Este texto é de um ex-protestante, de fato, convertido à Santa Igreja, mas não um qualquer. O Papa Francisco canonizou-o em 2019, o Papa Leão XIII criou-o cardeal no século XIX, e suas obras são uma referência indiscutível no mundo da teologia. Estamos falando de São John Henry Newman

Nestes dias que precedem o seu dies natalis (11 de agosto) e também a solenidade da Assunção de Maria (15 de agosto), nada mais conveniente que as reflexões a seguir, escritas pelo santo e consignadas em sua obra Meditations and Devotions — na seção inicial do livro, dedicada a comentar, uma por uma, as invocações da Ladainha Lauretana (ou de Nossa Senhora).

São John Henry Newman.

No texto, dão-se algumas razões para crer na Assunção, mas não devemos nos esquecer — sobretudo porque o evento tornou-se dogma — que é um só o “objeto formal” da fé, isto é, a razão pela qual cremos: a autoridade de Deus revelante, que não se engana nem nos pode enganar. (De fato, na época de Newman, a Assunção era debatível entre os teólogos; não integrava ainda o rol de “objetos materiais” da fé católica. Mas desde 1950 não é mais assim, pois o Papa Pio XII declarou solenemente o dogma da Assunção.)

O que torna ainda mais bela a apologia de Newman, numa época em que nem era ainda obrigatória aos fiéis esta doutrina. Como ex-protestante, numa postura mais “ecumênica”, ele poderia muito bem ter “desconversado”, fazendo como alguns em nossa época, que tentam manter a devoção católica a Nossa Senhora num tom mais “sóbrio” e menos “polêmico”. 

Mas não: ele via a razoabilidade do que já haviam dito, ao longo dos séculos, vários dos santos e Doutores que o precederam. Por isso, escreveu as belas linhas que seguem — e que traduzimos do inglês especialmente para esta publicação.


Maria é a Sancta Dei Genetrix: a “Santa Mãe de Deus”

Assim que apreendemos pela fé a grande verdade fundamental de que Maria é a Mãe de Deus, outras verdades maravilhosas se lhe seguem em sucessão; e uma delas é que ela foi isenta do destino comum dos mortais, que consiste não só em morrer, mas em tornar-se terra com a terra, cinzas com as cinzas, pó com o pó. Ela devia morrer, e assim o fez, como morreu seu divino Filho, pois era homem; mas assomaram-se aos santos escritores várias razões pelas quais, ainda que seu corpo tenha sido, por um tempo, separado de sua alma e confinado ao túmulo, ele não permaneceu aí, mas foi logo reunido à sua alma e elevado por Nosso Senhor a uma nova e eterna vida de glória celestial.

E a razão mais óbvia para essa conclusão é esta: que outros servos de Deus foram ressuscitados do túmulo pelo poder de Deus; e não se pode supor que Nosso Senhor tenha concedido tal privilégio a qualquer outra pessoa sem que o concedesse também à sua própria mãe.

“Os mortos aparecem no Templo”, de James Tissot.

São Mateus nos diz que, após a morte de Nosso Senhor na Cruz, “abriram-se as sepulturas, e muitos corpos de santos, que tinham adormecido” — ou seja, que estavam dormindo o sono da morte — “ressuscitaram, e saindo das sepulturas depois da ressurreição de Jesus, foram à cidade santa, e apareceram a muitos” (Mt 27, 52-53). Diz São Mateus que “muitos corpos de santos” — isto é, dos santos profetas, sacerdotes e reis dos tempos antigos — ressuscitaram como prefiguração do [que se dará no] último dia.

[Ora], acaso podemos supor que Abraão, Davi, Isaías ou Ezequias tenham sido assim favorecidos, e não a própria Mãe de Deus? Não tinha ela privilégio sobre o amor de seu Filho para receber o mesmo que quaisquer outros tivessem recebido? Não estava ela mais próxima de Jesus do que os maiores dos santos que a precederam? É concebível que a lei do túmulo admita exceções para eles e não para ela? Declaramos, pois, com confiança que Nosso Senhor, tendo-a preservado do pecado e das consequências do pecado por sua Paixão, não perdeu tempo em derramar por completo os méritos dessa Paixão tanto sobre o seu corpo quanto sobre a sua alma.

Maria é a Mater Intemerata: a “Mãe Imaculada”

Outra consideração que tem levado mentes devotas a crer na Assunção de Nossa Senhora aos céus após a sua morte, sem esperar pela ressurreição geral no último dia, é fornecida pela doutrina de sua Imaculada Conceição.

Por sua Imaculada Conceição entende-se não só que Maria nunca cometeu qualquer pecado que seja, nem mesmo venial, seja em pensamento, palavra ou ação; mas, mais do que isso, que a culpa de Adão, ou o que se chama de pecado original, nunca foi sua, como é de todos os outros descendentes de Adão.

Por sua Assunção entende-se que não só a sua alma, mas também o seu corpo, foram elevados aos céus após a sua morte, de modo que seu corpo não repousou na sepultura por um longo período, como é o caso de outros — até mesmo grandes santos — que aguardam o último dia para a ressurreição de seus corpos.

“Cristo apresenta à Virgem os redimidos do Limbo”, por Fernando Yañez de la Almedina.

Uma razão para acreditar na Assunção de Nossa Senhora é que seu divino Filho a amava demais para permitir que seu corpo permanecesse na sepultura. Uma segunda razão — que temos agora diante de nós — é que ela não era somente amada pelo Senhor como uma mãe é amada por um filho, mas também que ela era transcendentalmente santa, repleta e transbordante de graça. Adão e Eva foram criados justos e sem pecado, e receberam uma larga medida da graça de Deus; e, como consequência, seus corpos jamais teriam se transformado em pó se eles não tivessem pecado; após o que lhes foi dito: “Tu és pó, e em pó te hás de tornar” (Gn 3, 19). 

[Ora], se Eva, a bela filha de Deus, nunca teria se tornado pó e cinzas se não houvesse pecado, não deveríamos dizer que, não havendo pecado jamais, Maria reteve o dom perdido por Eva ao pecar? O que teria feito Maria para perder o privilégio concedido no princípio aos nossos primeiros pais? Acaso devia sua beleza transformar-se em corrupção, e ofuscar-se o brilho de seu ouro fino sem motivo algum? Impossível! Por isso acreditamos que, embora tenha morrido por um breve período de tempo, como o próprio Senhor, ela — assim como Ele, e pelo poder ilimitado dele — foi ressuscitada da sepultura.

Maria é a Rosa Mystica: a “Rosa Mística”

Maria é a mais bela flor jamais vista no mundo espiritual. É pelo poder da graça de Deus que, desta terra estéril e desolada, surgiram algumas flores de glória e de santidade. E Maria é a Rainha delas. Ela é a Rainha das flores espirituais; e por isso é chamada de Rosa, pois a rosa é com justiça considerada a mais bela de todas as flores.

Mas, além disso, ela é a Rosa Mística, ou oculta; pois mística significa oculta. [No entanto], como estaria ela agora mais “oculta” para nós do que os outros santos? O que significa essa singular invocação, que aplicamos especialmente a ela? A resposta a essa pergunta nos leva a uma terceira razão para crer na reunião de seu sagrado corpo com sua alma, e de sua assunção aos céus logo após a sua morte, em vez de sua permanência na sepultura até a ressurreição geral no último dia.

Relíquias dos santos da Igreja.

E a razão é a seguinte: se o corpo dela não foi levado aos céus, então onde está? Em que sentido ele nos estaria oculto? Por que não ouvimos falar de seu túmulo como estando aqui ou acolá? Por que não se lhe fazem peregrinações? Por que não se produzem relíquias de seu corpo, como dos outros santos? Acaso não é este um instinto até bastante natural de reverência para com os lugares onde estão enterrados os nossos mortos? 

Nós sepultamos com honra nossos grandes homens. São Pedro fala do sepulcro de Davi como [de algo] notório em seu tempo, ainda que ele tenha morrido muitos séculos antes. Quando o corpo de Nosso Senhor foi descido da Cruz, Ele foi colocado em um túmulo honroso. A mesma honra foi concedida a São João Batista, cujo túmulo é mencionado por São Marcos como sendo amplamente conhecido. Desde os tempos mais antigos, cristãos de outros países fazem peregrinações a Jerusalém para ver os lugares santos. E, quando o tempo das perseguições acabou, eles deram ainda mais atenção aos corpos dos santos, como os de Santo Estêvão, São Marcos, São Barnabé, São Pedro, São Paulo e outros Apóstolos e mártires. Estes foram transportados para grandes cidades, e partes deles foram enviadas para este ou aquele lugar. Assim, desde o princípio até os dias de hoje, têm sido uma grande tradição e característica da Igreja o amor e a reverência para com os corpos dos santos

Ora, se houve alguma pessoa que, acima de todas [as outras], devia ser preciosamente cuidada, esta [pessoa] é Nossa Senhora. Por que, então, nada ouvimos [falar] sobre o corpo da Santíssima Virgem e suas relíquias separadas? Por que, então, ela é a Rosa oculta? Porventura é concebível que aqueles que foram tão reverentes e cuidadosos com os corpos dos santos e mártires a tenham negligenciado — a ela, que é a Rainha dos Mártires e a Rainha dos Santos, que foi a própria mãe de Nosso Senhor? É impossível. Por que, então, ela é a Rosa oculta? Claramente porque aquele sagrado corpo está nos céus, não na terra.

Referências

  • Excerto de: John Henry Newman, “Meditations on the Litany of Loreto, for the Month of May”, in: Meditations and Devotions. New York, London, Bombay and Calcutta: Longmans, Green, and Co., 1907, pp. 62-67.

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