Certa feita, enquanto participava das costumeiras disputas acadêmicas na Universidade de Paris [1], Santo Tomás de Aquino foi confrontado com a seguinte questão, que mais parece uma brincadeira de aluno do que um problema filosófico: O que é mais forte? A verdade, vinho, o rei ou a mulher?

O que mais surpreende, porém, não é tanto a pergunta quanto a seriedade com que lhe respondeu o Doutor Angélico. Para a nossa sorte, a resposta do Aquinate, ou ao menos um resumo do que ele disse, nos foi preservada por escrito e é um excelente testemunho de que, além de bem humorado, Tomás de Aquino sabia dar às perguntas mais “bobas” as respostas mais brilhantes e encontrar em meio ao que para nós pode parecer “tolice” as verdades mais importantes.

Vejamos abaixo como o Doutor Angélico resolve esse “intrincado” problema [2]!


Se a verdade é mais forte do que o vinho, o rei e a mulher

1. Quanto à primeira questão, perguntou-se se a verdade é mais forte do que o vinho, o rei e a mulher.

E parece que seja o vinho, pois é o que mais afeta o homem. Mas o mesmo se aplica ao rei, que obriga o homem ao que é mais difícil, a saber: pôr em risco a própria vida. E o mesmo vale ainda com respeito à mulher, a quem estão sujeitos inclusive os reis.

2. Mas, em sentido contrário, lê-se em III Esdras, 4, 35 [3]: “A verdade é mais forte”.

3. Resposta. Deve-se dizer que esta é a questão que foi proposta a alguns jovens, tal como narra o livro de Esdras.

Em primeiro lugar, deve-se saber que, se consideramos essas quatro coisas em si mesmas (ou seja, o vinho, o rei, a mulher e a verdade), não podemos compará-las, uma vez que não pertencem ao mesmo gênero. No entanto, se as consideramos por referência a algum efeito comum, elas convêm em um mesmo aspecto e podem assim ser comparadas. Ora, o efeito em que elas se assemelham é a imutação do coração humano. É preciso saber, por conseguinte, qual delas é a mais capaz de imutar o coração do homem.

Pois bem, deve-se ter em mente que o homem está sujeito a alterações quanto ao corpo e quanto à sua natureza animal, que é sensível e inteligível. A parte inteligível, por sua vez, é prática e especulativa.

a) Pois bem, dentre as coisas que estão naturalmente ordenadas a imutar a disposição do corpo, o vinho é a principal, já que embriaga e deixa a voz entorpecida.

b) Mas, dentre as coisas que imutam o apetite sensitivo, a principal é o prazer, sobretudo o venéreo; e, nesse sentido, a mulher é mais forte.

c) Do mesmo modo, no que se refere à ação e às coisas humanas, o rei é quem mais poder detém.

d) Na ordem, porém, das coisas especulativas, a verdade é a mais excelente e poderosa.

Ora, as forças corporais estão subordinadas às animais, e estas, por sua vez, às intelectuais. As virtudes intelectuais de ordem prática, no entanto, subordinam-se às puramente especulativas.

Por conseguinte, a verdade, considerada em si mesma, é mais digna, excelente e forte.

Notas

  1. Trata-se do Quodlibet XII, q. 14 a. 1, traduzido pela nossa equipe com base na versão digital do Corpus Thomisticum, disponível aqui.
  2. Duas vezes ao ano, pelo Natal e pela Páscoa, celebravam-se nas universidades medievais do século XIII as chamadas disputas quodlibetais (quæstiones de quolibet), um período de discussões acadêmicas, feitas em público e não sem certa solenidade, sobre temas os mais variados, propostos livrementes pelos professores e alunos assistentes. Era uma forma ao mesmo tempo livre e rigorosa, amoldada ao método da demonstração silogística, de exercitar a inteligência e promover o debate no meio universitário. A um mestre regente se propunha algum problema, fosse de filosofia ou teologia, que ele devia solucionar em seguida do modo mais claro possível. A solução do problema era depois transcrita e arquivada. Foi assim que nos chegaram as quæstiones protagonizadas pelo Angélico.
  3. Trata-se de um livro apócrifo do Antigo Testamento.

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