1. Nome. — Mateus teve dois nomes, Mateus e Levi. Mateus quer dizer “dom precoce” ou “conselheiro”. Ou Mateus vem de magnus, “grande”, e θεός, “Deus”, como se se dissesse “grande para Deus”, ou então vem de manus, “mão”, e de θεός, significando “mão de Deus” [1]. Com efeito, a) ele foi um dom precoce por sua rápida conversão, b) foi conselheiro por sua salutar pregação, c) foi grande diante de Deus pela perfeição de sua vida e d) foi a mão de que Deus se serviu para escrever o seu Evangelho. — Levi quer dizer “retirado”, “colocado”, “acrescentado”, “incorporado”. Ele foi a) retirado de seu posto de cobrança de impostos, b) colocado entre os Apóstolos, c) acrescentado à comunidade dos evangelistas e d) incorporados ao catálogo dos mártires.

2. Gestas. — O Apóstolo, ao pregar na Etiópia, em uma cidade chamada Nadaber, encontrou dois magos, Zaroés e Arfaxat, que entusiasmavam os homens com seus truques, parecendo ter o poder de os privar da saúde e do uso de seus membros. Cheios de soberba, faziam-se adorar como deuses pelos homens. Tendo chegado a essa cidade e sido hospedado pelo eunuco da rainha Candaces, batizado com o nome de Filipe, o Apóstolo Mateus notou como o prestígio daqueles magos era pernicioso aos homens e, por isso, os quis converter.

O evangelista S. Mateus, pintado por Francisco Bayeu y Subías.

Quando o eunuco perguntou a S. Mateus como era possível que ele falasse e compreendesse tantas línguas, o Apóstolo explicou que, depois da vinda do Espírito Santo, recebera o conhecimento de todos os idiomas. Porque, assim como, por soberba, alguns quiseram edificar uma torre que chegasse ao Céu, mas viram-se forçados a interromper a construção por causa da confusão das línguas, os Apóstolos construiriam, não com pedras, mas com virtudes, pelo conhecimento de todos os idiomas, uma Torre para todos os que crerem subirem até o Céu.

Então, alguém veio anunciar a chegada dos dois magos, acompanhados de dragões que vomitavam fogo sulfúrico pela boca e pelas narinas, matando a todos os homens [2]. O Apóstolo, munindo-se com o sinal da cruz, foi com segurança em direção a eles. Mal o viram, foram os dragões deitar-se aos seus pés. Mateus disse então aos magos: “Onde está vossa arte? Despertai-os, se puderdes. De minha parte, se eu não me houvera encomendado ao Senhor, ter-vos-ia feito a vós o que pensáveis fazer comigo”. Como o povo se reunisse, Mateus ordenou que os dragões fossem embora em nome de Jesus, e eles partiram no mesmo instante sem fazer mal a ninguém. Ele começou então a fazer um grande sermão ao povo sobre a glória do Paraíso terrestre, afirmando ser mais alto do que todas as montanhas, estar próximo do Céu; que lá não há espinhos, os lírios e as rosas não fenecem, a velhice não existe, os homens permanecem sempre jovens, os coros dos anjos cantam; quando se chamam as aves, elas obedecem imediatamente. Acrescentou ainda que o homem fora expulso do Paraíso terrestre, mas que, pelo nascimento de Cristo, fora chamado ao Paraíso celeste.

Enquanto falava ao povo, ouviu-se de repente um alarido: eram choros pela morte do filho do rei. Ora, como os mágicos não o pudessem ressuscitar, convenceram o rei de que o menino fora levado na companhia dos deuses; por isso, era necessário erguer-lhe uma estátua e um templo. O eunuco mandou vigiar os mágicos e convocou o Apóstolo, o qual, depois de ter rezado, ressuscitou no mesmo instante o jovem. Por causa disso, o rei, chamado Egipo, mandou que se divulgasse por todas as suas províncias: “Vinde ver um deus oculto sob a aparência de homem!”

Muitos vieram com coroas de ouro e diferentes tipos de sacrifícios a serem oferecidos ao Apóstolo; mas Mateus os impediu, dizendo: “Homens, que fazeis? Não sou um deus; apenas um escravo do Senhor Jesus Cristo”. Então, com a prata e ouro que tinham levado, as turbas construíram em trinta dias uma grande igreja, na qual o Apóstolo permaneceu por trinta e três anos e converteu o Egito inteiro. O rei, sua mulher e todo o povo fizeram-se batizar; Ifigênia, a filha do rei, consagrou-se a Deus e foi posta à frente de duzentas virgens.

Depois disso, Hírtaco sucedeu ao rei, enamorou-se de Ifigênia e prometeu ao Apóstolo metade do reino, se ele a fizesse aceitá-lo em casamento. O Apóstolo lhe disse que fosse no domingo à igreja, segundo costume de seu predecessor, e, na presença de Ifigênia e das outras virgens, ouvisse sobre os benefícios do casamento. O rei se apressou em ir, alegre por supor que o Apóstolo pretendesse aconselhar o casamento a Ifigênia.

Quando as virgens e todo povo estavam reunidos, Mateus falou longamente sobre as vantagens de se casar, sendo muito elogiado pelo rei, crente que o Apóstolo dissera tudo aquilo para animar Ifigênia e convencê-la a se casar. Depois de pedir que se fizesse silêncio, o Apóstolo retomou o sermão, dizendo: 

É coisa boa o matrimônio, quando nele se guarda a fidelidade. Sabei, pois, os presentes que, se um escravo se atrevesse a raptar a esposa do rei, não somente ofenderia o rei como também mereceria a morte, não por ter-se casado, mas porque convecera a esposa de seu senhor a violar o matrimônio. E o mesmo aconteceria contigo, ó rei: saibas que Ifigênia tornou-se esposa do Rei eterno e está a Ele consagrada por um véu sagrado. Assim, pois, como poderias tu tomar a esposa de outrem mais poderoso e unir-se a ela pelo casamento?

Quando o rei ouviu isso, retirou-se da igreja, louco de raiva. O intrépido e firme Apóstolo exortou todos à paciência e à constância; em seguida, abençoou Ifigênia, que, trêmula de medo, prostrara-se diante dele com as outras virgens. Terminada a Missa solene, o rei enviou um carrasco, que com a espada atingiu Mateus, que se encontrava de pé, orando diante do altar com os braços estendidos para o Céu. E assim fez dele um mártir. 

Ao saber disso, o povo acudiu ao palácio do rei para o incendiar, e só com muita dificuldade os padres e diáconos puderam contê-lo. Depois, celebrou-se com alegria o martírio do Apóstolo.

Como o rei não conseguisse por nenhum meio fazer Ifigênia mudar de resolução — apesar da insistência dos magos e das mulheres que para isso lhe enviava —, mandou atear fogo em volta da casa da jovem, a fim de queimá-la junto com as outras virgens. No entanto, o Apóstolo apareceu e afastou o fogo, que acabou atingindo e consumindo o palácio inteiro do rei. Só conseguiram escapar o rei e seu filho único, o qual, porém, foi imediatamente possuído pelo demônio e correu ao sepulcro do Apóstolo, confessando os crimes de seu pai. O rei foi atacado por uma lepra terrível, que não podia ser curada, e ele se matou com a própria espada. O povo pôs no trono o irmão de Ifigênia, que fora batizado pelo Apóstolo. Ele reinou por setenta anos e foi substituído por seu filho, que ampliou enormemente o culto cristão e encheu toda a Etiópia de igrejas em honra de Cristo. Quanto a Zaroés e Arfaxat, desde o dia em que o Apóstolo ressuscitou o filho do rei, fugiram para a Pérsia, mas foram ali vencidos por Simão e Judas [3].

3. As virtudes. — Sobre o bem-aventurado Mateus se devem notar quatro coisas.

a) Primeira: a prontidão de sua obediência, pois no mesmo instante em que Cristo o chamou, ele abandonou seu ofício de publicano e, sem temer seus senhores, deixou inacabadas as listas de impostos para juntar-se a Cristo. Essa prontidão na obediência induziu alguns ao erro, como relata Jerônimo em seu comentário a essa passagem do Evangelho: 

Porfírio e o imperador Juliano acusam-no, enquanto historiador, de mentira e inabilidade, e chamam de loucura a conduta dele e de outros que se puseram sem demora a seguir o Salvador, como teriam, sem motivo algum, seguido qualquer outro homem. Ora, Jesus dera antes tantos sinais de suas virtudes, que sem dúvida os Apóstolos já O tinham visto antes de crer. Com efeito, o brilho e a majestade divinos reluziam em sua face humana e podia, à primeira vista, atrair os que O viam. Se se atribui ao ímã a força de atrair anéis e varetas, com muito mais razão o Senhor de todas as criaturas podia atrair a si aqueles que queria.

Assim falou Jerônimo.

b) Segunda: sua generosidade ou liberalidade, pois logo serviu ao Salvador um grande banquete em sua casa, banquete que foi grande não apenas porque foi lauto, mas por quatro outras razões. Primeira, pela decisão de receber a Cristo com grande amor e afeto. Segunda, pelo mistério contido naquela acolhida e assim explicado pela Glosa sobre Lucas: “Aquele que recebe a Cristo em sua casa é tomado por uma torrente de delícias e prazeres”. Terceira, pelos grandes ensinamentos que Ele deu ali, como: “Quero misericórdia, e não sacrifício”, e: “Os sãos não precisam de médico”. Quarta, pela importância dos convidados que estavam à mesa, a saber: Cristo e seus discípulos.

“A inspiração de S. Mateus”, por Caravaggio.

c) Terceira: sua humildade, que se manifestou em duas ocasiões. Primeira, quando confessou ser um publicano. Os outros evangelistas — diz a Glosa —, por um sentimento de pudor e respeito, não lhe dão nome; mas como todo justo é seu próprio promotor, ele se chama a si mesmo de Mateus e publicano, para mostrar que ninguém deve desesperar da salvação, pois ele, de publicano, foi transformado em Apóstolo e evangelista. Segunda, quando suportou com paciência as injúrias de que era alvo. Com efeito, quando os fariseus murmuravam de Cristo por ter-se alojado na casa de um pecador, Mateus poderia com razão responder: “Sois vós os miseráveis e pecadores, pois recusais o socorro do médico pensando que sois justos, enquanto eu não posso mais ser chamado de pecador, porque recorro ao Médico da salvação e lhe mostro minhas feridas”.

d) Quarta: a honra que seu evangelho recebe na Igreja, lido com mais frequência do que o dos outros evangelistas e considerado, junto com os Salmos de Davi e as Epístolas de Paulo, entre os livros da Escritura que mais são lidos na Igreja. A razão disso é que, segundo Tiago, há três gêneros de pecado: a saber: o de orgulho, o de luxúria e o de avareza. Paulo, que antes se chamava Saulo (nome derivado do soberbíssimo rei Saul), cometeu o pecado de orgulho quando perseguiu desenfreadamente a Igreja. Davi entregou-se ao pecado de luxúria, cometendo adultério e, em consequência desse primeiro pecado e crime, mandando matar a Urias, o mais fiel de seus soldados. Mateus cometeu o pecado de avareza, pois era publicano e atraído por lucros desonestos. O posto de cobranças (o τελώνῐον, de τέλος, que, segundo Beda, quer dizer “imposto”), diz Isidoro, é um lugar em um porto marítimo onde são recebidas as mercadorias do navios e pagos os ordenados dos marinheiros.

Ainda que se possa dizer que os três foram pecadores, a penitência deles foi tão agradável ao Senhor, que Ele não apenas lhes perdoou as faltas como os cumulou de múltiplos benefícios. Do mais cruel perseguidor fez o mais fiel pregador; de um adúltero e homicida fez um profeta e salmista; de um homem ávido por riquezas e avarento fez um Apóstolo e evangelista. É por isso que as palavras desses três são tão frequentemente lidas: que ninguém que deseje converter-se perca a esperança, ao ver em que transformou a graça aqueles que tão grandes foram na culpa.

4. Sua conversão. — Note-se que, segundo o beato Ambrósio, na conversão do bem-aventurado Mateus há certas particularidades a considerar a) do lado do médico, b) do lado do enfermo curado e c) do lado da maneira de curar.

“A vocação de S. Mateus”, por Caravaggio.

a) No médico houve três qualidades: a sabedoria que conheceu o mal em sua raiz, a bondade que empregou e o poder dos remédios, que puderam transformar tão subitamente. Ambrósio fala dessas três qualidades como se falasse em nome do próprio Mateus. Quanto à primeira: “Aquele que conhece o que está oculto pode tirar a dor de meu coração e a palidez de minha alma”. Quanto à segunda: “Encontrei o Médico que habita nos Céus e semeia os remédios na Terra”. Quanto à terceira: “Só aquele que não as experimentou pode curar minhas feridas”.

b) No enfermo que é curado, isto é, em Mateus, há três ponderações a serem feitas, segundo Ambrósio. Ele se livrou perfeitamente da doença, permaneceu grato àquele que o curara e, depois que recuperou a saúde, conservou-se sempre limpo. Por isso disse: “Já não sou mais aquele publicano: não sou mais Levi. Despojei-me de Levi quando me revesti de Cristo”, que é a primeira ponderação; “Odeio minha raça, fujo de minha vida, sigo apenas a ti, Senhor Jesus, que curaste minhas feridas”, que é a segunda; “Quem me separará do amor de Deus, que reside em mim? Será a tribulação, a miséria, a fome?”, que é a terceira.

c) Segundo o bem-aventurado Ambrósio, o modo de cura foi tríplice. Primeiro, Cristo o acorrentou; depois, cauterizou-o; por fim, livrou-o de todas as podridões. Daí dizer Ambrósio, como se fora o próprio Mateus: “Fui atado com os cravos da fé e os laços da caridade. Enquanto estou preso pelos vínculos do amor, tira, Jesus, a podridão de meus pecados; corta tudo o que encontrares de vicioso”. É o primeiro modo. “Teu mandamento será para mim um cautério, e se o cautério do teu mandamento queima, queima apenas a carne podre, o vírus do contágio. De modo que, se o medicamento atordoa, é para extrair a úlcera do vício”. É o segundo modo. “Vem rápido, Senhor! Corta as paixões ocultas e profundas. Abre depressa a ferida, para o mal não se agravar. Purifica tudo o que é fétido em um banho salutar”. É o terceiro modo.

O evangelho de Mateus escrito por sua mão foi achado no ano do Senhor de 500, junto com os ossos do beato Barnabé. Este Apóstolo levava consigo o evangelho e o punha sobre os enfermos, que eram todos curados tanto pela fé de Barnabé quanto pelos méritos de Mateus.

Referências

  1. Trata-se de etimologias populares. Na verdade, Matthæus (gr. Μαθθαῖος ou Ματθαῖος) é, provavelmente, a transcrição da forma hebraica Mattai, que significa “presente” ou “dádiva” de Deus (= donatus a Deo), à semelhança de Theodorus, Adeodatus (cf. “Matanias”, em 1Cr 9, 15). Alguns autores, de posição minoritária, derivam o nome do termo hebraico emeth (= fé), sob a forma Amittai (= “Fiel”, cf. Jn 1, 1, vulg. Amathi), tendo a letra Aleph se perdido por influência do aramaico.
  2. Sobre os “dragões” e outras coisas fantásticas de que falam muitas histórias da Legenda Áurea, verificar as considerações que fizemos em um texto sobre São Jorge e em outro sobre São Cristóvão.
  3. Para saber mais sobre os fatos da vida de S. Mateus após Pentecostes, leia-se a breve exposição sobre o seu evangelho na aula n. 5 do nosso curso exclusivo Evangelhos Sinóticos.

Notas

  • Este texto foi publicado a partir da tradução brasileira da Legenda Áurea (trad. de Hilário Franco Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, pp. 778ss), mas não sem ser cotejado, antes, com o original latino e adaptado passim.

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