Estamos em uma época de protestos políticos beligerantes, que incluem linguagem áspera, ataques pessoais, xingamentos e até mesmo termos degradantes e profanos. Há tweets e monólogos raivosos, comentários ásperos em redes de notícias e conferências de imprensa, e entrevistas que parecem mais brigas do que debates. Dito de modo mais agradável, estes são tempos de discurso “pesado”.

Qual é o ensinamento geral das Escrituras quanto a esse tipo de linguagem pesada? Existem alguns limites e regras básicas? Vamos dar uma olhada.

A palavra “civilidade” data de meados do século XVI e tem um significado mais antigo, referente a quem possuía a qualidade de ter sido formado em ciências humanas. Em ambientes acadêmicos, o debate (pelo menos historicamente) tendia a ser matizado, cuidadoso, cauteloso, formal e retórico. Suas regras frequentemente incluíam menções aos oponentes com títulos de honra (doutor, professor etc.) e eufemismos como “meu digno oponente”. Por consequência, quando a palavra entrou no uso comum, passou a significar um discurso ou comportamento polido, cortês, gentil e moderado.

Como se pode imaginar, existem muitas variações culturais de “civilidade”. E essa percepção é muito importante quando olhamos para os dados bíblicos sobre o que constituía o discurso civil. Francamente, o mundo bíblico tinha um discurso muito menos delicado que os Estados Unidos do século XXI. As Escrituras, incluindo o Novo Testamento, estão repletas de discursos vigorosos. Jesus, por exemplo, realmente discute com seus oponentes, e até os xinga. Já o veremos. Mas as Escrituras também aconselham a caridade e advertem quanto ao uso desnecessário de um discurso encolerizado. No fim das contas, deve-se buscar um equilibrado testemunho bíblico de civilidade, ao mesmo tempo que se levam em conta as variáveis culturais em voga.

“Jesus expulsa os mercadores do Templo”, de Theodoor Rombouts.

Vamos examinar alguns dos textos que aconselham a caridade, bem como uma noção moderna e americana de civilidade:

  1. Todo aquele que se irar contra seu irmão será castigado pelos juízes. Aquele que disser a seu irmão: ‘Imbecil’, será castigado pelo Grande Conselho. Aquele que lhe disser: ‘Louco’, será condenado ao fogo da geena” (Mt 5, 22).
  2. Nenhuma palavra má saia da vossa boca, mas só a que for útil para a edificação, sempre que for possível, e benfazeja aos que ouvem” (Ef 4, 29).
  3. “Pais, deixai de irritar vossos filhos, para que não se tornem desanimados” (Cl 3, 21).
  4. “Com ela (a língua) bendizemos o Senhor, nosso Pai, e com ela amaldiçoamos os homens, feitos à semelhança de Deus. De uma mesma boca procedem a bênção e a maldição. Não convém, meus irmãos, que seja assim” (Tg 3, 9-10).
  5. “Todo homem deve ser pronto para ouvir, porém tardo para falar e tardo para se irar” (Tg 1, 19).
  6. “Que as vossas conversas sejam sempre amáveis, temperadas com sal, e sabei responder a cada um devidamente” (Cl 4, 6).
  7. “Assim, pois, consolai-vos mutuamente e edificai-vos uns aos outros” (1Ts 5, 11).
  8. “Agora, porém, deixai de lado todas estas coisas: ira, animosidade, maledicência, maldade, palavras torpes da vossa boca” (Cl 3, 8).
  9. “As palavras do sábio alcançam-lhe o favor, mas os lábios do insensato causam a sua perda” (Ecle 10, 12).
  10. “As palavras calmas dos sábios são mais bem ouvidas do que os gritos de um chefe entre insensatos” (Ecle 9, 17).
  11. “Portanto, apliquemo-nos ao que contribui para a paz e para a mútua edificação” (Rm 14, 19).
  12. “Irmãos, se alguém for surpreendido numa falta, vós, que sois animados pelo Espírito, admoestai-o em espírito de mansidão. E tem cuidado de ti mesmo, para que não caias também em tentação!” (Gl 6, 1).
  13. “Assim deveis agora perdoar-lhe e consolá-lo para que não sucumba por demasiada tristeza” (2Cor 2, 7).

Todos esses textos recomendam um discurso comedido, caridoso e edificante. Xingamentos e expressões odiosas ou desnecessárias de raiva são condenados. E esta é uma forte tradição bíblica, especialmente no Novo Testamento.

Mas há também, evidentes na Bíblia, fortes contrastes com essa instrução. E muitos vindos de uma fonte improvável: Jesus. Paulo, que escreveu muitos dos conselhos acima, também se envolveu, muitas vezes, em denúncias ruidosas de seus oponentes, e até mesmo de membros da Igreja primitiva. Vejamos algumas passagens abaixo, primeiro de Jesus, depois de Paulo e de outros Apóstolos:

  1. Jesus disse: “Raça de víboras, maus como sois, como podeis dizer coisas boas?” (Mt 12, 34).
  2. E Jesus se voltou contra eles e disse: “Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas! Vós fechais aos homens o Reino dos Céus. Vós mesmos não entrais e nem deixais que entrem os que querem entrar. [...] Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas! Percorreis mares e terras para fazer um prosélito e, quando o conseguis, fazeis dele um filho do inferno duas vezes pior que vós mesmos. [...] Guias cegos! Filtrais um mosquito e engolis um camelo. Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas! Limpais por fora o copo e o prato e por dentro estais cheios de roubo e de intemperança. [...] Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas! Sois semelhantes aos sepulcros caiados: por fora parecem formosos, mas por dentro estão cheios de ossos, de cadáveres e de toda espécie de podridão. […] e dizeis: ‘Se tivéssemos vivido no tempo de nossos pais, não teríamos manchado nossas mãos como eles no sangue dos profetas’. Testemunhais assim contra vós mesmos que sois de fato os filhos dos assassinos dos profetas. Acabai, pois, de encher a medida de vossos pais! Serpentes! Raça de víboras! Como escapareis ao castigo do inferno?” (Mt 23, 13.15.24-25.27.30-33).
  3. Jesus disse-lhes: “Se Deus fosse vosso pai, vós me amaríeis, porque eu saí de Deus. É dele que eu provenho, porque não vim de mim mesmo, mas foi ele quem me enviou. [...] Vós tendes como pai o demônio e quereis fazer os desejos de vosso pai. […] Quem é de Deus ouve as palavras de Deus, e se vós não as ouvis é porque não sois de Deus” (Jo 8, 42.44a.47).
  4. “Jesus disse-lhes: ‘Isaías com muita razão profetizou de vós, hipócritas, quando escreveu: Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim’” (Mc 7, 6).
  5. “Respondeu-lhes Jesus: ‘Ó geração incrédula, até quando estarei convosco? Até quando vos hei de aturar?’” (Mc 9, 19a).
  6. Jesus disse aos discípulos: “Se vós, pois, que sois maus, sabeis dar boas coisas a vossos filhos, quanto mais vosso Pai celeste dará boas coisas aos que lhe pedirem” (Mt 7, 11).
  7. Jesus disse à multidão: “Não espero a minha glória dos homens, mas sei que não tendes em vós o amor de Deus” (Jo 5, 41-42).
  8. “Fez ele um chicote de cordas, expulsou todos do templo, como também as ovelhas e os bois, espalhou pelo chão o dinheiro dos trocadores e derrubou as mesas” (Jo 2, 15).
  9. “Jesus acrescentou: ‘Não vos escolhi eu todos os doze? Contudo, um de vós é um demônio!’” (Jo 6, 70).
  10. Paulo disse: “Ó insensatos gálatas, [...] quem, pois, vos cortou os passos para não obedecerdes à verdade? [...] Oxalá acabem por mutilar-se os que vos inquietam!” (Gl 3,1a; 5, 7b.12).
  11. Paulo contra os falsos apóstolos: “Mas o que faço, continuarei a fazer, para cortar pela raiz todo pretexto àqueles que procuram algum pretexto para se envaidecerem e se afirmarem iguais a nós. Esses tais são falsos apóstolos, operários desonestos, que se disfarçam em apóstolos de Cristo, o que não é de espantar. Pois, se o próprio Satanás se transfigura em anjo de luz, parece bem normal que seus ministros se disfarcem em ministros de justiça, cujo fim, no entanto, será segundo as suas obras” (2Cor 11, 12-15).
  12. Paulo sobre os cretenses: “Um dentre eles, o ‘profeta’ deles disse: ‘Os cretenses são sempre mentirosos, feras selvagens, glutões preguiçosos’. Esta asserção reflete a verdade. Portanto, repreende-os severamente, para que se mantenham sãos na fé” (Tt 1, 12-13).
  13. Pedro contra os dissidentes: “Audaciosos, arrogantes, não temem falar injuriosamente das glórias (dos anjos) [...]. Mas estes, quais brutos destinados pela Lei natural para a presa e para a perdição, injuriam o que ignoram, e assim da mesma forma perecerão. Esse será o salário de sua iniquidade. […] Têm os olhos cheios de adultério e são insaciáveis no pecar. Seduzem pelos seus atrativos as almas inconstantes; têm o coração acostumado à cobiça; são filhos da maldição. [...] Aconteceu-lhes o que diz com razão o provérbio: ‘O cão voltou ao seu vômito’ (Pr 26, 11); e: ‘A porca lavada volta a revolver-se no lamaçal’” (2Pd 2, 10.12.14.22).
  14. Judas contra dissidentes: “Assim também estes homens, em seu louco desvario, contaminam igualmente a carne, desprezam a soberania e maldizem as glórias celestes. [...] Estes, porém, falam mal do que ignoram. Encontram eles a sua perdição naquilo que não conhecem, senão de um modo natural, à maneira dos animais destituídos de razão. Ai deles, porque andaram pelo caminho de Caim […]. Esses fazem escândalos nos vossos ágapes. Banqueteiam-se convosco despudoradamente e se saciam a si mesmos. São nuvens sem água, que os ventos levam! Árvores de fim de outono, sem fruto, duas vezes mortas, desarraigadas! Ondas furiosas do mar, que arrojam as espumas da sua torpeza! Estrelas errantes, para as quais está reservada a escuridão das trevas para toda a eternidade! […] Estes são murmuradores descontentes, homens que vivem segundo as suas paixões, cuja boca profere palavras soberbas e que admiram os demais por interesse” (Jd 8.10-11a.12-13.16).

A maioria das passagens acima violaria as normas modernas de discurso civilizado. Acaso são pecaminosas? Elas são Palavra de Deus! No entanto, parecem bastante chocantes para os ouvidos modernos. Imagine entrar em uma máquina do tempo e ouvir Jesus denunciar as multidões e chamá-las de “filhos do diabo”. Isto realmente deixaria estupefata uma pessoa do século XXI!

“Disputa sobre a Trindade”, de Andrea del Sarto.

Citações deste gênero ajudam a ilustrar bem a dimensão cultural da “civilidade”. O resultado final é que varia bastante o que as pessoas consideram um discurso civilizado. Em algumas culturas, existe uma maior tolerância à raiva. Em Boston e Nova Iorque, são comuns comentários nervosos e debates intensos, cheios de interrupções. Mas, ao norte do centro-oeste e em partes do extremo sul [dos EUA], as conversas são mais gentis e reservadas.

Na época de Jesus, o discurso encolerizado era aparentemente mais “normal”, pois — como vemos — o próprio Senhor o emprega muitas vezes, até mesmo xingando as pessoas de “hipócritas”, “raça de víboras”, “mentirosos” e “perversos”. No entanto, as mesmas Escrituras que registram esses fatos sobre Jesus também ensinam que Ele nunca pecou. Portanto, naquela época, o uso de tais termos não era considerado pecaminoso.

Mas atenção! Atenção aqui. Isso não significa que simplesmente não haja problema em falarmos assim porque Jesus falou. Não vivemos naquela época, e em nossa cultura esse tipo de diálogo raramente é aceitável e, via de regra, o tiro sai pela culatra. Existem normas culturais que devemos respeitar para permanecer no reino da caridade. Nem sempre sabemos com clareza como definir civilidade de modo preciso em todas as instâncias. Uma resposta antiga para essas coisas difíceis de definir é: I know it when I see it. — “Eu sei o que é quando vejo acontecer”. Portanto, talvez a definição de civilidade seja menos uma ciência do que uma arte. Mas, é claro, tendemos a preferir um discurso mais gentil nos dias de hoje.

Por outro lado, também tendemos a ser um pouco irritáveis e hipersensíveis. E o resultado paradoxal de insistir em uma maior civilidade é que ficamos “indignados” (outraged, uma das palavras mais usadas em inglês atualmente) com muita facilidade. Ficamos ofendidos com o que não foi intencional e presumimos que o mero ato de discordar seja, de alguma forma, arrogante, intencionalmente ofensivo ou mesmo odioso. Sentimo-nos provocados com muita facilidade e ficamos ofendidos com muita rapidez! Tudo isso aumenta ainda mais a raiva, e acusações de ódio e intolerância são lançadas de um lado para o outro quando há apenas uma discordância sincera.

As Escrituras nos dão dois lembretes de equilíbrio. Primeiro, que devemos falar a verdade no amor, com compaixão e compreensão. Mas elas também retratam uma época em que as pessoas eram menos melindrosas, sensíveis e ansiosas quando ocorriam desavenças. Podemos aprender com ambas as tradições bíblicas. A fórmula bíblica parece ser “clareza” com “caridade”, a verdade com um equilíbrio entre tenacidade e ternura. Um velho ditado vem à mente: Say what you mean, mean what you say, but don’t say it mean. — “Diga o que quer dizer, seja sincero, mas não seja rude.”

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