É um fato bem atestado que na antiguidade não existia celebração da Missa versus populum, pois todas as liturgias eram celebradas com o sacerdote voltado para o Oriente, na expectativa da segunda vinda do Senhor. Mesmo nas situações em que, por razões geográficas ou arquitetônicas, a igreja tinha de ser construída voltada para uma direção diferente, e na qual o sacerdote celebrava a Missa por detrás do altar, não se celebrava Missa versus populum, pois a assembleia se voltava para o Oriente durante o Cânon. Assim, o sacerdote e o povo ainda estavam voltados para a mesma direção. 

Portanto, apesar de algumas igrejas antigas de Roma aparentemente possuírem um projeto que facilite as liturgias versus populum (como acontece com a maioria das igrejas modernas, cujos altares são separados da parede), temos de recordar que os fiéis também se voltavam para o Oriente junto com o sacerdote. Se houvesse circunstâncias nas quais o sacerdote estivesse voltado para os fiéis, como durante a homilia, certamente isso não acontecia com o propósito de considerar a Eucaristia uma espécie de “refeição comunitária” ou celebração da comunidade; esta teria sido a última coisa com a qual os Padres teriam se preocupado.

A oração ad orientem era uma prática universal na Igreja antiga. Escrevendo no ano 740, São João Damasceno disse:

Não é sem razão ou por acaso que adoramos [a Deus] voltados para o Oriente. Mas, visto que somos compostos de uma natureza visível e de uma invisível, isto é, de uma natureza em parte espiritual e em parte sensorial, prestamos também um duplo culto ao Criador — assim como cantamos com os nossos lábios espirituais e corporais, e somos batizados tanto com água como com o Espírito, e estamos unidos ao Senhor de uma dupla maneira: pelos sacramentos e pela recepção da graça do Espírito.

Como, portanto, Deus é luz espiritual (cf. 1Jo 1, 15), e Cristo é chamado nas Escrituras de Sol da Justiça (cf. Ml 4, 2) e Sol nascente (cf. Zc 3, 8; Lc 1, 78), o Oriente é a direção à qual devemos nos voltar no culto a Ele. Pois todo bem deve ser atribuído a Ele, do qual provém tudo o que é bom. De fato, o divino Davi também diz: Regna terræ, cantate Deo, psallite Domino, qui ascendit super coelum coeli ad orientem — “Reinos da terra, cantai a Deus, salmodiai ao Senhor, que cavalga o céu do céu, no oriente” (Sl 68 [67], 33-34). Diz a Escritura: “O Senhor Deus plantou um jardim no Éden, no oriente, e pôs ali o homem que havia formado” (Gn 2, 8); e, quando este violou o seu preceito, expulsou-o e fê-lo habitar longe do paraíso (cf. Gn 3, 23), que é claramente o Ocidente. Assim, é conveniente que adoremos a Deus com desejo por nossa antiga pátria, tendo os olhos fixos nela. Além disso, a tenda de Moisés tinha o seu véu e o propiciatório voltados para o Oriente (cf. Lv 16, 14). Também a tribo de Judá, como a mais preciosa, montou a leste o seu acampamento (cf. Nm 2, 3). Também no célebre templo de Salomão a porta do Senhor foi colocada a leste. Além disso, Cristo, quando pendia na Cruz, tinha o rosto voltado para o Ocidente, e por isso nós o adoramos assim, para que pousemos nele os nossos olhos. E quando foi recebido de novo no Céu, foi levado para o Oriente, e assim os seus Apóstolos o adoram, e assim Ele virá de novo da mesma forma como o viram ir para o Céu (cf. At 2, 11). Como o próprio Senhor disse: “Assim como de repente o relâmpago sai do oriente e reluz até o poente, assim também será a vinda do Filho do Homem” (Mt 24, 27).

Assim, pois, na expectativa por sua vinda, nós adoramos [voltados] ao Oriente. Mas é dos Apóstolos esta tradição, muito embora não esteja escrita nas Escrituras. Pois muito do que nos foi transmitido pela tradição não está escrito [i].

Devemos ter em mente a posição ad orientem quando estudamos as liturgias cristãs antigas. A Missa era justamente entendida como uma celebração fundamentalmente escatológica e sacrificial, não como uma celebração comunitária. É muito interessante observar que o primeiro indivíduo na história a propor a celebração da Missa versus populum foi ninguém menos que Martinho Lutero, e que ele fez tal recomendação explicitamente com o propósito de diminuir a natureza sacrificial da Missa. Lutero escreveu o seguinte em 1526:

Os paramentos litúrgicos, altares e luzes podem ser preservados até que mudem por si mesmos, ou podemos ter o prazer de mudá-los. Porém, não interferiremos se algum deles tiver um rumo diferente nessa questão. Mas na verdadeira Missa, [celebrada] entre cristãos sinceros, o altar não deveria ser preservado, e o sacerdote sempre deveria estar voltado para o povo, tal como certamente Cristo fez na Última Ceia. Porém, devemos aguardar o momento oportuno para que isso ocorra [ii].

Estes são os dois pontos de interesse aqui: em primeiro lugar, Lutero acha que a celebração com o sacerdote “voltado para o povo” é muito mais conforme à sua doutrina sobre a Missa do que a posição ad orientem. Mas, em segundo lugar, observe que ele sustenta essa opinião apelando à disposição dos assentos na Última Ceia, onde Cristo “sem dúvida” também estava voltado para o povo.

Se Lutero estiver correto sobre a disposição dos assentos na Última Ceia, então temos aqui um excelente exemplo de arqueologismo: a prática do descarte de tradições litúrgicas muito antigas a fim de favorecer o retorno a uma suposta simplicidade apostólica. Naturalmente, o arqueologismo é falacioso, como mostrou o Papa Pio XII na Encíclica Mediator Dei, porque nega a condução providencial da Igreja pelo Espírito Santo nos desenvolvimentos tradicionais da simplicidade da Igreja antiga. Na Mediator Dei, o Papa afirma que “não é certamente coisa tão sábia e louvável reduzir tudo e de qualquer modo ao antigo” (n. 62). Foi neste sentido que Newman proferiu sua conhecida frase: “Eles estão sempre buscando uma imaginária simplicidade primitiva; nós repousamos na plenitude católica” [iii].     

Mas, por ser algo que pertence a esse argumento, deveríamos também dizer que o arqueologismo falha em outro aspecto: raramente é preciso nas descrições do que é e do que não é “apostólico”. Comunhão na mão, diaconisas, liturgias em vernáculo, Missas com o sacerdote voltado para o povo e as inúmeras inovações modernas são consideradas de origem apostólica, embora na realidade nenhuma delas seja encontrada na Igreja primitiva (ou, se há vestígios delas, como no caso dos altares separados da parede, os liturgistas modernos perdem completamente o foco em relação à razão disso). Sem dúvida este é o caso da afirmação de Lutero segundo a qual Jesus, na Última Ceia, comeu voltado para seus discípulos e, portanto, a Missa deveria ser celebrada versus populum.

“A Última Ceia”, por Leonardo da Vinci.

De onde Lutero tirou a sua ideia sobre como Jesus e os Apóstolos comeram a Última Ceia? Uma vez que o próprio Novo Testamento oferece poucas provas, foi provavelmente a partir de representações contemporâneas da era renascentista que Lutero formou a sua opinião —  trabalhos como a famosa “Última Ceia” de Da Vinci. Por causa da preocupação com a simetria, com a perspectiva, e com o estabelecimento de um ponto focal, as representações renascentistas posicionavam invariavelmente Nosso Senhor no centro da cena, mas este posicionamento era mais uma opção artística do que um cuidado com a precisão histórica. Lutero e muitos desde então usaram estas famosas representações como se fossem um reflexo do que realmente ocorreu.

Qual seria a disposição dos assentos na Última Ceia? As refeições antigas eram feitas na posição reclinada e, até onde sei, isto acontecia em todo o mundo romano, grego e semita. Os comensais reclinavam-se no cotovelo sobre almofadas colocadas num semicírculo à volta de uma mesa de servir muito pequena e circular. Todos os convidados se sentavam em torno de apenas um lado da mesa, deixando o outro lado completamente aberto para que os criados pudessem se mover livremente para servir a comida. Pode-se ver tudo isto retratado no famoso afresco de Constança, que retrata uma refeição romana secular.

Além disso, e mais importante para a nossa discussão, o chefe ou mestre do banquete não se sentava numa posição central. Na antiguidade, o centro não denotava proeminência como hoje; pelo contrário, o mestre do banquete se sentava na extremidade direita da mesa, pois a “mão direita” era o lugar mais honrado. Vemos isto em várias representações antigas e medievais da Última Ceia, sendo a mais famosa o mosaico de Santo Apolinário Novo, em Ravena, datado do início dos tempos bizantinos. Repare na disposição semicircular dos assentos com Cristo claramente à mão direita dos seus convidados:

Vemos a mesma coisa na Catedral da Natividade da Santíssima Mãe de Deus em Monreale, na Sicília, numa representação datada do período normando. Mais uma vez, vemos o arranjo semicircular com Cristo na extremidade direita, só que desta vez sentado em vez de reclinado, refletindo a mudança nos costumes gastronômicos que tinha ocorrido entre os períodos bizantino e normando.

Ícone russo do século XV retratando a Última Ceia.

Assim, as representações mais antigas da Última Ceia tendem a refletir com precisão a disposição dos lugares comuns no mundo antigo, uma pequena mesa semicircular com Cristo sentado à direita dos seus discípulos.

Ao longo do tempo, porém, o que era originalmente a pequena mesa circular no centro, cresceu e passou a dominar a cena. Ao lado, no ícone russo Ceia Mística, datado de cerca de 1497, podemos ver que a mesa cresceu tremendamente. No entanto, notar-se-á que o ícone mantém o assento semicircular com Cristo na extremidade direita do semicírculo.

Esta forma perdurou no Oriente muito mais tempo do que no Ocidente, talvez porque o Império Bizantino preservou muitos dos costumes culturais do mundo antigo por mais tempo do que o Ocidente latino. Por exemplo, os Evangelhos de Gladzor da Armênia, ilustrados por volta de 1300, ainda retratavam a antiga mesa semicircular com Cristo à direita dos seus discípulos.

A forma começou a mudar no Ocidente, no entanto, por volta de 1000 a 1100. Um momento interessante na evolução das representações da Última Ceia no Ocidente é a Última Ceia de Ugolino de Siena, pintada por volta de 1330. Nesta cena, podemos ver que Cristo mantém a sua posição tradicional no lado esquerdo da pintura (ou seja, à direita dos discípulos sentados ao longo do fundo da mesa), mas agora a antiga mesa semicircular transformou-se numa mesa retangular convencional com filas de assentos em ambos os lados. Assim, da perspectiva do espectador, Cristo mantém a sua posição tradicional, mas do ponto de vista dos discípulos, Ele está agora numa posição central na “cabeça” da mesa:

O advento da Renascença no início do século XIV — com a sua ênfase na técnica, na simetria, na proporção e na perspectiva — alterou a forma como a Última Ceia foi retratada. Em busca de simetria e foco, os artistas italianos colocaram inevitavelmente Cristo no centro; a única forma de retratar com realismo doze Apóstolos sentados à volta do Senhor foi alongar a mesa numa estrutura retangular muito longa, como na versão de Da Vinci. Isto tornou-se lentamente a norma da Renascença em diante.

Voltemos a Lutero e à Missa: estão equivocados aqueles que, citando a Última Ceia como justificação, querem pôr o altar mais perto da assembleia a fim de alcançar um arranjo mais “semelhante a uma mesa”. 

Em primeiro lugar, nenhum dos discípulos de Cristo estava em volta dele; estavam antes numa linha semicircular, um ao lado do outro. 

Além disso, eles não estavam “de frente” para Cristo, nem Ele de frente para eles. Tiveram de se virar ligeiramente num ângulo de 90° para o olharem enquanto Ele falava. 

Mas, mais uma vez, aqueles que apresentam tais argumentos não se importam realmente com o que a Igreja primitiva fez ou por que o fez; tal como Lutero, estão meramente preocupados em adotar a liturgia de acordo com as ideias modernas sobre o que são a Eucaristia e a Igreja. Em vez de tentar forçar um regresso a um passado que nunca existiu, ou voltar a um arranjo semítico de lugares para jantar que seria impraticável para grandes reuniões litúrgicas como a Missa, o melhor é simplesmente manter a Tradição da Igreja, não como foi congelada no tempo no ano 100, mas como se desenvolveu ao longo dos tempos e chegou até nós: com o sacerdote e as pessoas de frente para o Senhor, mostrando a natureza sacrificial da Missa em antecipação de seu glorioso regresso.

Terminemos com uma citação do então Cardeal Ratzinger, retirada de uma palestra que proferiu na Conferência Litúrgica de Fontgombault em 2001, intitulada “Teologia da Liturgia”:

Entretanto, o problema tem sido agravado pelo fato de o mais recente movimento de pensamento “iluminado” ir muito mais longe do que Lutero: onde Lutero ainda tomou literalmente os relatos da instituição [da Eucaristia] e os fez, como norma normans, a base dos seus esforços de reforma, as hipóteses de crítica histórica têm, durante muito tempo, causado uma ampla erosão dos textos. Os relatos da Última Ceia aparecem como o produto da construção litúrgica da comunidade; procura-se um Jesus histórico por detrás dos textos que não poderia ter pensado no dom do seu Corpo e Sangue, nem ter compreendido a sua Cruz como um sacrifício de expiação; devemos, antes, imaginar uma refeição de despedida que incluía uma perspectiva escatológica. Não só a autoridade do Magistério eclesiástico é desvalorizada aos olhos de muitos, mas também a Sagrada Escritura; em seu lugar são colocadas hipóteses pseudo-históricas mutáveis, que são imediatamente substituídas por qualquer ideia arbitrária, e que colocam a liturgia à mercê da moda. Onde, com base em tais ideias, a liturgia é manipulada cada vez mais livremente, os fiéis sentem que, na realidade, nada é celebrado, e é compreensível que abandonem a liturgia, e com ela a Igreja.

Notas

  1. Expositio de fide orthodoxa IV 12 (PG 94, 1134-1135).
  2. Deutsche Messe und Ordnung des Gottesdienstes, 1526 (WA 19, 80).
  3. John Henry Newman, Ensaio sobre o desenvolvimento da doutrina cristã (II 8, 12), trad. de Fábio A. Vitta. São Paulo: Cultor de Livros, 2020, p. 437.

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