No calendário romano tradicional, às vezes as festas dos santos se unem para formar “arquipélagos” de santidade, permitindo aos fiéis meditar por mais tempo sobre um mistério sagrado. Esses arquipélagos nem sempre são formados por dias consecutivos:
- A 15 de janeiro, a Igreja celebra a festa de São Paulo, Primeiro Eremita; dois dias depois, celebra o santo que descobriu o primeiro eremita: Santo Antão [que encontrou São Paulo no deserto].
- 29 de setembro é a festa de São Miguel Arcanjo, e três dias depois é a festa dos Santos Anjos da Guarda (2 de outubro).
- No dia 11 de fevereiro, a Igreja universal celebra as aparições de Nossa Senhora de Lourdes; uma semana depois, alguns locais têm autorização para celebrar a festa da santa a quem apareceu a Santíssima Virgem: Bernadete Soubirous (ainda que ela tenha morrido a 16 de abril) [i].
- A festa de Santa Inês é 21 de janeiro, e em 28 de janeiro a Igreja comemora a aparição de Santa Inês a seus pais, enquanto estes rezavam em seu túmulo, oito dias depois [ii].
- 8 de setembro celebra o aniversário da Mãe de Deus; 12 de setembro, seu Santíssimo Nome; e 15 de setembro, suas Sete Dores [iii].
Com frequência, porém, as junções de que falo são formadas por duas festas consecutivas:
- A 25 de janeiro, a Igreja celebra a Conversão de São Paulo, Apóstolo, lembrando na véspera seu fiel companheiro São Timóteo [iv].
- A festa da Assunção da Bem-aventurada Virgem Maria é dia 15 de agosto; a de seu pai, São Joaquim, 16 de agosto [v].
- A Exaltação da Santa Cruz é a 14 de setembro; a festa das Sete Dores da Santíssima Virgem, no dia 15.
- Os monges agostinianos celebravam a Conversão de Santo Agostinho a 5 de maio; como consequência, a festa de Santa Mônica, tão decisiva para a conversão de seu filho, foi colocada no calendário romano em 4 de maio [vi].
Não nos deveria surpreender, portanto, que no calendário romano de 1962 a festa de São Gabriel Arcanjo fosse a 24 de março, e a Anunciação, a 25 de março. Surpreendente é ver quanto tempo levou para acontecer essa junção tão óbvia: enquanto a Anunciação é uma das festas mais antigas da cristandade, a do mensageiro de Nossa Senhora só em 1921 encontrou o lugar que por direito lhe pertencia!
Antes de nos voltarmos à festa, porém, aprendamos mais a respeito do anjo honrado por ela.
O Anjo Gabriel
Juntamente com São Miguel e São Rafael, Gabriel é um dos três anjos a ter o nome mencionado nas Escrituras canônicas [vii]. Diferentemente de Miguel, a Bíblia não se refere a Gabriel como um arcanjo, mas a Igreja o reconhece como tal. Na explicação de São Gregório Magno, a ordem dos anjos transmite mensagens de menor importância, e a dos arcanjos, as de maior importância (cf. Hom. 32, 8-9). Como a mensagem que Gabriel anunciou era de máxima importância, logicamente ele era um arcanjo.
Gabriel aparece quatro vezes na Bíblia, duas no Antigo e duas no Novo Testamento. Em Dn 8, 15-26 e 9, 21-27, o arcanjo explica ao profeta Daniel o significado de suas intrigantes visões. Também pode ser ele o “homem” descrito em Dn 10, 5-6, “vestido de linho” e com um “cinto de ouro”. A tradição hebraica sustenta ainda ter sido Gabriel o anjo que destruiu Sodoma e o exército de Senaquerib (cf. 2Rs 19, 35), o anjo que enterrou o corpo de Moisés (ao invés de Miguel? cf. Jd 9) e o anjo que assinalou o tau nas frontes dos eleitos em Ez 9, 4.
Gabriel aparece também na literatura apócrifa: no Livro de Enoque, é guardião feroz de Israel, enviado por Deus para “agir contra os maus e os réprobos, e contra os filhos da fornicação” (Enoque I, 10, 9).
No Novo Testamento, Gabriel aparece uma vez a Zacarias (cf. Lc 1, 5-25) e uma vez à Santíssima Virgem Maria (cf. Lc 1, 26-38). Todavia, é razoável crer, como muitos na Igreja primitiva, que Gabriel é também o anjo que apareceu a São José (cf. Mt 1, 20; 2, 13) e aos pastores (cf. Lc 2, 8ss), e que consolou ou “fortaleceu” Nosso Senhor no Horto do Getsêmani (cf. Lc 22, 43). Do mesmo modo, em sua festa nós pedimos a ele que nos console e fortaleça também [viii].
E qual será a missão de Gabriel no fim dos tempos? Mt 24, 31 menciona anjos com trombetas predizendo o fim do mundo, mas o nome de Gabriel não aparece. A mais antiga referência à “trombeta de Gabriel” está no hino de um santo armênio do século XII, de onde ela passou para a arte cristã armênia [ix]. Ainda que não haja nenhuma fonte católica de autoridade para essa crença, é razoável imaginar que o anjo responsável por anunciar a primeira vinda de Cristo anuncie também a sua segunda vinda.
O nome Gabriel, em hebraico, significa “Deus é minha força” ou “força de Deus”. Se de fato Gabriel destruiu Sodoma e as hostes de maus e réprobos, fica fácil entender a conveniência do nome. Mas como relacionar a força divina com seu importantíssimo papel de mensageiro da Bem-aventurada Virgem Maria? De acordo com Gregório Magno, a “força de Deus”, “Gabriel”, anunciou a vinda do Senhor “dos exércitos celestes, poderoso na batalha” (Hom. 32, 8-9) — noutras palavras, um anjo cujo nome alude ao divino poder veio como arauto da Pessoa que exerce o divino poder. Na mesma linha, São Bernardo de Claraval observa que, como Jesus Cristo é o “poder de Deus” (1Cor 1, 34), é pertinente que sua Encarnação seja anunciada por um anjo com este nome. “Cristo é chamado de força ou poder de Deus, e assim o anjo: este só nominalmente, aquele substancialmente também”, prega Bernardo (Hom. 1 in “Missus est”, 2).
Mestre de Teologia
São Gabriel merece nossa especial atenção por ser um mestre da teologia bem feita, mestre a um só tempo severo e misericordioso. Ao visitar o sacerdote Zacarias, o arcanjo anuncia a boa nova de que ele será pai do Precursor do Messias, não obstante sua idade e a de sua esposa. Porém, talvez inchado por sua alta erudição, Zacarias hesita: “Como terei certeza disso? Eu sou velho, e minha mulher é de idade avançada” (Lc 1, 18). A pergunta de Zacarias nasce mais da dúvida que da fé: como a mensagem de Deus não se encaixa no esquema do que ele pensa saber, o levita se sente apto a rejeitá-la. Como resultado, Gabriel o repreende:
Eu sou Gabriel. Assisto diante de Deus, e fui enviado para falar contigo e dar-te esta boa notícia. E agora, ficarás mudo e sem poder falar até o dia em que essas coisas acontecerem, já que não acreditaste em minhas palavras, que se cumprirão a seu tempo (Lc 1, 19-20).
A aparição seguinte de Gabriel é em Nazaré, a uma moça de quinze anos chamada Maria. Quando ele anuncia um acontecimento muito mais portentoso, a saber, que ela será Mãe de Deus, a humilde donzela também faz uma pergunta: “Como acontecerá isso, se não conheço homem algum?” (Lc 1, 34). Maria sabe que os bebês não chegam de cegonha [x], e sabe também que fez um voto de virgindade perpétua (cf. Santo Tomás, STh III 28 4c.). Ela não duvida do anjo, mas corajosamente faz uma pergunta de natureza diferente: à luz do que professei [i.e., um voto], como é que se darão tais coisas (que, pela fé, eu sei que acontecerão)?
Longe de puni-la, o anjo a recompensa com uma resposta explicativa: “O Espírito Santo descerá sobre ti, e o poder do Altíssimo te cobrirá com sua sombra. Por isso, aquele que vai nascer é santo e será chamado Filho de Deus” (Lc 1, 35).
Deus não se importa que lhe façamos perguntas prementes: como disse celebremente São John Henry Newman, mil perguntas não fazem uma dúvida. O ponto é se nossas questões resultam de uma fé em busca de entendimento (fides quærens intellectum) ou não são antes uma tentativa de minar a fé com nossos próprios caprichos. Os ensinamentos de Gabriel a Zacarias e a Nossa Senhora apresentam-nos uma lição valiosa de como fazer, e como não fazer, teologia católica. Poderíamos dizer que os teólogos católicos todos se dividem em duas categorias: os teólogos “zacarianos”, cujas incertezas terminam em heresia e apostasia, e os teólogos marianos, que ousam sem nunca duvidar, porém, dos princípios basilares da fé. Graças a Deus, Zacarias aprendeu sua lição, mesmo que pela via árdua. Rezemos para que seus equivalentes modernos façam o mesmo.
Padroeiro das Comunicações
Como o mais importante mensageiro da história do universo, o Arcanjo Gabriel é o santo padroeiro de uma vasta gama de ofícios e hobbies envolvendo as comunicações. O arauto celeste é patrono dos radialistas, dos comunicadores em geral, dos diplomatas, dos carteiros, do rádio, das telecomunicações, do telégrafo, do telefone e da TV. E se o anjo é padroeiro dos carteiros, por que não dos colecionadores de selos? Daí que Gabriel seja também o protetor e patrono dos filatelistas.
Pouco claro é o porquê de São Gabriel ser invocado contra o reumatismo [xi]. Talvez o entusiasmo do anjo em levar mensagens do Céu, para baixo e para cima, dê esperança às pessoas que sofrem com as articulações. Ou talvez os retratos artísticos de Gabriel se ajoelhando ante Nossa Senhora tenham sido uma fonte similar de inspiração.
A festa de São Gabriel
Os anjos foram sendo adicionados gradualmente ao calendário da Igreja. No ano 530, o Papa Bonifácio II dedicou uma basílica em honra a São Miguel na Via Salária, a cerca de dez quilômetros de Roma, com cerimônias que começavam na noite de 29 de setembro e terminavam no dia seguinte. Nos anos subsequentes, a dedicação passou a ser celebrada primeiro a 30 de setembro e depois no dia 29. No calendário tradicional, o dia de São Miguel tem como título oficial “Na Dedicação de São Miguel Arcanjo”, ainda que a basílica comemorada por ele tenha desaparecido mais de mil anos atrás.
O dia de São Miguel também comemora todos os exércitos celestes (inclusive Gabriel e Rafael, nominados expressamente no Ofício Divino), mas o foco primário é em São Miguel. A Igreja foi vendo ao longo do tempo a sabedoria que há em venerar certos anjos em particular na liturgia. Em 1670, o Papa Clemente X incluiu a festa dos Anjos da Guarda no calendário universal a 2 de outubro — o primeiro dia livre depois de São Miguel. E em 1921 o Papa Bento XV acrescentou festas separadas para celebrar as missões divinas dos Arcanjos Gabriel e Rafael, este em 24 de outubro e aquele em 24 de março.
O raciocínio do Santo Padre é digno de reflexão. De acordo com as atas oficiais da Santa Sé, Bento XV agiu “atendendo aos pedidos e desejos de inúmeros santos bispos, movido por razões fortes e peculiares”. Após consulta à Sagrada Congregação dos Ritos, autorizou ele um Ofício e uma Missa obrigatórios para as festas da Sagrada Família, de São Gabriel e de São Rafael.
A ninguém se oculta o quanto é justo e salutar, para a família doméstica e a própria sociedade, fomentar e propagar a união à Sagrada Família, constituída pela Sé Apostólica, firmada pelas leis e honrada com indulgências e privilégios particularmente a paróquias e confrarias, e para este mesmo fim cultivar e celebrar a Sagrada Família de Nazaré com um rito litúrgico específico e com uma meditação contínua e frutuosa de seus benefícios, bem como uma imitação de suas virtudes. Tanto mais apropriado ao incremento da piedade, e dessa mesma união à Sagrada Família, é que se comemore com festa religiosa a missão divina de cada um dos Arcanjos: a de Gabriel, no anúncio do mistério da Encarnação do Senhor; e a de Rafael, cujos benefícios em prol da família de Tobias se descrevem nas Sacras Escrituras (AAS 13 [1921], p. 543).
A festa instituída pelo Papa Bento XV é uma grande dádiva para a Igreja: o Ofício Divino chama a atenção dos fiéis para a aparição do anjo no livro de Daniel, bem como para o castigo dado por ele a Zacarias no Evangelho segundo São Lucas — o qual em nenhum outro lugar no ano litúrgico é sublinhado da maneira adequada, tanto no rito antigo quanto no novo. Retirada de um sermão de São Bernardo de Claraval (constante nas leituras das Matinas), a Coleta da Missa se concentra sobre um fato admirável: de todos os bilhões de anjos criados por Deus, Gabriel foi escolhido desde toda a eternidade para anunciar o mistério da Encarnação de Deus.
Deus, qui inter ceteros Angelos, ad annuntiandum Incarnationis tuae mysterium Gabrielem Archangelum elegisti; concede propitius: ut qui festum eius celebramus in terris, ipsius patrocinium sentiamus in caelis. Qui vivis et regnas… — Ó Deus, que escolhestes o Arcanjo Gabriel, entre todos os Anjos, para anunciar o mistério de vossa Encarnação, concedei por vossa bondade que, celebrando a sua festa na terra, experimentemos o efeito de seu patrocínio no Céu. Vós que viveis e reinais…
A oração Pós-comunhão para a Missa é igualmente instrutiva:
Corporis tui et Sanguinis sumptis mysteriis, tuam, Domine Deus noster, deprecamur clementiam: ut sicut Gabriele nuntiante, Incarnationem tuam cognovimus; ita, ipso adiuvante, Incarnationis eiusdem beneficia consequamur. Qui vivis et regnas… — Tendo recebido nos santos mistérios o vosso Corpo e o vosso Sangue, nós imploramos a vossa clemência, ó Senhor nosso Deus, e como conhecemos a vossa Encarnação pela mensagem de Gabriel, por seu auxílio venhamos a participar também dos benefícios dessa Encarnação. Vós que viveis e reinais…
A Pós-comunhão associa com beleza a mensagem do anjo para a Encarnação no ventre da Santíssima Virgem Maria à “encarnação” que acontece em toda celebração válida do santo sacrifício da Missa. Nesta oração (bem como na Coleta), dirigimo-nos a Jesus Cristo como à Pessoa que se encarnou por nossa causa, após o anúncio de Gabriel, seu servo. Mas uma coisa é o fato da Encarnação, outra o benefício que dela se obtém. Os demônios ficaram sabendo que Deus havia se feito homem, mas isso de nada lhes serviu. Nossa oração é para que o anjo (não decaído) que ajudou a trazer à luz a Encarnação nos ajude a tomar parte em seus efeitos benéficos.
O Novus Ordo
No Missal Romano de 1969, o dia 29 de setembro é a festa em conjunto dos Santos Miguel, Gabriel e Rafael, Arcanjos. Nenhuma razão oficial se deu para o que o Prof. Peter Kwasniewski chama de “quase feroz esmagamento conjunto” de festas — em oposição à junção arquipelágica mencionada acima. Mas ela deve ter algo a ver com as tendências antiquarianas/arqueologistas de Dom Annibale Bugnini e de seus companheiros, que desdenhavam de acréscimos relativamente recentes ao calendário. Seja qual for a causa da supressão, em nosso parecer tratou-se de uma redução que em nada ajuda, e por quatro razões.
Primeiro, é mais apropriado honrar São Gabriel em 24 de março que no final de setembro. Não obsta a isso que, durante maior parte da história do rito romano, Gabriel tenha sido indiretamente honrado só no dia de São Miguel. A Igreja etíope há séculos honra Gabriel com uma festa própria, a Igreja Copta o honra com três festas e o rito bizantino com duas. (Neste último, uma das festas é a 26 de março, um dia após a Anunciação.) Para Roma, era bem fácil dar a Gabriel uma festa própria na véspera da Anunciação. Que 47 anos depois ela tenha anulado esse desenvolvimento há muito esperado (e concorde com o costume de outras Igrejas apostólicas), é algo pouco ecumênico, e que só se pode lamentar.
Em segundo lugar, é frutuoso meditar sobre a natureza e os ministérios dos anjos, especialmente em uma época materialista como a nossa, que esquece ou nega o vasto e invisível mundo espiritual, bem como os incontáveis atos de mediação angélica que estão acontecendo agora tanto na esfera natural quanto na sobrenatural. Temperar o calendário com as comemorações dos anjos aumenta a “consciência angélica” ao longo do ano, e isso é bom.
Em terceiro lugar — e continuando o assunto dos ministérios angélicos —, convém que haja festas distintas para anjos diferentes, porque cada um tem uma missão específica, como deixam claro as Escrituras. A Igreja reserva um dia para celebrar todos os santos no Céu (1.º de novembro), mas ainda assim ela observa os dias dos santos individuais a fim de honrar-lhes os talentos e as graças particulares. De modo semelhante, a Igreja pode instituir um “Dia de Todos os Anjos” se quiser (o que eu não estou recomendando, pois é indiscutível que o dia de São Miguel já tem essa função em ambos os calendários), mas mesmo assim deve honrar alguns anjos em outros dias.
Em quarto lugar, ninguém questiona que a família está sob ataque como nunca antes, e precisa de todos os recursos que houver à disposição. Se o Papa Bento XV estava certo em acreditar que a devoção a Gabriel aumenta a devoção à Sagrada Família (e nós cremos que ele estava certo), então o calendário está agora menos efetivo no “incremento da piedade” e no estreitamento de nossos laços com Jesus, Maria e José. E isso não é bom nem para a família nem para a sociedade.
Rezemos para que se dê uma vez mais a São Gabriel Arcanjo a honra que lhe é devida pelo povo de Deus — antes que ele faça soar a sua trombeta.
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Meu Deus! Quanto ensinamento!
São Gabriel Arcanjo, rogai por nós!
São Gabriel Arcanjo, rogai por nós!