O significado espiritual da Revolução de Outubro — que, segundo nosso calendário atual, aconteceu em novembro de 1917 — tem sido maciçamente visto pelos católicos com as lentes das aparições de Fátima, ocorridas no mesmo ano. Fátima, por sua vez, lida através da vida de São João Paulo II, tem levado os católicos a verem o desafio comunista do século XX como uma época de grande perseguição, mas também de grande heroísmo, que culminou no triunfo final do humanismo cristão.
A visão a partir da Rússia, no entanto, é um pouco diferente. Se para João Paulo II o término da Primeira Grande Guerra representou o retorno da independência da Polônia e o renascimento da liberdade polonesa — com o heroísmo católico exercendo um papel proeminente nisso —, para os conterrâneos de Dostoiévski e Tolstói, o fim do conflito culminou no fim da liberdade russa. Por isso, se nos detemos a olhar a história desse período tão somente com as lentes de Fátima e de João Paulo II, corremos o risco de fechar os olhos a um dos principais dramas religiosos de nossa época: o aniquilamento da Igreja Ortodoxa pela Revolução de Outubro.
A perseguição da Igreja Ortodoxa Russa — de longe, o maior dos patriarcados da Igreja Ortodoxa — foi total e brutal. Os números são surpreendentes. Mais de 100 mil padres ortodoxos russos foram assassinados, com alguns crucificados dentro de suas próprias igrejas. Uma Igreja que tinha mais de 300 bispos em 1917 foi reduzida a um punhado até meados da Segunda Guerra Mundial. Tão feroz foi o totalitarismo ateu de Lênin e Stalin que a possibilidade de uma “igreja das catacumbas” foi praticamente descartada. Um regime preparado para matar milhões de seus próprios cidadãos por motivos ideológicos não deixava aos ortodoxos nenhuma condição de resistência, nem lugar onde pudessem se esconder.
A Igreja Ortodoxa Russa foi praticamente liquidada e chegou perto de desaparecer. Até que, como uma grande surpresa da história, uma chance lhe foi dada por conta da invasão de Hitler à Rússia. Stalin, decidido a concentrar todas as energias nacionais contra a ameaça nazista, reconstruiu a Igreja Ortodoxa Russa, mas agora como um braço do Estado comunista. Os ortodoxos russos sobreviveriam, mas somente como um escritório corrompido do governo.
Então, em 1946, o Patriarcado de Moscou, filiado ao Estado, consentiu na supressão e no saque da Igreja Greco-Católica Ucraniana, fazendo dos católicos ucranianos a maior comunidade ilegal de cristãos do mundo. Tratou-se de uma traição histórica de uma fiel comunidade cristã por seus supostos irmãos na fé.
O sínodo (sobor, em língua eslava) ilegal de 1946 foi um sinal do que estava por vir. Qualquer um que aspirasse à liderança da Igreja Ortodoxa Russa — especialmente padres que tinham de estudar fora — devia fazer parte da KGB, a polícia secreta. Várias gerações de líderes ortodoxos foram forçadas a ser colaboradoras passivas do regime. A Igreja Ortodoxa Russa, com sua longa tradição milenar, foi destruída e substituída.
Mesmo um quarto de século depois da dissolução do partido comunista e da própria União Soviética, a restauração da Igreja Ortodoxa permanece sendo um desafio. Ainda não surgiu uma liderança livre dos laços históricos com a KGB. O pacto do atual Patriarcado de Moscou com o regime de Vladimir Putin — evidente, sobretudo, nas agressões de Putin à Ucrânia — é um claro sinal de que a reconstituição stalinista da Igreja ainda tem de ser superada. Mesmo hoje, o Patriarcado de Moscou não pode rejeitar sua participação no sínodo de supressão na Ucrânia, em 1946.
O grande sonho de união entre católicos e ortodoxos é um dos acontecimentos imprevistos após a Revolução de Outubro. Enquanto as relações formais entre Roma e Constantinopla são excepcionalmente calorosas, a Rússia continua a ser o centro demográfico dos ortodoxos. Não pode haver nenhum movimento em direção à grande união sem que ocorra algum movimento em Moscou.
São João Paulo II falou da Igreja respirando com “ambos os pulmões” em referência ao Ocidente e ao Oriente, ao latim e ao grego, a Roma e a Constantinopla, aos católicos e aos ortodoxos. O pulmão oriental foi severamente comprometido em 1917 e a Cristandade não será plenamente ela mesma até que essa ferida quase mortal seja sanada — cura esta que será o trabalho de gerações.
Na Ucrânia, na Polônia e em qualquer lugar no império do mal, o totalitarismo ateu soviético podia ser enfrentado, em parte, com um ato de resistência nacional: havia, afinal de contas, um poder invasor impondo ideias estrangeiras. Os russos nunca tiveram esse recurso; seus tiranos eram eles próprios. Enquanto o massacre de corpos na Rússia foi vasto, a corrupção da alma russa foi profunda. Foi isso o que começou em outubro de 1917 e, até o presente momento, ainda não foi superado.
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