Não há, na história da Igreja, martírio mais glorioso nem mais memorável que o comemorado hoje: o martírio de uma legião inteira, isto é, 6.666 soldados. Ela era chamada de legião tebana, por ser inteiramente composta de habitantes da cidade de Tebas, no Egito. Essa legião sempre gozou da elevada estima dos imperadores por causa da bravura de seus soldados e oficiais. Nos reinados de Diocleciano e Maximiano, o posto desses soldados era o território da Síria e da Palestina; nesse período, Maurício, seu principal comandante, residia em Jerusalém. 

Ele e todos os que lhe estavam subordinados eram pagãos. Mas, tendo conhecido o bispo de Jerusalém, Maurício travou com ele muitas conversas sobre religião e foi levado a reconhecer a verdade de forma tão cabal que decidiu tornar-se cristão. Exupério e Cândido, dois oficiais e amigos seus, persuadidos por Maurício, seguiram seu exemplo e foram batizados com ele. Logo depois de batizado, ele informou seus soldados do fato e falou com tal ênfase sobre a cegueira do paganismo e a luz da verdadeira fé que eles unanimemente manifestaram o intento de abraçar o cristianismo, como ele o fizera. O bispo, com o auxílio de seus presbíteros, logo começou a instruí-los na fé e, quando estavam suficientemente preparados, recebeu-os na Igreja de Cristo pelo santo Batismo. Os novos soldados cristãos levavam uma vida tão irrepreensível que sua piedade edificava até mesmo os nascidos dentro da fé.

“O Martírio de São Maurício”, por Romulo Cincinnato.

Nesse ínterim, irrompeu uma revolta na Gália, que o imperador Maximiano preparou-se para reprimir imediatamente. Para tanto, convocou a legião tebana à Itália, de modo a reunir-se ao exército do imperador. Maurício foi com a legião até Roma e procurou o Papa Marcelino, que o recebeu com grande alegria e ministrou, a ele e a seus soldados, o sacramento do Crisma. Iniciada a campanha, eles marcharam por Milão e cruzaram os Alpes. 

Quando chegaram ao território de Valais, os soldados acamparam em uma grande planície, e o imperador marcou uma data em que, mediante um grande sacrifício público, eles deveriam invocar os deuses para ajudá-los na batalha iminente. O exército inteiro deveria estar presente e todos renovariam seu juramento de lealdade. São Maurício deliberou com sua legião se compareceriam ou não ao sacrifício. Por fim, ele disse: “Se nos apartarmos dos outros, o imperador ficará ofendido; mas, se comparecemos ao sacrifício, insultamos a Deus. Creio que seja melhor cair no desagrado do imperador que no de Deus”. Todos os soldados concordaram com suas palavras e, apartando-se dos soldados pagãos, acamparam perto de um lugarejo entre os Alpes e o Ródano, a cerca de vinte quilômetros de Genebra. 

Informado disso, o imperador enviou um mensageiro até Maurício, desejoso de saber o motivo da ausência de sua legião ao sacrifício. Maurício enviou a seguinte resposta: 

Somos cristãos, e como nossa fé não nos permite cultuar falsos deuses, não podemos comparecer ao sacrifício. Não obstante, no tocante a nosso dever de soldados, estamos prontos para marchar contra qualquer inimigo, seja ele quem for, e preferimos perder nossa vida a ser desleais ao imperador. 

Enfurecido, o imperador ordenou que eles retornassem ao acampamento e assistissem ao sacrifício; do contrário, daria ordens para que fosse executado um homem a cada dez da legião. Assim que a ordem foi anunciada, todos manifestaram o mais ardente desejo de morrer por Cristo. Os soldados exclamaram que não apenas um em cada dez, mas que todos eles estavam prontos antes a morrer que negar a própria fé assistindo ao sacrifício. Enquanto essa resposta era levada ao imperador, São Maurício exortava seus soldados a conservar-se intrépidos e destemidos, pois uma importante e gloriosíssima vitória estava em jogo, uma vitória que não poderia ser obtida pelas armas, mas pela paciência no sofrimento e na morte. 

“O Martírio de São Maurício”, por El Greco.

Eles, porém, não precisavam de exortações. Não havia um único entre eles que não desejasse ser aquele décimo, de modo a dar a vida pela fé. Quando chegaram os soldados encarregados de executar a ordem do imperador e dizimar a legião, esta deu um exemplo inaudito de amor a Cristo. Todos os legionários queriam ser aquele décimo, e davam a sua bênção aos que seriam executados. 

Dizimada a décima parte dos legionários, o imperador enviou mensageiros perguntando se os demais obedeceriam à sua ordem. Mas todos mantiveram a decisão: obedeceriam em todas as coisas a César, desde que não fossem contrárias às leis do Todo-Poderoso. Como, porém, a ordem do imperador contrariava tais leis, eles não poderiam obedecer, e não obedeceriam. Tão logo soube da decisão, o imperador ordenou novamente que um homem em cada dez fosse executado. Cumprida a ordem, e informado o imperador de que nem um único legionário sequer hesitara em sua decisão, este ficou tão furioso que ordenou a todo o seu exército marchar contra os legionários e matá-los um por um. 

Os tebanos poderiam ter-se defendido facilmente, ou buscado segurança na fuga, mas seu desejo de derramar o sangue por Cristo era grande demais para que tentassem escapar à morte. Louvando a Deus, eles baixaram suas armas e, como ovelhas pacientes, deixaram-se retalhar em pedaços, como era o desejo dos pagãos sanguinários. São Maurício encorajou a todos com palavras inspiradoras até que sua vida lhe foi tirada. 

Após o massacre, um soldado chamado Vítor chegou ao local, viu o espetáculo aterrador e, tendo ouvido falar de sua causa, suspirou: “Ah! Se eu tivesse chegado mais cedo, agora estaria tão feliz como eles estão!” Indagado se era cristão, e confirmando-o com destemor, Vítor foi morto no mesmo instante, e assim pôde partilhar das alegrias a que aspirara. Esse martírio glorioso aconteceu no dia 22 de setembro do ano 286. No vale onde se deu o massacre, existe agora uma igreja magnífica, construída em honra de São Maurício e seus companheiros.

* * *

O bispo e mártir Santo Emerão era natural de Poitiers, na França. Chegando à idade adulta, foi elevado à dignidade de bispo por causa de suas virtudes e conhecimento. Informado de que na Hungria havia ainda um grande número de idólatras, decidiu partir para lá e convertê-los, pois seu coração ardia com o desejo de ganhar almas para o Céu. Assim, foi para a Germânia e chegou a Ratisbona, na Baviera, de onde desejava continuar sua jornada até a Hungria pelo Danúbio. Teodão I, duque da Baviera, informado da chegada do bispo, suplicou-lhe que ficasse em seu território e cuidasse da salvação de seus súditos, visto que muitos deles ainda estavam cegos pela idolatria, e outros eram ainda muito incipientes na fé. Julgando que talvez conseguisse trabalhar para a salvação das almas tanto na Baviera como na Hungria, aquiesceu ao pedido do duque e logo começou a exercer na capital a sua missão apostólica. 

Altar principal de uma igreja dedicada a Santo Emerão, na Baviera.

Com suas exortações, pregações e catequeses diárias, os cristãos alcançaram depressa um maior conhecimento de sua fé, ao passo que também eram inspirados a cumprir, com mais devoção, todos aqueles deveres que a Igreja exige de seus filhos. Os que ainda estavam nas trevas do paganismo, ele levou, pelos mesmos meios, ao reto caminho, afastando-os inteiramente de seus erros. Tão logo percebeu que a capital estava em melhores condições, Santo Emerão partiu para as cidadezinhas, vilas e lugarejos do ducado. Trabalhando aí como fizera na capital, viu com grande alegria que, pela graça do Todo-Poderoso, o resultado era o mesmo. 

Depois desse trabalho, desempenhado com zelo incansável por três anos, assuntos importantes demandaram a presença do santo em Roma. Porém, quando estava a caminho, sua vida chegou ao fim por um martírio cruel. As circunstâncias foram as seguintes. Uta, uma das filhas do duque, fora seduzida por Siegbald, um jovem perverso da nobreza. Dando-se conta da gravidade de seu crime, ela procurou logo o bispo e, confessando-lhe suas transgressões, implorou ajuda. O santo, exortando-a primeiro a fazer penitência, deu-lhe o conselho de deixar o país por um tempo e refugiar-se na Itália, onde ele cuidaria dela até que conseguisse reconciliá-la com o pai. 

Esse conselho, que o santo dera à jovem com a melhor das intenções, ele o revelara a um padre muito piedoso, a fim de que este último soubesse o motivo pelo qual Uta o seguia. Depois de o santo bispo iniciar sua viagem, a infeliz Uta deixou sua casa em segredo, mas foi logo surpreendida e instada a justificar-se. Ela confessou suas intenções e razões para agir daquela forma, mas colocou a culpa em Santo Emerão a fim de salvar Siegbald de uma morte cruel. A jovem não imaginava que o pai puniria o bispo, seja por causa de sua elevada dignidade seja porque este já estava distante em sua viagem. Talvez ela imaginasse ainda que, com tal mentira, asseguraria em breve o próprio perdão.

Landbert, um dos irmãos de Uta, cego de fúria, decidiu vingar imediatamente a desgraça da irmã e da casa ducal. Montando seu cavalo, saiu à pressa no encalço do bispo e encontrou-o em Helfendorf, ainda em território bávaro. Eram três horas da manhã, e o santo rezava com seus acompanhantes, quando Landbert, com uma torrente de impropérios, arremeteu contra ele. O santo bispo, a quem o Céu revelara o que lhe haveria de acontecer, tentou afirmar sua inocência. Apelou ao Papa, dizendo que era o Santo Padre quem deveria julgá-lo, mas Landbert não lhe deu ouvidos: mandou que amarrassem o santo a uma escada e decepassem membro após membro de seu corpo, de modo a tornar sua morte lenta e seu sofrimento, excruciante. Os impiedosos algozes fizeram como lhes fora ordenado. Cortaram ao santo um dedo após o outro das mãos; em seguida, cortaram-lhe as orelhas e o nariz; removeram-lhe os olhos; arrancaram sua língua da boca; então, deceparam suas mãos e seus pés e deixaram-no assim mutilado, em uma poça de seu próprio sangue.

Tumba de Santo Emerão, na basílica dedicada a ele em Ratisbona.

Durante esse bárbaro martírio, o santo bispo demonstrou uma paciência inquebrantável, rezou a Deus por seus agressores e implorou o auxílio celeste até o instante em que a fala lhe foi tirada. Quando Landbert e seus algozes partiram de volta para casa, os acompanhantes do bispo, que haviam fugido, retornaram e, com a ajuda dos habitantes de Helfendorf, colocaram o corpo do santo em um veículo e assim o transportaram para Aschheim, onde Emerão foi enterrado com todas as honras devidas. Em pouco tempo, Deus trouxe a inocência do bispo à tona, e os muitos milagres que se realizaram em seu túmulo deram provas incontestáveis disso. 

O Duque Teodão, profundamente arrependido de suas suspeitas e de seu crime, mandou que as relíquias do santo fossem levadas para Ratisbona, e estava presente quando foram colocadas na capela de São Gregório. Assim ele tentou redimir-se, em alguma medida, da grande injustiça feita ao santo. Alguns anos mais tarde, erigiu-se em Ratisbona uma igreja e um monastério magníficos em honra de São Pedro e Santo Emerão, os quais ainda existem e são célebres no mundo todo. Uta, a caluniadora, foi banida pelo duque e passou o resto da vida em grandes sofrimentos. Landbert, o feroz assassino, fugiu para a Hungria, onde morreu em desgraça.

Considerações práticas

I. Leia de novo a excelente resposta dada por São Maurício aos mensageiros imperiais, dizendo que ele e seus soldados não poderiam participar do sacrifício pagão porque a fé cristã não o permitia; não obstante, no que dizia respeito a seus deveres de soldados, eles estavam prontos a cumpri-los, mesmo que isso lhes custasse a vida. 

Isso deve ensinar a todos os cristãos, sobretudo aos que servem, uma lição importante. “Ninguém pode servir a dois senhores” (Mt 6, 24), diz o Cristo, se tais senhores dão ordens contraditórias. É, de fato, indubitável que um soldado ou um servo deve servir não só o Senhor, seu Deus, mas também seus oficiais, seu senhor ou senhora, desde que não se lhe exija nada contrário às leis do Todo-Poderoso. Se, no entanto, um oficial, um senhor, uma senhora, um superior, enfim, ordena algo que é errado e, portanto, proibido por Deus, como o imperador fez a São Maurício, e Landbert a seus servos, em tais casos, devemos obedecer a Deus e não aos homens, sejam eles senhores, príncipes, reis ou imperadores. 

São Maurício, em retrato de Lucas Cranach, o Velho.

Deus é um Senhor maior do que qualquer outro sobre a terra, e a Ele todos devem obedecer. Nenhum servo pode ordenar algo que seu senhor tenha definitivamente proibido e, caso o faça, nossa razão nos diria para obedecer ao senhor e não ao servo. Todas as pessoas deste mundo são súditos, servos de Deus, até mesmo os reis e os imperadores. Desse modo, se ordenarem algo que Deus proíbe, devemos obedecer a Deus, e não a eles. Portanto, os servos de Landbert cometeram o mesmo crime que os servos de Absalão, no passado; aqueles, pela ordem de Landbert, mataram o inocente Santo Emerão; estes tiraram a vida de Amnon (cf. 2Sm 13, 23-29), embora o Todo-Poderoso proíba que se tire a vida ao inocente. 

Aprenda a partir disso como agir se seu senhor, sua senhora, ou qualquer outra pessoa lhe der uma ordem injusta. Convém antes obedecer a Deus e, como fizeram São Maurício e seus companheiros, desobedecer à ordem iníqua. Nem o receio de desagradar seus superiores, nem o receio de qualquer perda temporal que lhe possa advir disso, devem persuadi-lo a agir de outra maneira. Pense e diga como São Maurício: “É melhor cair no desagrado de um mortal que despertar a ira do Rei imortal do céu e da terra”. 

O desgosto de Deus deve ser mais temido que o dos homens. O dano que você causa a si próprio sendo desobediente a Deus é imensuravelmente maior do que aquilo que tem a temer desobedecendo de modo legítimo aos homens. O desagrado dos homens e as perdas que possa sofrer acabarão, porque o homem é mortal e a perda é momentânea. Mas a perda por ser desobediente ao Senhor e o desgosto do Todo-Poderoso jamais acabarão, porque Deus é seu Senhor pela eternidade. “É terrível cair nas mãos do Deus vivo” (Hb 10, 31).

II. Santo Emerão, tendo o desejo de ganhar almas para o Céu, viajou a terras estrangeiras e ali trabalhou até a morte pela salvação dos homens. 

Deus não pede que você vá para terras estrangeiras por essa mesma razão. Você pode ganhar muitas almas em sua própria casa ou no lugar onde vive, inspirando os outros a seguir o seu exemplo no caminho reto e afastando-os do mal. E caso não tenha oportunidade de fazê-lo, salve ao menos a sua própria alma e garanta sua vida futura mediante uma conduta cristã. Não permita que o amor desordenado a seu próprio corpo nem outra tentação qualquer exponha sua alma ao perigo de perder a vida eterna. Pois, se a sua alma for infeliz, seu corpo será infeliz. E de que valerá tudo o mais que você conquiste com tanto esforço se a sua alma vier a perder-se? Uma vez que ela se perca, nenhum auxílio poderá obtê-la de volta. 

“Nada é mais precioso que a alma do homem”, diz São Lourenço Justiniano, “porque ela é adornada com a semelhança do Todo-Poderoso, e comprada com o Sangue de Cristo. Quem quer que a tenha perdido, não poderá resgatá-la nunca mais”. “Pois que aproveita ao homem — são as conhecidíssimas, mas nunca suficientemente meditadas palavras do Salvador —, que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, mas perder sua própria alma?” (Mt 16, 26) Que aproveita? “De que nos aproveitou a soberba? De que nos serviu a jactância e a riqueza?”, diz o condenado ao Inferno. “Todas estas coisas passaram como sombra” (Sb 5, 8-9). 

Agora os réprobos compreendem bem que ganhar o mundo todo não é nada comparado ao dano que sofremos na alma por causa do pecado. O ganho passa, mas o dano permanece para sempre. Esse conhecimento, porém, chegou tarde demais para eles, e já não lhes tem nenhuma utilidade. Aproveite-o, pois, enquanto ainda lhe pode ser útil. Não deseje nada que possa arruinar a sua alma, pois você pode vir a lamentá-lo inutilmente, pela eternidade, com os condenados no Inferno.

Referências

  • Extraído, traduzido e adaptado passim de: Lives of the saints: compiled from authentic sources with a practical instruction on the life of each saint, for every day in the year, v. 2. New York: P. O’Shea, 1876, p. 372ss.

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