No deserto da Quaresma, as almas buscam a conversão ao longo da Via Sacra abstendo-se de certas comidas, imagens e ruídos, a fim de se aproximarem do Criador e escutarem sua voz no silêncio. Tais disciplinas envolvem os cinco sentidos. Guido d’Arezzo, monge e músico do século XI, escreveu que sons, visões, gostos e cheiros influenciam o bem-estar do coração e do corpo porque, “por meio das janelas do corpo […], as coisas entram maravilhosamente nos recantos do coração” [i].

Mas como o som, que penetra “os recantos do coração”, pode fomentar o silêncio interior? Deveríamos por acaso nos abster de escutar música durante a Quaresma, substituindo-a pela leitura espiritual e pela oração? Ora, nem mesmo a Igreja se abstém completamente da música na liturgia quaresmal, mas apenas de certos tipos de música, como as composições para órgão.

“O Lagar Místico”, de Gerolamo Troppa.

Na Sexta-feira da Paixão, mesmo com altares despidos, flores guardadas e esculturas cobertas, permanece um tipo de música profundamente comovente. Como diz o Cardeal Sarah: “Silêncio não é ausência. Ao contrário, é a manifestação de uma presença, a mais intensa de todas as presenças […], pois o silêncio é onde Deus habita. Ele se veste com o silêncio” [ii]. De que forma, então, podemos nos aproximar de Deus usando o dom da música em nossas devoções quaresmais? 

Assim como a Igreja adapta a estética para se adequar ao tempo litúrgico, também nós podemos ajustar nossos hábitos de audição para que nossos passos na via Crucis não se desviem da via pulchritudinis (“via da beleza”). Bento XVI escreveu com elegância sobre a convergência paradoxal desses caminhos em algumas de suas audiências de quarta-feira. Mostrou que o conhecimento haurido [exclusivamente] de livros é indireto. “O verdadeiro conhecimento”, explica o Papa emérito, “ocorre quando somos atingidos pela flecha da Beleza, que fere o homem quando ele é movido pela realidade” [iii].

A beleza, inexprimível em palavras, nos coloca em contato direto com a verdade, que é Cristo. A contemplação das obras-primas da música sacra é um caminho que “faz com que nos voltemos para o nosso interior e nos superemos” [iv]. Bento XVI insiste: “Temos de aprender a enxergá-lo. Se o conhecermos, não apenas em palavras, mas se formos atingidos pela flecha de sua beleza paradoxal, então o conheceremos verdadeiramente, não só por termos ouvido falar dele. Então teremos encontrado a beleza da Verdade, da Verdade que redime” [v]. Ouvir composições selecionadas com critério nos aproxima, ou melhor, nos põe em contato direto com a beleza de Cristo.

Uma “flecha de beleza” musical que se deve experimentar durante a Quaresma é a comovente e deslumbrante Membra Jesu Nostri Patientis Sanctissima (“Os Sacratíssimos Membros de Nosso Jesus Sofredor”), de Dietrich Buxtehude, compositor alemão do século XVII.

Em Membra Jesu Nostri, Buxtehude constrói um inovador ciclo de sete cantatas para um pequeno coro (duas sopranos, um contratenor-alto, um tenor e um baixo) acompanhado de instrumentos de corda e um baixo-contínuo. Buxtehude selecionou estrofes do poema medieval Salve Mundi Salutare que falam das chagas do corpo de Cristo, organizou-as em sete seções e enquadrou habilmente cada uma delas com textos da Sagrada Escritura.

Dessa forma, o ouvinte é levado ao pé da Cruz para contemplar cada uma das sete chagas em ordem ascendente, começando pelos pés e terminando na face. Buxtehude enche de poder emotivo os diálogos musicais entre instrumentos e vozes, aderindo à doutrina dos afetos, do período barroco, enquanto usa de resto a fascinante técnica da pintura de palavras. No terceiro concerto, dedicado às mãos de Cristo, por exemplo, duas ideias musicais justapõem-se com força, não obstante contenham o mesmo texto: Quid sunt plagae istae in medio manuum tuarum? “Que são estas chagas no meio de vossas mãos?”

Quando essa surpreendente pergunta é cantada pela primeira vez, é executada em suspensões (fermatas) lentas e dissonantes que tocam diretamente o coração. Quando a pergunta é cantada pela segunda vez, três notas articulam-se como três golpes de martelo, aludindo assim aos cravos pregados nas mãos de Cristo. No sexto concerto, dedicado ao Coração de Cristo, o texto Vulnerasti cor meum, soror mea, sponsa, “Feristes meu coração, minha irmã e noiva”, é acompanhado por um padrão repetido nas cordas que vai crescendo em dinâmica como um coração que pulsa apaixonado. Na conclusão do concerto, porém, o padrão alusivo ao batimento cardíaco é interrompido, quebrado por pausas e deslocado para os tempos fracos. Assim, com um final quase abrupto, Buxtehude ilustra de modo expressivo que o Coração ferido de Cristo parou de bater.

 Além de Membra Jesu Nostri, de Buxtehude, é vasta, profunda e rica a coleção de composições clássicas que podemos escolher para a Quaresma. O católico Joseph Haydn, por exemplo, compôs As Sete Últimas Palavras de Cristo na Cruz:

Composta originalmente para narrador e orquestra, Haydn também a escreveu para narrador e quarteto de cordas, versão que eu recomendo enfaticamente. Entre os momentos memoráveis, incluem-se o timbre seco do pizzicato no violoncelo, no trecho “Tenho sede”, um “terremoto” musical após a crucifixão, melodias áridas e tristes que expressam a tristeza perante a Cruz e uma sensação predominante de esperança, em prenúncio da Ressurreição.

Os interessados pelo Ofício das Trevas monástico podem apreciar diversos conjuntos de responsórios. O arranjo de Tristis es Anima Mea, de Gesualdo, ilustra musicalmente a angústia de Cristo no Jardim do Getsêmani. François Poulenc, compositor francês do século XX, justapõe de forma comovente a doçura e a amargura do responsório Vinea Mea Electa em seus Quatre Motets pour un Temps de Penitence. O Vos Omnes, de Ralph Vaughan Williams, compositor inglês do século XX, revitaliza técnicas de composição medievais. Troisieme Leçon de Tenebres, para duas sopranos sobre baixo-contínuo, obra teatral e intimista de François Couperin, é venerada como uma das mais refinadas composições vocais do período barroco.

Entre as ambientações épicas das narrativas da Paixão nos Evangelhos, destaca-se a de Johann Sebastian Bach em sua Paixão segundo São Mateus. Uma das pérolas escondidas nesta obra-prima é a comovente ária Erbarme Dich (um arranjo musical do Salmo 50), cujo requintado diálogo entre violino e mezzo-soprano faz transparecer as tristezas de São Pedro após negar três vezes a Cristo. “Suspiros” com motivos barrocos, linhas de pizzicato pulsantes das cordas mais graves, longas linhas melódicas de pesar, contraponto entre violino e voz, cromatismo, tudo isso trespassa o coração. 

Séculos mais tarde, o compositor Arvo Part, ainda vivo, comporia um arranjo musical para a narrativa da Paixão segundo São João em sua Passio. Fortemente contemplativa e, por isso mesmo, propícia para o silêncio, essa obra aprecia-se melhor quando o ouvinte tem à disposição o texto enquanto o drama da Paixão se desdobra. As notas são dispostas e interpretadas tal como no Evangelho cantado nas liturgias do Domingo da Paixão e da Sexta-feira Santa. Uma pequena orquestra acompanha o drama por meio de um silêncio místico, texturas esparsas e contra-melodias surpreendentemente cativantes. Quando ouvimos a obra, podemos notar a fé profunda de Arvo Part e o quanto ele procurou ficar próximo do discípulo amado e de Nosso Senhor.

O Miserere (Salmo 50) composto por Allegri incorpora o gesto da alma elevando suspiros a Deus na épica subida da soprano até alcançar um dó na sexta oitava:

Por outro lado, o arranjo bastante místico escrito para o Miserere por Henryk Gorecki, compositor polonês do século XXI, explora as profundidades do alcance da voz humana, incorporando o gesto da alma que implora por misericórdia. O Miserere de Gorecki começa na região grave e quase imperceptivelmente suave, desenrolando-se de forma lenta e alongando apenas cinco palavras do Salmo 50 por um longo período. O arranjo de Louise Nicolas Clérambault para o Miserere é uma joia do barroco francês, com harmonias expressivamente ornamentadas e prolongadas, e um delicado baixo-contínuo a acompanhar comoventes linhas vocais.

Outro gênero típico do Tempo da Paixão e amado pelos compositores é o Stabat Mater, arranjado musicalmente mais de duzentas vezes. O arranjo de Pergolesi para o Stabat Mater é memorável por causa da linha de baixo descendente, que se dissipa em pequenos incrementos, símbolo da morte iminente, de acordo com a doutrina barroca dos afetos. Harmonias que revolvem e se transformam dolorosamente fazem o ouvinte mergulhar na tristeza e na desolação da via Crucis.

Acenando para Pergolesi, Antonin Dvorak, compositor do período romântico, abre sua versão do Stabat Mater com uma linha de baixo descendente e andante. Escrita para coro e orquestra amplos, essa representação cinematográfica (e às vezes irrestritamente sentimental) de Stabat Mater foi a resposta de Dvorak à sua própria tragédia após a morte de três filhos. No Stabat Mater de Arvo Part, as cordas, em registros agudos, perfuram como espadas o coração triste da Mãe. Uma serenidade permeia a música, trazendo à mente a pureza do antigo canto medieval da Igreja e levando a alma ao silêncio ao pé da Cruz:

Que significa ser tocado pela beleza na Quaresma, que deve ser um deserto silencioso e árido? As chagas de Cristo foram sangrentas, desprovidas de beleza. Tampouco foram esteticamente agradáveis os gritos de Jesus na cruz: “Não tinha graça nem beleza para atrair o nosso olhar […]. Era desprezado, o último dos homens, homem de dores” (Is 53, 2s). Mas, por causa da Ressurreição de Cristo, a dor e o sofrimento já não excluem mais a beleza; antes, são ordenadas a uma finalidade vitoriosa: “Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão?” (1Cor 15, 55). No contexto da história da salvação e da liturgia da Igreja, a Paixão e a Morte de Cristo são inseparáveis da esperança, da misericórdia e da salvação.

Nas palavras do sacerdote passionista Inácio do Lado de Cristo, as chagas de Jesus, apesar de parecerem feias, são “como muitas línguas, falando sempre a nosso favor”, eficazes para nossa salvação e intensas em misericórdia [vi]. “As chagas de Jesus”, diz ele, “clamam ainda mais alto por piedade e misericórdia, e a voz de suas feridas afoga a voz dos nossos pecados”. A voz das chagas de Cristo ecoa por séculos de composições sacras, cuja lista seria demasiado longa para enumerar, e nos leva a uma experiência mística direta com o Jardim de Getsêmani, ao longo da via Crucis e ao pé da Cruz. Como os “ritmos e harmonias” da música “encontram lugar nos recônditos da alma”, busquemos a voz de Cristo em verdadeiras músicas adequadas à Quaresma, a fim de que ela possa nos perfurar com a flecha transformadora da Beleza [vii].

Notas

  1. Guido d’Arezzo, Micrologus. Trans. Warren Babb, Ed. Claude V. Palisca (New Haven: Yale UP, 1978), 99.
  2. Robert Sarah, The Power of Silence: Against the Dictatorship of Noise (Ignatius Press, 2017). Edição brasileira: A força do silêncio, Fons Sapientiae.
  3. Papa Bento XVI, “The Feeling of Things, The Contemplation of Beauty” (24 ago. 2002).
  4. Ibid.
  5. Ibid.
  6. Fr. Ignatius of the Side of Jesus, The School of Jesus Crucified: The Lessons of Calvary in Daily Catholic Life (Tan Books, 2002).
  7. Platão, A República, III, 401D.

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