À medida que nos aproximamos de uma temporada de feriados mais tranquila e simples em meio à pandemia de Covid-19, o Senhor nos dá a oportunidade de nos concentrarmos no que é essencial: nossa fé e nossa família. Além das dificuldades e temores, a pandemia deu a muitas famílias agitadas a oportunidade de frear agendas cheias de compromissos, passar mais tempo reunidas e fortalecer a crucial relação entre pais e filhos. Essa relação não é apenas de suma importância para a saúde e o bem-estar das crianças e, portanto, para todo o mundo: é também um enriquecedor campo de descobertas para a compreensão de nossa cultura e de nossa relação com Deus.
Já passou por um grupo de adolescentes e percebeu que todos eles evitaram deliberadamente fazer contato visual com você? Já tentou ensinar um grupo de crianças que não demonstram absolutamente nenhum interesse no que você tem a dizer? Seu próprio filho já deixou de ser alguém solidário e se transformou numa pessoa hostil e obcecada por passar tempo com os amigos? Todas essas situações da vida normal, anterior à pandemia, são manifestações da orientação dos pares.
“Orientação dos pares” (em oposição a “orientação dos pais”) é o termo cunhado pelo psicólogo canadense Gordon Neufeld para descrever o fenômeno psicológico de filhos que se afastam dos pais e outros adultos confiáveis e passam a considerar outros jovens como guias ao longo da vida. Neufeld sugere que a orientação dos pares surgiu logo após a II Guerra Mundial, pois o contexto tradicional que dava suporte à parentalidade havia se desgastado. Ele mostra que a cultura sempre serviu de meio para a transmissão de sabedoria e de experiência da geração mais velha para a mais nova. No entanto, após a II Guerra Mundial, teve início uma “cultura jovem”: música, linguagem, cortes de cabelo etc. criados por jovens e transmitidos diretamente a outros jovens. Hoje, o conceito de uma cultura jovem é tão banal que talvez nem percebamos qual é a relação dela com a saúde da nossa sociedade, mas Neufeld nos alerta: é um sinal de que algo muito grave aconteceu.
Os dois elementos essenciais da relação entre pais e filhos são o vínculo emocional e a orientação [dada pelos pais]. O vínculo emocional começa na infância, com práticas concretas como ninar e carregar o bebê. Se tudo vai bem, o vínculo dos filhos com os pais se desenvolve e vai além da dimensão física, tornando-se um vínculo emocional e psicológico que pode suportar a separação física temporária. O vínculo saudável não precisa limitar-se aos pais; pode ser ampliado e incluir os avós ou outros cuidadores e professores de confiança. Nesse contexto, os filhos naturalmente seguem o exemplo dos adultos e correspondem à disciplina.
As crianças precisam entender o mundo e aprender a amadurecer, e esses processos são descritos pelo conceito conexo de orientação. No curso normal do desenvolvimento, a bússola interior das crianças aponta para os pais na busca de respostas a essas perguntas. No entanto, essa orientação adequada não está de modo algum garantida. Assim como o vínculo afetivo, a orientação deve ser sólida e preservada de forma ativa. A orientação dos filhos pode ser realizada por meio de coisas importantes como a comunicação sadia com o cônjuge, e por coisas menores como dizer aos filhos o que eles podem esperar de um novo local que será visitado pela família.
Quando pais e filhos passam boa parte do dia separados, quando eventos traumáticos ameaçam a família, quando aspectos da cultura desgastam o vínculo entre pais e filhos, e quando pais bem-intencionados encorajam seus filhos a passar muito tempo com amigos em detrimento da convivência familiar, as crianças correm o risco de perder o vínculo com os adultos e a orientação deles, e terminam recorrendo umas às outras. São cegos que guiam outros cegos, provocando danos nos que se preocupam com eles (cf. Lc 6, 39). As crianças ficam obcecadas com a ideia de permanecer juntas e conseguir a aceitação dos pares, custe o que custar. Assim, tornam-se hostis aos adultos que procuram orientá-las. Como os colegas jamais podem oferecer uns aos outros verdadeira sabedoria e amor incondicional, crianças que são orientadas por seus colegas jamais amadurecerão plenamente.
Mais do que nunca, os pais devem reivindicar de forma consciente e ativa o papel de modelo e guia dos filhos, atraindo-os com paciência para um vínculo amoroso, até que se tornem verdadeiros adultos. Podemos e devemos insistir em que nossos filhos passem mais tempo com a família do que com os colegas. Devemos ter coragem suficiente para introduzir as mudanças necessárias em nosso estilo de vida para que passemos mais tempo com eles, ainda que, por causa disso, eles aparentemente nos odeiem. Nós sabemos mais do que os nossos filhos, e eles precisam desesperadamente que atuemos conforme essa verdade.
A orientação dos colegas contra a dos pais tem algumas ramificações fascinantes que vão além da relação individual entre pai e filho, objeto de discussão de Neufeld e Gabor Maté, coautor do livro Hold on to Your Kids [“Pais ocupados, filhos distantes”]. O primeiro fenômeno a ser considerado é o fato de muitos adultos hoje em dia serem eles mesmos orientados por colegas. As redes sociais são um dos locais onde se pode constatá-lo com mais facilidade. Esse tipo de mídia nos estimula a verificar constantemente o que está acontecendo agora — quais são as tendências entre os adultos — e a nos envolver com isso. O medo de ficar desatualizado e o desejo de ser aceito nas redes sociais são preocupações que resultam da orientação dos pares entre crianças e se tornam notórias entre adultos. Suspeito que esse tipo de orientação dos pares, tão presente em nossa cultura, possa explicar, ao menos em parte, como aceitamos de forma tão rápida uma redefinição do casamento e da identidade sexual que teria sido incompreensível para a maioria dos seres humanos que nos precederam na Terra. Como crianças que buscam a orientação dos pares, nós, adultos, temos medo de ser diferentes.
Se a obsessão com o que está na moda é um sinal da orientação pelos pares entre os adultos de hoje, qual seria a orientação “parental” correspondente para os adultos? Numa palavra: tradição. Peter Kreeft confirma meu ponto de vista com sua clareza característica em The Philosophy of Tolkien [“A filosofia de Tolkien”]: “Humildade implica aprender com outras pessoas. Aprender com outros implica respeito pela tradição, que não é nada mais do que aprender com os mortos. Como diz a célebre expressão de Chesterton: a tradição é a ‘democracia dos mortos’”.
Para enfrentar os desafios do presente e delinear um trajeto inteligente para o futuro, temos de permanecer conectados ao que é bom e ao que permanece.
Há na educação moderna um fenômeno correlato: menosprezar a sabedoria do passado e pressupor a superioridade moral e intelectual da atual geração. Grandes pensadores históricos são muitas vezes descartados por serem considerados racistas, misóginos ou odiosos, e assim nós somos privados de seus insights duradouros sobre como viver uma boa vida. Pensadores contemporâneos como C. S. Lewis, Anthony Esolen e Jordan Peterson já falaram e escreveram bastante a esse respeito, exortando-nos a não esquecer os “tesouros do passado”, como diz o Dr. Peterson.
A desconfiança moderna em relação à tradição tem raízes na Reforma Protestante. O cristão católico vive uma fé “orientada pelos pais”: depositamos nossa confiança no Papa (o Santo Padre) e no Magistério instituído por Deus para interpretar a Sagrada Escritura; tomamos como modelo os santos, nossos irmãos mais velhos, e a Tradição como guia. O cristão protestante vive uma fé “orientada pelos pares”: começando por Lutero, Calvino, Zwinglio e outros, os protestantes rejeitaram a Tradição, considerando-a não fidedigna e corrupta. Em vez disso, tomaram o indivíduo como árbitro supremo da Bíblia, preparando assim o cenário para as inúmeras versões do cristianismo protestante que surgem e desaparecem, tendo pouca ou nenhuma relação com o cristianismo histórico.
Os cristãos protestantes são, portanto, suscetíveis à orientação dos pares em suas igrejas. Muitas vezes se fragmentam em grupos tão homogêneos que somente realizam seu culto e só escutam pessoas parecidas com eles em termos culturais e socioeconômicos. A globalidade e a universalidade da Igreja Católica ajudam os católicos a não cair nesse mesmo dilema.
Nossa cultura perdeu outra importante “orientação parental”: a do vínculo respeitoso com a “mãe natureza” [1]. Embora o movimento ambientalista contemporâneo nos exorte a cuidar dos dons da natureza, não nos encoraja necessariamente a respeitar e a valorizar nossa própria natureza, manifesta em nosso corpo. De acordo com a sabedoria dos antigos, a tarefa de todo ser humano é descobrir a realidade e conformar-se a ela. Porém, a abordagem contemporânea procura definir a realidade para só então adequá-la à nossa opinião. Contracepção, aborto e “remédios” para a mudança de sexo são todos manifestações de uma atitude que diz: “Sabemos mais do que a ‘mãe natureza’”.
Em última análise, todas essas manifestações da orientação pelos pares em larga escala são consequências do primeiro ato de orientação pelos pares: a Queda. Nossos primeiros pais foram criados para viver numa relação de amor e confiança com Deus Pai: a verdadeira orientação parental. Quando, em vez disso, escutaram a voz do tentador e seguiram uma criatura (um “par”) em lugar do Criador, a relação filial foi dramaticamente prejudicada.
Qual é a resposta de Nosso Senhor a essa confusão gerada pela orientação dos pares? “Vendo a multidão, ficou tomado de compaixão, porque estava enfraquecida e abatida como ovelhas sem pastor” (Mt 9, 36). Nosso Salvador nos mostra que a relação que devemos ter com Deus deve ser de confiança absoluta e amorosa, e Ele faz isso vivendo-a com perfeição e convidando-nos a fazer o mesmo. Num paralelo preciso com as descrições de Neufeld e Maté sobre uma relação entre pais e filhos, Jesus estabeleceu os meios para o nosso vínculo e orientação salvífica em nossa relação com Deus.
Os sacramentos são as ferramentas de Deus para estabelecer o vínculo afetivo. Primeiro, vinculamo-nos a Ele em nosso Batismo; em seguida, preservamos e fortalecemos esse vínculo por meio da Confirmação, da Confissão e da Eucaristia. Deus nos orienta no caminho da vida por meio da Bíblia e do Magistério da Igreja: “Vossa palavra é um facho que ilumina meus passos, uma luz em meu caminho” (Sl 118, 105). Quando permitimos que a mais importante das relações seja restaurada pela graça de Deus, também percebemos claramente o modo de restaurar a ordem em outros aspectos da vida.
Não deveríamos nos surpreender com o paralelo entre um bom livro sobre paternidade e a nossa fé. Algo verdadeiro na relação entre pais e filhos provavelmente será verdadeiro na relação entre Deus e o homem. Não foi por acaso que Deus determinou que nossa existência começasse, continuasse e terminasse no contexto familiar, pois ela é a melhor analogia material que podemos estabelecer com a vida interior dele: a Santíssima Trindade. Por isso, a defesa do matrimônio e da família é tão essencial. À medida que a pandemia de Covid-19 continua, em sua primeira temporada de festas de fim de ano, aproveitemos com coragem as oportunidades que a Providência nos tem dado para reconquistar os nossos filhos e permitir que Deus nos reconquiste.
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