Jerônimo deriva de gerar, “santo”, e nemus, “bosque”, significando “bosque santo”, ou então vem de noma, que quer dizer “lei”. É por isso que sua legenda diz que Jerônimo significa “lei sagrada”. Com efeito, ele foi santo, isto é, firme, puro, coberto de sangue ou destinado às funções sagradas, como se diz dos vasos do templo, destinados a usos santos. Ele foi santo, isto é, firme em boas obras por causa de sua perseverante generosidade; limpo por causa da pureza de seu espírito; coberto de sangue por causa de sua meditação sobre a Paixão do Senhor; destinado a uso sagrado por causa de sua exposição e interpretação da Sagrada Escritura. Seu nome significa “bosque” porque ele habitou algum tempo um bosque; significa “lei” devido à disciplina regular que ensinou a seus monges ou porque explicou e interpretou a Lei sagrada.

Jerônimo significa ainda “visão de beleza” ou “selecionador de palavras”. A beleza é múltipla: a primeira é espiritual, que reside na alma; a segunda é moral, que consiste na honestidade dos costumes; a terceira é intelectual, que é a beleza dos anjos; a quarta é sobrenatural, que pertence a Deus; a quinta é celeste, que têm os santos na pátria. Jerônimo vivenciou e possuiu essa quíntupla beleza. Possuiu a espiritual nas suas diferentes virtudes; a moral na sua vida honesta; a intelectual na sua excelente pureza; a sobrenatural na sua ardente caridade; a celeste na sua caridade excelente e eterna. Foi selecionador de palavras, tanto das ditas por ele quanto pelos outros, em um caso publicando [1] e, em outro, confirmando as verdadeiras, refutando as falsas e esclarecendo as duvidosas.

Conversão de Jerônimo. — Jerônimo, filho de um nobre chamado Eusébio, era originário da cidade de Estridônia, nos confins da Dalmácia e da Panônia [2]. Ainda jovem foi para Roma, onde estudou letras gregas, latinas e hebraicas. Seu mestre de gramática foi Donato e o de retórica, o orador Vitorino. Ele se dedicava noite e dia ao estudo das Sagradas Escrituras. Delas tirou com avidez os conhecimentos que, mais tarde, abundantemente divulgou. Em certa época, ele conta em carta a Eustáquio como passava o dia a ler Cícero e a noite a ler Platão, porque o estilo descuidado dos livros dos profetas não lhe agradava, quando, por volta de meados da Quaresma, foi tomado por uma febre tão súbita e violenta, que seu corpo esfriou e o calor vital mal palpitava no seu peito. 

Já se preparava seu funeral quando, de repente, foi levado ao tribunal do Juiz, que lhe perguntou qual era sua condição, e ele respondeu abertamente ser cristão. Disse-lhe o Juiz: “Tu mentes: tu és ciceroniano, não cristão. Pois onde está o teu tesouro, ali está o teu coração”. Jerônimo calou-se, e imediatamente o Juiz mandou chicoteá-lo com rigor. Ele se pôs então a gritar: “Tende piedade de mim, Senhor, tende piedade de mim!” Os que estavam presentes rogaram ao Juiz que perdoasse àquele jovem. Este fez um juramento: “Senhor, se eu alguma vez tiver livros profanos e os ler, é porque vos terei negado”. Feito o juramento, foi mandado embora e, repentinamente, voltou à vida, descobrindo que estava banhado em lágrimas e que seus ombros estavam horrivelmente lívidos dos golpes recebidos diante daquele tribunal.

Depois disso, ele leu os livros divinos com o mesmo zelo com que antes lera os livros pagãos. Tinha 29 anos quando foi ordenado cardeal-presbítero na Igreja romana. Com a morte do Papa Libério, Jerônimo foi aclamado por todos como digno do sumo sacerdócio; mas, como havia repreendido a conduta lasciva de alguns clérigos e monges, estes, muito indignados, armaram-lhe ciladas. Conta João Beleth que colocaram uma roupa de mulher no lugar da sua, para zombar dele vergonhosamente. De fato, quando Jerônimo se levantou como de costume para as Matinas, encontrou ao lado da cama um traje que pensou ser o seu, mar era de mulher, ali colocado pelos invejosos. E vestido assim foi à igreja. Os rivais haviam feito isso para que se acreditasse que havia uma mulher no quarto dele. Vendo até onde chegava a loucura deles, retirou-se Jerônimo para a casa de Gregório de Nazianzo, bispo da cidade de Constantinopla.

Depois de ter aprendido com ele a literatura sagrada, correu para o deserto e ali sofreu por Cristo tudo o que ele mesmo relata a Eustáquio:

Todo o tempo que fiquei no deserto, naquela vasta solidão abrasada pelo calor do Sol, a qual mesmo para os monges é um lugar horrível para morar, eu acreditava estar no meio das delícias de Roma. Meus membros deformados estavam cobertos por um cilício que os tornava horrendos; minha pele ressecada adquirira a cor da carne dos etíopes. Todos os dias se passavam em lágrimas, em gemidos, e se algumas vezes um sono repugnante me prostrava, era a terra nua que servia de leito aos meus ossos secos. Nem falo de beber e de comer, pois considerava a água fria e a comida cozida dos doentes um pecado de luxúria. Embora tivesse por companheiros apenas escorpiões e feras, muitas vezes, em espírito, encontrava-me no meio de moças, e naquele corpo frio, naquela carne já morta, pululavam os incêndios dos desejos. Isso provocava choros contínuos, e eu submetia minha carne rebelde a jejuns de semanas inteiras. De dia e de noite era sempre a mesma coisa. Eu só parava de golpear o peito quando o Senhor me devolvia a tranquilidade. Mesmo minha cela me dava medo, como se fosse testemunha de meus pensamentos. Irritava-me contra mim, e sozinho embrenhava nos mais ríspidos desertos. Então — Deus é minha testemunha —, depois de lágrimas abundantes, às vezes me parecia estar entre os coros dos anjos.

Ele assim fez penitência durante 4 anos, depois voltou a Belém, onde se ofereceu para permanecer como um animal doméstico junto da manjedoura do Senhor. Relia as obras de sua biblioteca, que reunira com o maior cuidado, assim como outros livros, e jejuava até o fim do dia. Reuniu à sua volta grande número de discípulos e consagrou 55 anos e 6 meses a traduzir as Escrituras [3]. Permaneceu virgem até o fim da vida. Ainda que essa legenda diga que sempre foi virgem, ele escreveu a Pamáquio: “Prefiro a virgindade no Céu, já que não tenho a daqui”. No final estava tão esgotado que, para se levantar da cama a fim de acompanhar como podia os Ofícios do mosteiro, precisava segurar-se com as mãos em uma corda presa a um pilar. 

“São Jerônimo e o leão”, de Hans Memling.

O leão e o asno. — Certa vez, ao cair do dia, quando Jerônimo estava sentado com seus irmãos para escutar a leitura sagrada, de repente entrou no mosteiro um leão que mancava. Vendo-o, todos os irmãos fugiram, mas Jerônimo foi ao seu encontro como se ele fosse um hóspede. O leão mostrou que estava ferido na pata, e Jerônimo chamou os irmãos, ordenando-lhes que lavassem a pata dele e procurassem atentamente o lugar da ferida. Assim fazendo, descobriram que os espinhos haviam machucado a planta da pata. Todo cuidado foi dedicado ao leão, que, uma vez curado, passou a morar com eles quase como um animal doméstico. Então Jerônimo percebeu que não era tanto para curar a pata do leão quanto pela utilidade que disso se poderia tirar que o Senhor o enviara. A conselho dos irmãos, decidiu confiar-lhe a tarefa de conduzir o pasto e proteger o asno que a comunidade empregava para trazer lenha da floresta. Assim foi feito. O leão cuidava do asno como um hábil pastor, servia de companheiro que todos os dias ia aos campos com ele e era seu vigilante defensor enquanto ele pastava. Só o deixava um pouco para procurar seu próprio alimento, e todos os dias, na mesma hora, voltava com ele para casa.

Um dia, porém, o asno estava pastando e o leão adormeceu profundamente, quando passaram por ali mercadores com camelos, que viram o asno sozinho e o raptaram. Ao acordar, não achando seu companheiro, o leão pôs-se a correr daqui para lá, rugindo. Enfim, não o encontrando, voltou muito triste para as portas do mosteiros, e cheio de vergonha não teve coragem de entrar como fazia habitualmente. Os irmãos, vendo-o voltar mais tarde que de costume e sem o asno, acharam que, levado pela fome, ele comera o animal e não quiseram dar-lhe sua razão costumeira, dizendo-lhe: “Vá comer o que sobrou do burrico! Vá saciar sua gula!” Entretanto, como não estavam certos de que ele tivesse cometido essa má ação, foram ao pasto ver se encontravam um indício de que o asno estava morto. Como não encontrassem nada, foram relatar tudo a Jerônimo, que impôs ao leão a função do asno: trazer nas costas a lenha cortada. O leão suportou isso com paciência.

“São Jerônimo como Cardeal”, do Museo Thyssen-Bornemisza, de Madri.

Um dia, depois de ter cumprido sua tarefa, foi ao campo e pôs-se a correr daqui para lá, desejando saber o que fora feito de seu companheiro, quando viu ao longe chegarem negociantes, que conduziam camelos carregados, tendo um asno à frente. É hábito nessa região que, quando se vai a longa distância com camelos, estes, para seguir um caminho mais direto, são precedidos por um asno que os conduz por meio de uma corda presa ao pescoço. O leão reconheceu o asno, lançou-se com terríveis rugidos sobre eles e pôs todos os homens em fuga. Com pavorosos rugidos, batendo a cauda com força no chão, forçou os assustados e carregados camelos a ir na frente dele para o estábulo do mosteiro. Quando os irmãos viram aquilo, informaram Jerônimo, que disse: “Lavai, caríssimos irmãos, as patas de nossos hóspedes, dai-lhes de comer e aguardai sobre este assunto a vontade do Senhor”. O leão começou a correr pelo mosteiro, cheio de alegria, como fazia antigamente, prostrando-se aos pés de cada irmão. Parecia, brincando com a cauda, pedir perdão por uma falta que não cometera.

Jerônimo, que sabia o que ia acontecer, disse: “Irmãos, ide preparar o necessário para os hóspedes que vêm aqui!” Ainda falava, quando um mensageiro anunciou que estavam à porta hóspedes que queriam ver o abade. Ele foi encontrá-los. Os negociantes lançaram-se imediatamente a seus pés pedindo perdão pela falta. O abade mandou com bondade que se erguessem, retomassem seus bens e não roubassem os dos outros. Eles rogaram que o bem-aventurado Jerônimo aceitasse metade de seu azeite e os abençoasse. Depois de muita insistência, obrigaram-no a aceitar a oferenda. Prometeram ainda dar aos irmãos todo ano uma quantidade igual de azeite e impor a mesma obrigação a seus herdeiros.

“São Jerônimo penitente”, de Anthony van Dyck.

Últimos trabalhos. — Antigamente, cada um cantava na igreja o que queria, mas o imperador Teodósio, segundo João Beleth, pediu ao Papa Dâmaso que confiasse a alguém douto a tarefa de organizar o Ofício eclesiástico. Sabendo que Jerônimo conhecia perfeitamente as línguas grega e hebraica e todas as ciências, encarregou-o desta tarefa. Então, Jerônimo dividiu o saltério entre os dias da semana, atribuiu a cada um deles um noturno próprio [4] e instituiu que se cantasse no fim de cada salmo o Glória, segundo relata Sigeberto. Depois, organizou as epístolas e os evangelhos que se devem cantar ao longo de todo o ano, e de Belém enviou tudo isso ao Sumo Pontífice e aos cardeais, que o aprovaram e determinaram sua autenticidade perpétua. Depois disso, Jerônimo mandou construir um túmulo na entrada da gruta onde o Senhor fora sepultado, e foi lá que, aos 98 anos e 6 meses, ele mesmo foi sepultado.

Legado. — Vê-se o profundo respeito que Agostinho teve por ele pelas cartas que lhe dirigiu. Em uma delas, escreve desse modo: “A Jerônimo, senhor caríssimo, com sinceríssimo afeto, o respeitoso abraço de Agostinho” etc. Em outro lugar, escreve assim sobre ele: “O santo padre Jerônimo, muito versado em grego, latim e hebraico, viveu até idade avançada nos lugares santos, dedicando-se ao estudo das letras sagradas. A celebridade de seus textos resplandece do Oriente ao Ocidente como a luz do Sol”. O bem-aventurado Próspero fala assim dele em suas crônicas: “Jerônimo, padre ilustre no mundo inteiro, habitava Belém, onde prestou serviços à Igreja por seu gênio eminente e por seus estudos”. Escrevendo a Albigense, ele fala assim de si mesmo: “Não há nada que eu tenha evitado com tanto cuidado desde minha infância quanto o espírito de orgulho e a altivez de caráter que atraem a cólera de Deus”. Diz ainda: “Tenho medo também das coisas certas”. Mais adiante: “No mosteiro, exercemos a hospitalidade de todo o coração, recebemos de rosto alegre e lavamos os pés de todos os que vêm até nós, exceto aos hereges”. 

Isidoro, no seu livro Etimologias, diz que “Jerônimo era perito em três línguas, por isso sua interpretação é preferível à dos outros: ele apreende melhor o sentido das palavras e suas expressões são claras e transparentes. Além do que, sendo cristão, sua interpretação é verdadeira”. Em um de seus diálogos, Sulpício Severo, discípulo de S. Martinho, fala assim de Jerônimo, seu contemporâneo: 

Independentemente do mérito de sua fé e de suas virtudes, Jerônimo era instruído no latim, no grego e mesmo no hebraico, e em todas as ciências, de forma que ninguém ousaria comparar-se a ele, cujos combates e lutas contra os maus eram incessantes. Os hereges o odiaram porque ele sempre os atacou; os clérigos, porque sempre lhes repreendeu os crimes e a maneira de viver. Mas todas as pessoas de bem o admiravam e amavam. Os que o consideram herege são loucos. Ele está sempre lendo, sempre no meio dos livros, sempre lendo ou escrevendo, não repousa nem de dia nem de noite.

Isso disse Severo.

Conforme suas próprias palavras, teve de suportar muitos perseguidores e detratores. Mas suportou de bom grado essas perseguições, como escreveu a Asela: “Dou graças a Deus de ser digno do ódio do mundo. Falam de mim como de um malfeitor, mas sei que, para chegar ao Céu, é preciso suportar tanto a boa quanto a má reputação”. Mais adiante, continua:

Queira Deus que, em nome de meu Senhor e da justiça, toda a multidão dos infiéis me persiga! Queira Deus que o mundo se erga com dureza para me ofender! Espero apenas uma recompensa: merecer os elogios de Cristo e a realização de suas promessas. É agradável e mesmo desejável ser posto à prova quando se pode esperar o prêmio de Cristo no Céu. As graves maldições são compensadas pelos louvores divinos.

Morreu por volta do ano do Senhor de 398 [5].

Referências

  • Este texto foi publicado a partir da tradução brasileira da Legenda Áurea (trad. de Hilário Franco Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, pp. 825ss).

Notas

  1. Um dos grandes Padres da Igreja, célebre por sua tradução bíblica conhecida por Vulgata, autor de uma extensa obra, Jerônimo (c. 347-420) é uma das autoridades mais citadas pela Legenda áurea, em que aparece 48 vezes, em 28 diferentes capítulos.
  2. Isto é, em uma região entre as atuais Croácia e Hungria.
  3. Na verdade, o projeto bíblico que o Papa Dâmaso confia a Jerônimo começa em 383, em Roma, e se conclui entre 404 e 406, em Belém. Um trabalho, portanto, de no máximo 23 anos. Mas, ao contrário do que se costuma pensar, a versão Vulgata (lt. “comum”, “corrente”, “divulgada” etc.) das SS. Escrituras não é uma tradução integral de S. Jerônimo. Com efeito, 1) o texto do Novo Testamento foi somente revisado com base em uma versão latina já em uso (a chamada Vetus latina), cotejada com os melhores códices gregos de que se dispunha (essa revisão, no entanto, parece ter-se limitado aos evangelhos, enquanto a dos demais livros não foi, ao que tudo indica, obra de Jerônimo, mas de algum discípulo seu, identificado por alguns como Rufino, o Sírio); 2) por sua vez, o texto do Antigo Testamento foi em parte traduzido, em parte corrigido ou apenas revisado: a) os protocanônicos foram todos traduzidos diretamente do hebraico, com exceção dos Salmos, que correspondem a uma simples correção do chamado Saltério galicano; b) dos deuterocanônicos, apenas os livros de Tobias e Judite são tradução de Jerônimo, a partir de um texto aramaico, enquanto os restantes “procedem da Vetus latina, salvo alguns fragmentos de Daniel, que S. Jerônimo traduziu a partir do texto de Teodócio, na falta de um texto semítico” (Miguel A. Tábet, Introducción general a la Biblia. 4.ª ed., Madrid: Palabra, 2003, p. 276). Desses mais ou menos 23 anos de pesquisa, nada menos do que 15 foram dedicados ao Antigo Testamento, de 390 até a conclusão dos trabalhos no primeiro lustro do séc. V. (Nota da Equipe CNP.)
  4. Na Liturgia (até as reformas de 1969), noturno era uma parte do Ofício da noite: consistia, basicamente, de alguns salmos, leituras e responsórios (cantos de vozes alternadas). No Ofício monástico, havia dois noturnos nos dias comuns e três nos dias festivos.
  5. Na verdade, por volta de 420 d.C. (Nota da Equipe CNP).

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