Entre os Evangelhos dos domingos do Advento há certo esquema: o primeiro domingo sempre se refere à segunda vinda de Cristo, ao passo que o quarto se concentra na Santíssima Virgem e em algum aspecto da Anunciação do anjo. Já o segundo e o terceiro domingos enfocam a pessoa e a missão de João Batista, o último dos profetas, Precursor de Cristo e pregador da conversão.
O enfoque de João na conversão, como meio de “preparar o caminho do Senhor” (Mc 1, 3), é, como Jean Danielou observou, o que o torna a figura central do Advento, e sua mensagem, o fio condutor desse tempo litúrgico. O chamado à conversão aparece pelo menos de cinco formas no breve Evangelho do segundo domingo do Advento, ano B (cf. Mc 1, 1-8):
- Dois profetas são citados: Malaquias, um profeta pós-exílico que, para a purificação do povo de Israel, pregou contra a idolatria e a imoralidade (inclusive com críticas ao divórcio), em antecipação à vinda do Messias (cf. v. 2, aludindo a Ml 3, 1, embora sem nomeá-lo); e Isaías (cf. v. 3), cujo clamor se torna o lema de João Batista: “Preparai o caminho do Senhor, faça caminhos retos para Ele”;
- João prega um “batismo de arrependimento” cujo propósito é “o perdão dos pecados” (v. 4);
- Aqueles que o procuraram o fizeram “confessando seus pecados” ao serem batizados (v. 5);
- João está vestido de roupas de penitência (pêlo de camelo não é muito confortável) e possui uma dieta penitencial (cf. v. 6);
- João ressalta que sua missão está subordinada à daquele que é maior, “cujas sandálias não sou digno de abaixar e desamarrar” (v. 7).
O foco do início do Evangelho de Marcos é a conversão. Marcos não faz uma narrativa da infância (relato do nascimento de Jesus). O evangelista, depois de apresentar João Batista, diz que: a) Jesus vai até ele para ser batizado; b) que o Pai declara: “Tu és o meu Filho amado, em ti ponho a minha afeição” (v. 11); c) que Jesus é então tentado sem sucesso no deserto; d) e que Ele, enfim, começa sua missão. As primeiras palavras de Jesus registradas no Evangelho de Marcos ecoam as de João, exortando ao arrependimento: “Completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo; convertei-vos e crede no Evangelho” (v. 15, grifo nosso, trecho também usado como fórmula para a imposição das cinzas na Quarta-feira de Cinzas).
O primeiro Advento — da queda de Adão até a vinda de Cristo — foi necessário por causa do pecado, pela necessidade do homem e sua incapacidade de se salvar e pela redenção oferecida por Cristo. Nosso Advento, hoje, é necessário para que se aplique a nós essa salvação e para que também nos convertamos, abandonando o pecado e voltando-nos constantemente para Deus, ações que são, na verdade, duas faces de uma mesma moeda. Eu não posso afastar-me de Deus sem me voltar para uma criatura, nem me afastar das criaturas sem me voltar para o Criador. É por isso que o aviso de João não é apenas um monumento histórico, destinado a multidões reunidas na margem do Jordão há cerca de 2 mil anos. Ele está sendo igualmente dirigido a mim hoje.
Foi igualmente dirigido a Herodes Antipas, cujo encontro com João Batista é retratado nesta pintura do holandês Pieter de Grebber (1600–1652/53). O pecado nunca é genérico, e João não pregou o arrependimento de modo vago. Ele disse aos cobradores de impostos que não trapaceassem (cf. Lc 3, 13); disse aos soldados que não intimidassem nem dessem falso testemunho (cf. Lc 3, 14); e disse a Herodes Antipas especificamente que não dormisse com a esposa divorciada de seu irmão, além de apontar “todos os crimes que ele praticara” (Lc 3, 19). De Grebber retrata o momento dessa pregação e como ela foi recebida.
De Grebber pintou durante a idade áurea da pintura barroca flamenga. Ele era um contemporâneo mais jovem de Peter Paul Rubens e parece ter sido bastante ativo na pintura de temas católicos para uma Igreja um tanto escondida na Holanda, país que havia adotado o protestantismo calvinista (por exemplo, em Amsterdã em 1578). De Grebber passou a maior parte da carreira em Haarlem, a oeste de Amsterdã.
“São João Batista e Herodes Antipas” é uma pintura barroca sobre o chamado de João à conversão e a consideração de Herodes a esse respeito. Como é típico da pintura barroca, se você desenhar duas linhas diagonais cruzando a tela, identificará os dois protagonistas: João e Herodes. Os dois também estão mais ou menos antepostos e em contato visual, e o diálogo entre eles é indicado por seus dedos apontados um para o outro. O cetro de Herodes também aponta para o de João, cuja linha é captada pelo bastão cruzado que ele carrega.
Como é característico na pintura barroca flamenga, a figura-chave geralmente se destaca em cores brilhantes e atraentes, normalmente em contraste com um fundo mais monocromático. Faça um teste: coloque a mão sobre a figura de Herodes e sua comitiva, e a pintura ficará um tanto escura.
Então, João Batista não é a figura central da pintura? O cetro de Herodes aponta para ele e, como observado, a linha do cetro é captada pelo bastão cruzado que João carrega. Portanto, o instrumento de poder de César está subordinado ao de Deus (que é um cajado de arrependimento). João é um pouco mais alto do que Herodes, e o rei se põe a observá-lo.
Mas João dificilmente poderia estar vestido com os trajes coloridos da realeza quando: a) sua mensagem, simbolizada até mesmo em suas roupas, é de arrependimento, b) o Evangelho (cf. Mc 1, 6) detalha o estilo de vestuário de João e c) a pintura retrata claramente a resposta à pergunta de Jesus sobre o que as pessoas foram ver no deserto: “Um homem vestido com roupas luxuosas? Não, quem usa essas roupas está nos palácios dos reis” (cf. Mt 11, 8; Lc 7, 25).
Na verdade, como na própria vida, João Batista não é a figura central da pintura, mas sim a sua mensagem de conversão. Não por acaso, quando João é retratado artisticamente, seu dedo quase sempre aponta para longe dele. Pois ele não veio indicar a si mesmo. Geralmente, aponta para “o Cordeiro de Deus, que tira os pecados do mundo” (Jo 1, 29).
Na pintura, porém, de Pieter de Grebber, o dedo de João aponta propositalmente para Herodes, porque nele, que ouviu o chamado à conversão, está representado o drama da salvação de cada homem. Herodes ouviu; mas o que faz? Será como a semente entre os espinhos que, tendo ouvido a Palavra, permite que “as preocupações desta vida e o engano das riquezas” a tornem estéril e ineficaz (cf. Mt 13, 22)? Ou receberá a bem-aventurança do Senhor: “Bem-aventurados os que ouvem a palavra de Deus e a observam” (Lc 11, 28)?
Ninguém pode fazer essa escolha por Herodes. A maioria das pessoas na pintura estão ocupadas conversando entre si. O que João se atreveu a dizer? O que o rei vai fazer?
A única outra voz “ouvida” na pintura é a de Herodíades. A intimidade sexual deles é representada na pintura pela proximidade física: eles praticamente formam uma única figura que, mesmo para uma mulher e consorte real da Antiguidade, o está pressionando. Ela quer agora entrar em seu olhar (como antes), já que os olhos são a janela da alma, e seus ouvidos ela já os têm. Ela e aquilo que ela representa indicam a decisão moral que Herodes precisa tomar: ouço a Palavra de Deus por meio deste profeta, ou a palavra de Herodíades em meus ouvidos? Vemos aqui que não são novas as ideias de “gênero” na política e as implicações das diferentes ideias sobre sexo nas políticas públicas. Da mesma forma, não há novidade alguma no fato de que ideias de inspiração religiosa sobre a devida ordem da sexualidade podem ser um obstáculo à maneira como um governante quer dirigir o seu país, seja ele Herodes, Henrique ou Bill [1].
Nós sabemos como vai acabar a história: como Fitafuso nos diz na Carta 9 (das Cartas de um diabo a seu aprendiz), o sexo é geralmente um meio eficaz o bastante para tornar os pensamentos religiosos uma fase passageira, tese nascida de Mt 14, 3-11. E, não obstante os que minimizam e desprezam a “guerra cultural” sobre o papel da vida e do sexo na moralidade pública, a história nos mostra que muita política, economia e história é movida — para o bem ou para o mal — por essa tese.
Mas ainda não chegamos lá. A decisão está sendo ponderada. De Grebber capta o momento no qual entra em cena a consciência, à qual o Vaticano II se referiu como o sacrário mais íntimo do homem. Ninguém pode decidir por mim, assim como ninguém poderia decidir por Herodes. Mas a decisão dele não é sobre o ensinamento de João estar “de acordo com a sua consciência” (uma falácia peculiarmente moderna que trata a consciência mais como um tear moral que como um espelho); trata-se, antes, de uma escolha: ou ele segue João e se livra de Herodíades, ou ele segue Herodíades e se livra de João.
Cada ser humano está no lugar de Herodes. É o preço de ser homem. É o drama da salvação capturado na tela de De Grebber, na qual cada um de nós pode facilmente substituir o “homem vestido com roupas finas”.
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