Há muitos anos, o ator Bill Murray, católico praticante, deu uma entrevista ao jornal britânico The Guardian, na qual disse o seguinte sobre o fato de a Igreja ter reduzido o uso do latim após o Concílio Vaticano II.

Um novo santo do qual ele gosta é o Papa João XXIII (que morreu em 1963). “Fico com esse cara, ele faz o meu tipo; um florentino extraordinário e alegre que mudou as coisas. Não sei se todas as mudanças foram acertadas […]. Acho que perdemos algo quando perdemos o latim”.

De fato, São João XXIII era de uma pequena vila na Lombardia, chamada “Sob-a-Montanha” (Sotto il Monte), próximo a Bérgamo; mas, o que é muito mais importante, e contrariando a impressão popular confirmada pelas palavras do sr. Murray, o Papa jamais teve a intenção de reduzir o uso do latim na Igreja. Exatamente o contrário. Foi ele quem publicou o pronunciamento mais definitivo sobre a importância do latim, a Constituição Apostólica Veterum Sapientia, promulgada há 60 anos, no dia 22 de fevereiro de 1962, com a maior solenidade possível: foi assinada no altar da Basílica de São Pedro, na festa da Cátedra de São Pedro, para ressaltar a importância extraordinária do documento.

Angelo Roncalli, o Papa João XXIII.

A Constituição começa por delinear as várias razões por que a Igreja sempre encorajou o estudo e o uso do latim como uma das línguas sacras que “dão um constante testemunho da voz viva da antiguidade”. O latim foi “o instrumento de propagação do cristianismo no Ocidente. E como, na Providência especial de Deus, esse idioma uniu tantas nações sob a autoridade do Império Romano […], ele também se tornou a legítima língua da Sé Apostólica”. O latim é também um vínculo de unidade entre os cristãos, um idioma que, “por sua própria natureza […], é muito apropriado para promover toda forma de cultura entre os povos. Não dá origem a ciúmes. Não favorece nenhuma nação, mas apresenta-se com a mesma imparcialidade a todos e é igualmente aceito por todos”.

Ele prossegue e cita uma Carta Apostólica do Papa Pio XI, na qual se diz o seguinte: “o conhecimento e o uso desse idioma […] são importantes não tanto por razões culturais ou literárias, mas por razões religiosas […]. Pois, por sua própria natureza, a Igreja, que abraça todas as nações e está destinada a perdurar até o fim dos tempos, requer uma linguagem universal, imutável e não vernácula”.

O latim é uma língua universal, “instrumento de comunicação mútua […] entre a Sé Apostólica e as igrejas que usam o mesmo rito latino. Ela serve a este propósito de forma admirável por ser imutável, diferentemente das línguas vernáculas, e há muito tempo deixou de ser afetada por aquelas alterações no significado das palavras que são o resultado natural do uso cotidiano e popular”. O latim “‘pode ser verdadeiramente católico’ porque foi consagrado pelo uso constante da Sé Apostólica, mãe e mestra de todas as igrejas, e deve ser estimado ‘como um tesouro […] de incomparável valor’. É um passaporte geral para o entendimento correto dos escritores cristãos da antiguidade e dos documentos do magistério da Igreja. É também um vínculo muito eficaz, que une a Igreja de hoje à do passado e à do futuro em magnífica continuidade”. 

São João XXIII foi confundido muitas vezes com alguém que queria abrir a Igreja ao mundo moderno de forma acrítica, como se apenas coisas boas pudessem sair disso. Porém, o que ele diz sobre o latim nesse documento revela que essa interpretação está equivocada. Seria mais adequado dizer que, embora quisesse realmente que a Igreja tomasse o que havia de melhor no mundo, ele estava muito mais preocupado em fazer com o que o mundo se beneficiasse do que havia de melhor na Igreja. Isso, é claro, inclui tudo o que a Igreja havia feito ao longo de séculos para preservar e promover o uso do latim como veículo de transmissão e comunicação de seu patrimônio espiritual a todos os seus filhos.

Assim, depois de falar sobre o valor educativo do latim, ele declara sua intenção e decide “restaurar a posição de honra desse idioma e fazer tudo o que estiver ao Nosso alcance para promover seu estudo e uso”. E como “o emprego do latim foi contestado recentemente em muitos lugares […], Nós, portanto, decidimos emitir as instruções oportunas contidas neste documento, de modo a garantir que o seu uso antigo e ininterrupto […] seja mantido e, onde necessário, restaurado”.

O Papa prossegue e repete suas próprias palavras, proferidas três anos antes num congresso de latinistas:

É lamentável que tantas pessoas, inexplicavelmente deslumbradas com o maravilhoso progresso da ciência, tenham assumido a tarefa de remover ou restringir o estudo do latim e outras matérias afins […]. Nosso próprio ponto de vista é o de uma diretiva exatamente oposta a ser seguida. São as coisas que correspondem mais intimamente à natureza e à dignidade do homem as que lhe causam maior impressão na mente. Portanto, deveríamos demonstrar o maior zelo possível pela aquisição de tudo o que educa e enobrece a mente, senão as pobres criaturas mortais podem muito bem se tornar semelhantes às máquinas que constroem — frias, duras e desprovidas de amor.

Sua Santidade considera isso um assunto de tamanha importância, que ordena os superiores religiosos de todos os tipos a promoverem o latim em conformidade com as diretivas da Santa Sé e a proibirem qualquer um de escrever “contra o uso do latim no ensino dos estudos sacros superiores ou na liturgia”, ou de deturpar a “vontade da Santa Sé nesta matéria”. 

Certamente, o leitor não deixará de perceber que estas não são palavras de um homem enamorado pelo mundo moderno e que quer abandonar o mundo antigo.

João XXIII durante o Concílio Vaticano II. Foto de Hank Walker.

A parte final da Veterum Sapientia apresenta algumas considerações práticas para mostrar como o latim deve ser promovido na Igreja. O Papa cita a provisão do Código de Direito Canônico de 1917 (Cân. 1364), segundo a qual estudantes de seminários menores devem aprender latim e a sua língua materna como parte de seu programa de estudos. (Naquela época, era mais a norma do que a exceção frequentar primeiro um seminário menor, particularmente em países católicos como a Itália.) Aqui podemos observar de passagem que o Código de Direito Canônico de 1983 não é menos explícito em relação a esse ponto, embora não faça referência aos seminários menores. “Nas Normas da formação sacerdotal proveja-se a que os alunos não só aprendam cuidadosamente a língua pátria, mas dominem também a língua latina e tenham conhecimentos das línguas estrangeiras que sejam necessárias ou úteis à sua formação e ao exercício do ministério pastoral” (Cân. 249). O Papa João XXIII enfatiza que “ninguém deve ser admitido ao estudo da filosofia ou da teologia se não estiver totalmente alicerçado no latim e não for capaz de usá-lo”. 

Ele prossegue e ordena que o ensino do latim seja retomado onde porventura tiver sido eclipsado em benefício de outras matérias por imitação do currículo secular, e que as matérias que o substituíram sejam reduzidas, ou que o programa de estudos receba os ajustes necessários para garantir ao latim o espaço suficiente. Também especifica que a teologia deve ser ensinada em latim e a partir de manuais em latim, já que este é o melhor meio “para salvaguardar a integridade da fé católica” e “para reduzir uma verborragia inútil”. Este assunto era considerado tão importante, que o Papa também ordenava substituir os professores incapazes de ensinar em latim por outros que o soubessem.

Embora tenha enfatizado anteriormente a conveniência do latim como idioma de ensino da teologia, já que seu vocabulário não está sujeito às vicissitudes e mudanças que afetam as línguas vernáculas; ele também enfatizou, ao mesmo tempo, o papel do latim como vínculo de unidade entre os católicos de diferentes nações. Para que o latim possa continuar servindo de “língua viva da Igreja”, o Papa também determinou a criação de uma Academia Latina, cuja função seria similar à da Academia Francesa, servindo de ponto de referência universal para a expressão em latim de novos conceitos e coisas. Até hoje, na verdade, o Vaticano publica um Lexicon Recentis Latinitatis para atender a esse propósito.

Também há um parágrafo dedicado ao estudo do grego, língua do Novo Testamento e da maioria dos mais importantes Padres da Igreja, os quais, por sua vez, eram algumas das fontes mais importantes para os teólogos escolásticos da Idade Média latina.

Finalmente, o Papa ordena que a Sagrada Congregação para os Seminários e Universidades “prepare um syllabus para o ensino do latim, o qual deve ser observado fielmente por todos […] e cujo objetivo é dar àqueles que o seguem uma compreensão adequada da língua e de seu uso”. Este syllabus, conhecido como Ordinationes, foi publicado dois meses depois de publicação de Veterum Sapientia, e apresenta instruções detalhadas não apenas sobre os textos específicos a serem lidos, mas também sobre os requisitos de como e por quem o latim deveria ser ensinado [i].

Notas

  1. A primeira tradução para o inglês das Ordinationes, feita pela dr.ª Nancy Llewellyn, vice-presidente do Instituto Veterum Sapientia, pode ser lida aqui; no mesmo site há à disposição uma tradução espanhola, que pode ser lida aqui.

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