A notícia de que, nesta última quarta-feira, 30 de dezembro, o Senado argentino aprovou por 38 votos a favor e 29 contra a maldita prática do aborto suscita tantos sentimentos, tanta indignação, tristeza, desânimo e lamúria — seja pela vileza dos que se obstinam na cultura da morte, seja pela carnificina que se seguirá daqui para frente —, que é preciso medir bem as palavras antes de colocar no papel o que vem à mente. E deve ser assim porque a situação, embora trágica, não pode ser tratada ao sabor de nossas paixões, mas à luz da razão e da graça. Como diria o Papa Pio XII: “O preceito da hora presente não é lamento, mas ação” (Radiomensagem de Natal, 1942).

Por isso este artigo saiu apenas agora, não tendo a pretensão de simplesmente lamentar o fato. Uma equipe esportiva, quando sofre uma derrota, não pode perder tempo escrevendo notinhas à imprensa com justificativas esdrúxulas sobre o próprio fracasso. De lamentos e desculpas esfarrapadas, convenhamos, o inferno está cheio. Ao contrário, é preciso voltar a campo, reorganizar a equipe, estudar o adversário, identificar os pontos fracos, traçar uma linha de combate e partir atrás da vitória. A vida humana sofreu mais um ataque hediondo neste final de 2020. Agora, mais do que antes, é nosso dever moral protegê-la, santificá-la e devolver-lhe a verdadeira dignidade. É dentro desse espírito que queremos, portanto, dirigir estas linhas aos nossos alunos, amigos, leitores aleatórios e, sobretudo, às mulheres em geral.

Feministas comemoram aprovação do aborto na Argentina.

As feministas que saíram às ruas de Buenos Aires para comemorar a nova lei traziam, na sua maioria, vestes verdes. Dentro do senso comum, o verde pode indicar “sorte” ou “esperança”, mas é também a cor dos frutos que ainda não amadureceram. O signo de uma mulher madura é justamente a maternidade. (Não necessariamente a maternidade biológica, mas a capacidade de se entregar maternalmente por alguém, sobretudo pelos mais pequeninos e indefesos.) Notamos que uma moça se torna mulher não apenas pela primeira menstruação, mas quando ela desenvolve aquele senso maternal que fascina tanto as crianças. (Santa Teresinha, por exemplo.) Nesse sentido, o verde das vestes feministas não podia ser mais revelador: trata-se de pessoas imaturas e que, pior ainda, reivindicam o direito à eterna imaturidade.

É uma grande ilusão achar que a legalização do aborto tem algo a ver com a dignidade da mulher ou de quem quer que seja. Se a questão fosse realmente a violência doméstica ou o risco à saúde, os militantes chamados “pró-escolha” lutariam apenas por essas duas possibilidades (ainda que sejam também inaceitáveis, atenção), e não por uma lei arbitrária e irresponsável para um suposto direito ao aborto legal, seguro e gratuito. Porém, o que vemos na maior parte dos casos é a procura indiscriminada do aborto, e por motivos os mais subjetivos: carreira, emprego, beleza, prêmios, indisposição etc. (“As vidas que devem ser salvas estão nas granjas e matadouros, não em nossos úteros”, dizia o cartaz de uma feminista.) E ninguém que reivindique uma insanidade dessas — ou pior, celebre-a como uma conquista olímpica — pode ser considerado uma pessoa madura. Porque não estamos falando de uma escolha entre fumar cigarro ou não, mas de tirar a vida do próprio filho.

Mas essa deficiência de caráter, caros leitores, não é uma exclusividade delas, que fique claro, e sim de toda a sociedade. Em um texto após a decisão do Senado, o presidente argentino Alberto Fernández disse que “o aborto seguro, legal e gratuito é lei. Hoje somos uma sociedade melhor, que amplia os direitos das mulheres e garante a saúde pública”. Em outras palavras, o que esse senhor está dizendo é que, agora, homens e mulheres podem igual e livremente viver suas sexualidades, porque têm a garantia paternalista do Estado. E se acaso houver uma gravidez inconveniente sob qualquer aspecto, basta abortá-la. Eis a sociedade dos sonhos de todo adolescente mimado que quer viver seus prazeres irresponsavelmente e com o respaldo dos outros.

O aborto é o corolário de uma geração moral e afetivamente fraca, que não aprendeu a virtude do sacrifício e da responsabilidade pelo próximo. A começar pela secularização do casamento, homem e mulher deixaram de se unir num vínculo sagrado e indissolúvel, cuja finalidade deveria ser a formação de uma família, numa entrega amorosa pela salvação um do outro, para simplesmente assinar um contrato civil de convivência. Mas contratos podem ser rompidos a qualquer hora e por diferentes razões, como em qualquer sociedade. Daí se introduziu o divórcio, apareceram os anticoncepcionais, o sexo se tornou lazer e o resto da história todos já sabem: relacionamentos rotativos, abusivos e tóxicos, como costumam dizer. Mas dentro de uma dinâmica na qual um serve para o outro apenas como instrumento de prazer, só podia dar nisso. Quem identificou cedo a pedra que rolou da montanha, causando esta avalanche que sofremos hoje, foi Gustavo Corção:

Para a criança, ao contrário, a união dos pais é física, metafísica e necessária. Melhor do que os filósofos e teólogos, a criança vê, “d’un simple régard”, o vínculo que faz dos pais um bloco, uma base. É uma experiência afetiva e intelectual de uma importância enorme para a criança essa primeira apreensão da realidade familiar.

Assim como se abrem os olhos para o jogo das leis naturais, abrem-se também para essa realidade de pedra que a protege, que a envolve, como paredes de uma casa viva. Por isso, a separação dos cônjuges terá para a criança um aspecto de alucinação. Não se trata apenas de um afastamento livremente consentido de duas pessoas que livremente se uniram. Não será apenas a quebra de um juramento ou a rescisão de um contrato. A separação dos pais, para a criança, é um absurdo. Não é um drama moral, é uma tragédia cósmica. Não é conflito de duas pessoas, é conflito dos elementos constitutivos do universo. O mundo enlouqueceu se os pais se separam. Na mente infantil, a repercussão afetiva e intelectual significa um abalo de todas as fundamentais experiências até então colhidas. É como se a água deixasse de molhar, o sol deixasse de brilhar, a pedra deixasse de ser dura. Não é muito difícil extrapolar as consequências de tão brutal experiência: os psiquiatras estão aí para dizer no que dão os filhos do divórcio [1].

Eles dão no aborto. Afinal, é mais prático tirar a vida do filho do que se submeter a um processo dispendioso de guarda e pensão alimentícia, não é mesmo? Ora, a mentalidade divorcista conduziu a isso, partindo do princípio de que o interesse dos cônjuges, e não o das crianças, está em primeiro lugar. Gerações e gerações inteiras cresceram e foram educadas sem pai ou sem mãe ou mesmo sem os dois, concluindo que não há vínculos definitivos nem instituições invioláveis. Acontece que, sem esse resguardo familiar, o amadurecimento afetivo, psicológico e, inclusive, biológico torna-se problemático. Resta a noção de que, na vida, o importante mesmo é o bem-estar individual e a realização dos próprios projetos. (O aborto foi aprovado nos Estados Unidos justamente com o argumento do direito à privacidade.) E que se danem os demais.

A ausência paterna e materna, consequentemente, se faz sentir hoje em todos os âmbitos sociais, inclusive dentro da Igreja, como reconheceu recentemente o Papa: “Na sociedade atual, muitas vezes os filhos parecem ser órfãos de pai. A própria Igreja de hoje precisa de pais” (Patris corde, n. 7). E isso explica o silêncio de alguns e a perplexidade de outros em relação a temas tão urgentes. É que, como descreve o profeta Jeremias, “os pastores ficaram estúpidos” e, por isso, “todo o seu pastoreio se dispersou” (Jr 10, 21). Mas não podemos ficar mais calados, como cães mudos. É necessária uma resistência varonil e paternal contra essa cultura mortífera que se vai alastrando cada vez mais sobre nossas famílias.

Em 1940, quando as hordas nazistas já haviam tomado boa parte da Europa e ameaçavam a soberania do Império Britânico, o primeiro ministro inglês Winston Churchill recusou-se a apertar as mãos do Führer em qualquer tipo de concordata, lançando-se bravamente contra aquilo que definiu como “uma monstruosa tirania, que não tem precedente no sombrio e lamentável catálogo dos crimes humanos”. Na contramão de um parlamento pusilânime e diplomático, o estadista encorajou os ingleses à resistência, pondo-se à frente do seu povo, sob pena de oferecer “sangue, sofrimento, lágrimas e suor”. Em um de seus mais célebres discursos, Churchill declarou: “Temos diante de nós muitos, muitos e longos meses de luta e sofrimento. Os senhores perguntam: qual é nosso plano de ação? Posso dizer: é travar guerra, por mar, terra e ar, com todo o nosso poder e com toda a força que Deus possa nos dar”. Hoje os historiadores são praticamente unânimes em reconhecer na atitude de Churchill, que à época parecia loucura, um fator decisivo para a derrocada de Hitler.

Essa é a atitude que se espera de homens e mulheres maduros. Decerto, os nossos tempos estão ameaçados por uma tirania ainda mais cruel e sanguinolenta do que aquela dos anos 1940. As raposas Jezabel e Herodes se levantaram mais uma vez contra a verdade e a inocência. A nós, pois, servem perfeitamente as palavras do anjo ao profeta Elias: “Levanta-te e come! Ainda tens um longo caminho a percorrer” (1Rs 19, 7). Temos de rezar muito, estudar muito e trabalhar muito. Porque é nosso dever descer à arena para “combater o bom combate”, em defesa de nossos filhos, de nossas famílias e da nossa fé, sabendo principalmente que “a nossa luta não é contra o sangue e a carne, mas contra os principados, as potestades, os dominadores deste mundo tenebroso, os espíritos malignos espalhados pelo espaço” (Ef 6, 12). 

Seja qual for o poder diabólico em nosso caminho, contando com o auxílio da graça de Deus, uma coisa é certa: nunca vamos nos render!

Referências

  1. Citação do artigo “Os inocentes castigados”, presente no livro Claro Escuro.

O que achou desse conteúdo?

0
0
Mais recentes
Mais antigos