sustento; no Rosário, conhecemos praticamente toda a vida de Jesus; nos sacramentos, mais do que “conhecimento”, é a própria graça de Deus que nos transforma, desde a pia batismal até a Comunhão do Corpo e Sangue de Cristo.

Tudo isso faz da nossa vivência religiosa uma experiência integral, plenamente humana e “católica” (no sentido de universal): mais do que simples leitores do Evangelho, nós também ouvimos, contemplamos e apalpamos o Verbo da vida, para usar uma expressão de S. João (cf. 1Jo 1, 1). Afinal, somos chamados a servir a Deus não só com a visão e o intelecto, mas com todos os nossos sentidos e faculdades: “Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, com toda a tua força” (Dt 6, 5).

O Segundo Cântico de Moisés

“Moisés no monte Sinai”, por Jacques de Létin.

Falávamos, porém, do Ofício Divino, e digressamos. Queremos chamar a atenção de nossos leitores justamente para uma dessas pérolas que a Igreja reza em sua liturgia e que nos põe em contato com a história da salvação, ao mesmo tempo que a insere na nossa própria vida.

Trata-se do chamado “Segundo Cântico de Moisés”, que se encontra no livro do Deuteronômio (cf. 32, 1-43). Diz-se que é o segundo, porque o primeiro é o famoso hino de vitória composto após a travessia do mar Vermelho, presente em Êxodo 15, 1-19, tão importante que a Igreja chega a cantar na própria liturgia da Vigília Pascal. Por estar já bem próximo do relato da morte do patriarca, esse segundo pode ser chamado também de seu último cântico. É o testamento de Moisés.

Para se ter uma ideia da grandeza desse poema bíblico, o Pe. Matos Soares o avalia como “uma das páginas mais belas da Sagrada Escritura. Mesmo sob o ponto de vista literário não se encontra composição comparável em qualquer literatura humana”.

Na Liturgia das Horas atual, esse cântico é rezado nas Laudes do Sábado da II Semana do Saltério, numa versão bastante abreviada, indo dos versículos 1 a 12. Compartilhamos a tradução litúrgica do Brasil abaixo:

Ó céus, vinde, escutai; eu vou falar,
ouça a terra as palavras de meus lábios!
Minha doutrina se derrame como chuva,
minha palavra se espalhe como orvalho,
como torrentes que transbordam sobre a relva
e aguaceiros a cair por sobre as plantas.

O nome do Senhor vou invocar;
vinde todos e dai glória ao nosso Deus!
Ele é a Rocha: suas obras são perfeitas,
seus caminhos todos eles são justiça;
é ele o Deus fiel, sem falsidade,
o Deus justo, sempre reto em seu agir.

Os filhos seus degenerados o ofenderam,
essa raça corrompida e depravada!
É assim que agradeces ao Senhor Deus,
povo louco, povo estulto e insensato?
Não é ele o teu Pai que te gerou,
o Criador que te firmou e te sustenta?

Recorda-te dos dias do passado
e relembra as antigas gerações;
pergunta, e teu pai te contará,
interroga, e teus avós te ensinarão.

Quando o Altíssimo os povos dividiu
e pela terra espalhou os filhos de Adão,
as fronteiras das nações ele marcou
de acordo com o número de seus filhos;
mas a parte do Senhor foi o seu povo,
e Jacó foi a porção de sua herança.

Foi num deserto que o Senhor achou seu povo,
num lugar de solidão desoladora;
cercou-o de cuidados e carinhos
e o guardou como a pupila de seus olhos.

Como a águia, esvoaçando sobre o ninho,
incita os seus filhotes a voar,
ele estendeu as suas asas e o tomou,
e levou-o carregado sobre elas.
O Senhor, somente ele, foi seu guia,
e jamais um outro deus com ele estava.

Sobretudo a imagem final desses versículos é muito consoladora: Deus é comparado à águia, que cuida de seus filhotes como a “pupila de seus olhos”, e que chega a colocá-los sobre suas asas.

Muito belo também é o contraste entre o que Deus fez com Israel e o lugar em que Ele o encontrou. A tradução brasileira diz que o povo estava “num lugar de solidão desoladora”, mas o latim da Vulgata é ainda mais enfático: Israel se encontrava in loco horróris et vastae solitúdinis, isto é, “num lugar de horror e vasta solidão”. A palavra “horror”, em particular, nos ajuda a pôr na recitação desse versículo a nossa própria vida de pecado. Longe de Deus, nossa situação é de “solidão desoladora”, mas também de “horror”. O pecado nos desfigura, torna-nos horríveis e horrorosos. A expressão latina é forte.

No Ofício Divino antigo, esse cântico assumia um caráter ainda mais penitencial, não só porque era rezado nas Laudes dos sábados do Advento e da Quaresma, mas também por conta de seus versículos finais (infelizmente omitidos no rito atual). Trata-se dos versículos 13 a 18, que compartilhamos abaixo, na tradução do Pe. Matos Soares (e cujo conteúdo vem bastante a calhar para os nossos dias): 

Levou-o às alturas da terra,
nutriu-o com os frutos dos campos,
deu-lhe a sugar o mel (que saía) da pedra,
e o azeite (que saía) do rochedo duríssimo.
A manteiga das vacas, o leite das ovelhas,
com gordura dos cordeiros,
e dos carneiros criados em Basan, e dos cabritos,
com a flor de farinha do trigo,
e ele bebeu o mais puro sangue da uva.
Mas Jesurun engordou e recalcitrou;
tendo-se tornado gordo, cheio e nédio,
abandonou a Deus seu criador,
e afastou-se de Deus sua salvação.
Provocaram-no com deuses estranhos,
e excitaram-no à ira com as suas abominações.
Sacrificaram aos demônios e não a Deus,
a deuses que desconheciam,
deuses novos, acabados de chegar,
que seus pais não tinham adorado.
Abandonaste o Deus que te gerou,
e esqueceste-te do Senhor teu criador (Dt 32, 13-18).

Vemos neste pequeno trecho final duas partes bem distintas. 

Primeiro, Moisés continua a narrar os benefícios de Deus a seu povo, só que agora com mais detalhes: Israel foi saciado não só de modo natural — com “os frutos dos campos”, a “manteiga das vacas”, “o leite das ovelhas” e a “gordura dos cordeiros”, com carneiros e cabritos, trigo e uva —, mas também de modo prodigioso, sobrenatural, isto é, com “o mel da pedra” e o “azeite do rochedo duríssimo”. 

Depois, porém, Moisés começa a relatar a ingratidão de Israel: mesmo “gordo, cheio e nédio” — no latim, incrassátus, impinguátus, dilatátus —, Jesurun (nome poético de Israel, que significa o “justo”, empregado aqui ironicamente) “recalcitrou” e voltou as costas para Deus. A descrição do que fez o povo escolhido é pesada, mas resume-se basicamente à idolatria: “Sacrificaram aos demônios e não a Deus”. No fim, os verbos que estavam na terceira pessoa passam à segunda, e somos confrontados com nossos próprios pecados: “Abandonaste o Deus que te gerou, e esqueceste-te do Senhor teu criador”. Assim acaba o cântico no rito antigo, sem afago nem consolação. 

Eis uma meditação muito oportuna não só para este tempo quaresmal, mas para toda a nossa vida. De um lado, está a prodigalidade de Deus, que nos cumula de toda sorte de bênçãos espirituais (cf. Ef 1, 3) e, pelo Batismo, nos faz não mais hóspedes ou estrangeiros, mas “concidadãos dos santos e membros da família de Deus” (Ef 2, 19); do outro, está a nossa ingratidão, muito pior que a de Israel, pois, quanto maiores os benefícios que recebemos, maior a dívida que contraímos. 

Mesmo com todas as graças e com toda a misericórdia que recebemos de Deus, nós teimamos em lhe voltar as costas e, cedendo aos pecados, sacrificamos aos demônios. Apesar de, no clima atual de indiferentismo e relativismo religioso, essas palavras guardarem o seu sentido literal estrito, também nós precisamos considerar pessoalmente que, todas as vezes que consentimos no pecado, é com os demônios que estamos tratando. Nas palavras de Santo Tomás, tentari humanum est, sed consentire diabolicum: “Ser tentado é humano, mas consentir é diabólico” (Exp. in orat. dom., a. 6).

É Quaresma; é tempo de nos arrependermos de nossos pecados e buscarmos a Deus de coração contrito e humilhado. Isso vale muito mais aos seus olhos do que os sacrifícios externos que fazemos (cf. Sl 50, 18-19). Deixemos que calem em nossos corações as palavras severas do testamento de Moisés: Abandonaste a Deus; esqueceste-te dele

Sim, reconheçamos, não neguemos: sou eu o filho gordo e ingrato do cântico de Moisés; fui eu que dei as costas a Deus e sacrifiquei aos demônios; “Senhor, pequei. Tende piedade e misericórdia de mim.”

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