Na Idade Média, todos os membros da cristandade viviam sob uma lei comum: a do Evangelho, tal como ensinado pela Igreja. Não havia dois mundos e padrões, o sagrado e o profano, mas um só, que todas as coisas unia aos pés da Cruz. Tratava-se de uma sociedade hierárquica, sim, mas não “clericalista”. O “clericalismo” é a esclerose da hierarquia e se dá quando esta deixa de ser um princípio interno e vital de coesão, reconhecido como porta-voz de um cristianismo compartilhado por todos, para se tornar, ao invés, uma imposição externa.
Se considerarmos a teologia de Santo Tomás de Aquino sobre o Matrimônio, bem representativa da época em que ele vivia, podemos dizer que a vida matrimonial não era vista de modo “tão mundano” a ponto de excluir as exigências do sagrado, e tampouco a vida sacerdotal e religiosa eram vistas de modo “tão sagrado” a ponto de excluírem as necessidades deste mundo. Ao contrário, ambas as realidades eram percebidas como sagradas, pertencentes à Igreja, e como expressões da vida católica; e ambas existiam para dar frutos para o Reino dos céus: o Matrimônio ajudando os cônjuges a gerar e educar cidadãos do céu; o sacerdócio e a vida religiosa fazendo as pessoas procurarem primeiro o Reino dos céus, em sua oração litúrgica, e depois ensinando e alimentando os fiéis com bens espirituais (e, não raro, também com bens materiais). O Matrimônio como tal deixará de existir no Reino celeste; mas, com exceção de Adão e Eva, que foram criados diretamente por Deus, todos os que estão no Reino são frutos agradáveis deste sacramento, e é precisamente esta a sua grande dignidade: ser sinal vivo e humilde serva da derradeira alegria celeste, qual uma “parteira” indispensável para dar à luz a gloriosa Cidade de Deus.
Assim, entendia-se o Matrimônio na cristandade dentro da lógica do Evangelho. Não se tratava de um affair mundano de autodeterminação e prazer sem limites, mas de algo que exigia penitência e autocontrole, exigências não muito diferentes das da vida sacerdotal e religiosa. Na Idade Média, por exemplo, se esperava que os cônjuges católicos se abstivessem frequentemente das relações sexuais, e isso várias vezes ao longo do ano, inclusive durante todo o tempo da Quaresma. Ao que parece, essa renúncia ao “uso matrimonial”, se não era obrigatória, era ao menos esperada durante boa parte do ano. Esse autodomínio sexual consistia numa rotina ascética de continência periódica, e não temos visto nada semelhante a isso há centenas de anos. E pode ser que nesta perda se encontre uma das causas da grande ruína espiritual de tantos casamentos (cf. 1Cor 7, 5.35).
A questão aqui é a seguinte: outrora, reconhecia-se o Matrimônio como verdadeira via crucis, uma forma de carregar a própria cruz, dia após dia, no seguimento de Cristo. Apesar de suas diferenças, o estado matrimonial, o religioso e o sacerdotal gozavam de profunda unidade — a unidade das virtudes cristãs, sendo a mãe e rainha de todas elas a caridade. O amor entre homem e mulher e o amor deles por seus filhos tinham de ser um amor de caridade, e não mera afeição terrena. Todas as exigências da caridade sobrenatural, a começar por sua primazia sobre os demais aspectos da vida humana, deviam ser vividas plenamente na “igreja doméstica”.
Não importa, porém, o quanto essa bela face da cristandade se tenha desfigurado com as guerras, pestes e revoluções dos últimos 500 anos: a primazia da caridade permanece verdadeira ainda hoje, já que não mudaram nem a natureza do matrimônio sacramental nem os seus elevados fins e exigências.
Uma importante consequência disso foi vista com clareza por Santo Tomás de Aquino em seu tratado Sobre a perfeição da vida espiritual, a saber: mesmo que só uma pequena parte dos cristãos abrace os conselhos evangélicos de pobreza, castidade e obediência, imitando ao máximo a vida de nosso Redentor sobre a terra, todos os cristãos são chamados a viver o que em tais conselhos é essencial. Não menos do que aqueles “mortos para o mundo”, os cristãos que “vivem no mundo” também devem ser pobres em espírito, puros de coração e obedientes à palavra de Deus e à da Igreja. De modo mais específico, devem lutar pela frugalidade nos bens terrenos, pela prontidão em viver a continência corporal e pela obediência no seio da estrutura familiar.
Em outras palavras, os conselhos evangélicos hão de ser vividos, tanto em espírito quanto na carne, por todos os cristãos, independentemente do estado de vida e das necessidades e exigências que dele decorrem.
Os casais unidos em santo Matrimônio sabem-no por experiência: circunstâncias como enfermidade, acidentes, gravidez, viagem ou trabalho requerem — e o simples fato de o casal envelhecer torna inevitável — a abstinência. Requer-se virtude moral da parte dos esposos, para que aceitem esses períodos com um espírito generoso de caridade e abnegação, transformando-os em continência temporária e meritória para o Reino. Isso também é verdade quanto ao uso das riquezas e à necessidade de abandonar aquelas atividades independentes fora do lar que são incompatíveis com o bem comum da família.
É uma tragédia que grande parte do que ensina a Sagrada Escritura sobre a família, assim como boa parte da sábia tradição patrística e medieval, tenham sido descartadas devido a um simples constrangimento ou, pior, a uma visão modernista para a qual os ditames morais da Escritura são culturalmente limitados e, portanto, passíveis de ser substituídos pelo código de conduta supostamente mais “iluminado” dos homens e mulheres do Ocidente moderno. É preciso resistir à tentação de seguir o zeitgeist, isto é, o “espírito dos tempos”, em lugar do Espírito Santo. Felizmente, fomos agraciados com um patrimônio sólido e cheio de riquezas, que guia os fiéis no caminho certo, mesmo quando homens de Igreja, em um momento concreto da história, encontram-se confusos por sua própria culpa.
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