No início de setembro, o calendário litúrgico da Igreja Católica Romana põe-nos diante dos olhos um enigma interessante. De 1955 a 1970, o dia 3 de setembro era festa de S. Pio X, enquanto o dia 12 de março continuava a ser festa de S. Gregório Magno (no calendário tridentino e entre os cristãos orientais o santo ainda é celebrado na data de sua morte). Em 1969, porém, a comissão que revisou o calendário litúrgico transferiu S. Gregório para 3 de setembro, data de sua sagração episcopal, e Pio X para 21 de agosto, que é o dia seguinte à sua morte. Deste modo, seja qual for o ângulo de que se olhe, esses dois Papas santos estão misteriosamente unidos um ao outro. E é apropriado que seja assim, já que Gregório estabeleceu a forma final do Cânon Romano, que é a oração principal da Missa em latim, e Pio X restabeleceu o primado do chamado canto gregoriano, que sempre foi a música central do rito romano.
Ambos os Pontífices viveram de modo heroico pela virtude teologal da fé; ambos foram grandes pregadores e anunciadores da fé católica.
“A fé vem pela pregação”, diz S. Paulo, “e a pregação pela palavra de Cristo” (Rm 10, 17). Nós somos instruídos no Evangelho de Nosso Senhor por meio de seus ministros e defensores, nossos pais e padrinhos, nossos bispos e sacerdotes. Escutamos a beleza e a profundidade da palavra de Deus nas linhas sinuosas do canto gregoriano, e somos elevados ao Tabor espiritual no solene recolhimento do Cânon da Missa, de modo que ambos, música e silêncio, se tornam arautos dos santos mistérios. Os que entraram mais tarde em contato com a fé, foram introduzidos a ela, geralmente, por leigos católicos que pregam a verdade a tempo e fora de tempo (cf. 2Tm 4, 2). Sempre há uma palavra que se fala e um ouvido que se põe a escutá-la.
Seja qual for a forma através da qual as verdades do Evangelho nos alcançam e penetram nossos corações, é necessário para o nosso bem enquanto cristãos que recebamos reta instrução religiosa e iniciação sacramental. Essa dupla fonte da maturidade cristã — catequese moral e intelectual junto com a participação na vida divina através dos sacramentos — é belamente ilustrada por Nosso Senhor em seu diálogo com Nicodemos (cf. Jo 3, 1-21), quando Ele a um só tempo o instrui sobre o significado da Redenção e o conduz pela mão para mostrar a necessidade do Batismo.
Sempre que os mestres da verdade católica espalham a palavra da salvação que foi semeada por Cristo, eles estão a imitar seu Mestre como Luz das nações (cf. Lc 2, 32). “A fé vem pela pregação”: é através da pregação e do ensino da fé católica que a virtude teologal da fé, que compreende os sublimes mistérios de Deus, é primeiro plantada nos corações dos que não crêem e depois robustecida naqueles que já acreditam.
Não obstante, é preciso ter em mente, acima de tudo, que apenas Deus dá o hábito da fé sobrenatural. É somente através de sua graça, e não por instrução ou iniciação humana, que passamos a crer a fim de receber a salvação (cf. Rm 1, 16), que nos tornamos capazes de professar o Credo com total adesão ao Deus que se revela a nós. Os cristãos aderem a essa verdade sobrenatural por meio da graça da fé infundida em suas almas (“recebei com mansidão a palavra enxertada em vós, a qual pode salvar as vossas almas” — Tg 1, 21), e não por argumentações ou pela capacidade de convencimento dos homens.
O cristão plenamente formado recebe três dons fundamentais da parte de Deus, chamados de “virtudes teologais”, as quais permeiam toda a sua vida espiritual: trata-se da fé, da esperança e da caridade (sendo a caridade não uma esmola medida em dinheiro, mas o amor a Deus por causa dele mesmo e ao próximo por causa de Deus).
A graça da fé é a base das outras, já que é impossível esperar o Céu ou ser amigo de Deus sem desde já sustentar com firmeza a doutrina revelada da fé (ao passo que é possível, como mostra S. Tomás de Aquino, ter uma fé “informe” mesmo na ausência de esperança e de caridade). Por exemplo, a alma em pecado mortal é inimiga de Deus e sabe que não pode alcançar o Céu por conta dessa separação, mas ela ainda crê na verdade do Evangelho, na Redenção e na remissão dos pecados. “Ninguém pode dizer ‘Jesus é Senhor’, senão pelo Espírito Santo” (1Cor 12, 3). “Nisto se conhece o Espírito de Deus: todo o espírito que confessa que Jesus Cristo veio em carne é de Deus” (1Jo 4, 2). Sem uma fé permanente em Deus, ninguém pode se voltar a Ele na Confissão.
Para a alma cristã em cujo íntimo Deus habita, a graça da fé, que a prende ao invisível, é ladeada tanto pela graça da esperança, que nos impele a aspirar pela realização de nosso ser na visão face a face de Deus, e pela graça da caridade, que nos torna capazes de partilhar a vida e o amor próprios de Cristo, transformando em nosso o que é dele, “segundo a medida do dom de Cristo” (Ef 4, 7).
A caridade é a rainha das virtudes teologais por pelo menos três razões: primeiro, ela é a amizade espiritual à qual fomos alçados pela misericórdia divina; segundo, ela nos permite realizar obras e suportar sofrimentos de modo agradável a Deus; e, terceiro, só ela permanece em seu pleno esplendor no Céu, onde a fé dá lugar à visão e a esperança, à posse eterna de Deus (cf. 1Cor 13, 8-13).
Deus é o único autor das virtudes teologais, que são sobrenaturais em essência, ou seja, está para além da capacidade humana produzi-las ou provocá-las. Nem por nossos sinceros esforços, nem recebendo a instrução de outrem, poderíamos ganhar ou obter as virtudes teologais. Deus escolhe (falamos como se Deus estivesse fazendo escolhas no tempo, quando Ele permanece imóvel por toda a eternidade) fazer crescer as sementes que outros plantaram e regaram. Em uma declaração admirável de humildade, o maior pregador que a religião cristã jamais conheceu disse: “Eu plantei, Apolo regou, mas Deus é que deu o crescimento. De modo que não é nada nem o que planta, nem o que rega, mas Deus, que dá o crescimento” (1Cor 3, 6-7).
O Senhor nos manda que imploremos a Ele, divino Jardineiro, o crescimento. “Aumenta-nos a fé” (Lc 17, 5). Como as virgens prudentes esperam a chegada do esposo na parábola (cf. Mt 25), ou como a amada aspira por seu amado no Cântico dos Cânticos, assim também devemos rezar e suplicar — esperando, mas sempre buscando o Todo-poderoso.
Durante a noite no meu leito
busquei aquele a quem ama a minha alma;
busquei-o, e não o achei.
Levantar-me-ei, e rodearei a cidade;
buscarei pelas ruas e praças públicas
aquele a quem ama a minha alma (Ct 3, 1-2).
Em muitos de seus livros, Søren Kierkegaard insiste em lembrar o seu leitor de que “não temos pressa”. Tampouco a tem o homem que está à procura de Deus. É salutar que se espere pela luz, humildemente, e que se suspire pelo seu despontar — mas não podemos fazer o Sol nascer. Podemos viajar a pé, no frio da noite, rumo ao horizonte onde a luz aparecerá — ou seja, podemos abrir-nos à luz, capacitar-nos para recebê-la, dispor-nos à conversão pela graça de Deus. Podemos até, aparentemente, apressar a chegada do Sol, quando o que estamos fazendo é, simplesmente, aproximar-nos de onde ele primeiro desponta, a fim de o contemplar mais cedo. “Eu amo os que me amam, e os que vigiam desde manhã para me buscarem, achar-me-ão” (Pr 8, 17).
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