A transmissão da verdade de uma geração à outra é, obviamente, a principal razão por que se instituem seminários destinados à educação do clero. 

O cristianismo é uma ideia religiosa. Sobre-humana em sua origem, ela difere de todas as outras religiões. Como o homem difere do quadrúpede, da ave ou do réptil, assim o cristianismo difere das superstições, heresias e filosofias ao seu redor. Ele possui uma teologia e um sistema ético próprios, que constituem sua indestrutível identidade. Como assegurar e perpetuar no mundo esse dom do alto? Como preservar para o povo cristão esse dom, tão especial, tão divino, e que tão facilmente se perde ou se esconde em meio às falsidades que se impõem e abundam no mundo? 

A providência divina é a seguinte. Cada círculo de cristãos tem o seu próprio sacerdote, que é o representante da mensagem divina para esse círculo, em seus aspectos teológicos e éticos. Ele ensina o povo, catequiza seus filhos, trazendo todos e cada um deles àquela forma de doutrina, que é a sua própria. 

Mas a Igreja é formada por vários desses círculos. Como assegurar que todos eles professem uma única e mesma doutrina? E que ela seja a dos Apóstolos? 

Da seguinte forma: pela regra de que seus respectivos sacerdotes devem todos ser ensinados por um único e mesmo centro, ou seja, por seu pai comum, o bispo da diocese. Eles são educados em uma escola, isto é, em um seminário; sob a regra, pela voz e o exemplo do único pastor de todos esses grupos ou círculos de cristãos, dos quais eles todos no futuro serão os professores. A doutrina católica, a moral católica, o culto e a disciplina católicas, o caráter, a vida e a conduta cristãs, tudo o que é necessário para ser um bom sacerdote, todos e cada um deles o aprendem nessa escola religiosa, que é a preparação designada para os ofícios ministeriais. 

Assim como os jovens são preparados para sua vocação secular por escolas e professores que lhes ensinem o que ela requer, como as escolas clássicas e as comerciais, os professores de cada profissão e os de várias artes e ciências, assim também os ministros sagrados da Igreja se tornam verdadeiros representantes de seu bispo quando são designados ao cuidado do povo cristão, porque eles provêm de um único centro de educação e da tutela de uma cabeça.

É por isso que Santo Inácio, o bispo mártir de Antioquia, no primeiro século da Igreja, falando da hierarquia eclesiástica e comparando a união das Ordens sacras com o bispo, refere-se a uma cítara em perfeita sintonia. Ele escreve em sua Epístola aos Efésios (n. 4): 

Segue daí, que vos convém avançar junto, de acordo com o pensamento do bispo, como aliás fazeis. Pois vosso presbitério digno de tão boa reputação, digno que é de Deus, sintoniza com o bispo como cordas com a cítara. Por isso, no acorde de vossos sentimentos e em vossa caridade harmoniosa, Jesus Cristo é que é cantado. Mas também, um por um, chegais a formar um coro, para cantardes juntos em harmonia; acertando o tom de Deus na unidade, cantais em uníssono por Jesus ao Pai, a fim de que vos escute.

E se, em todos os tempos, essa simples unidade, esse entendimento perfeito dos membros com a cabeça, é necessário para a ação salutar da Igreja, nestes tempos perigosos ela é especialmente necessária. Sei que todos os tempos são perigosos, e que, em cada época, mentes sérias e aflitas, vivamente atentas à honra de Deus e às necessidades do homem, são capazes de considerar que nenhuma época é tão perigosa quanto a sua. Em todos os tempos o inimigo das almas ataca com fúria a Igreja, que é verdadeira mãe delas, e, se não consegue lhe causar prejuízo, ao menos a ameaça e aterroriza. E todos os tempos têm suas provações especiais, que outros não têm. Vou ao ponto de admitir que havia certos perigos, específicos aos cristãos de outras épocas, que hoje não mais existem. 

Mesmo assim, considero que as provações que se nos afiguram são tais que assustariam e deixariam atordoados até mesmo corações corajosos como Santo Atanásio, São Gregório Magno ou São Gregório VII. E eles confessariam que, por mais obscura que várias vezes lhes parecesse a perspectiva de seu tempo, o nosso tem uma escuridão de um tipo diferente de qualquer outra que tenha existido antes.

O perigo especial do tempo que temos diante de nós é a difusão desta praga da falta de fé [1], que os Apóstolos e Nosso Senhor mesmo predisseram como a pior calamidade dos últimos tempos da Igreja. E está sobrevindo ao mundo uma sombra, pelo menos, uma imagem típica dos últimos tempos. Eu não pretendo presumir que estes tempos são os últimos; eles têm a má prerrogativa, no entanto, de se parecerem com aquele período mais terrível, do qual se diz que os próprios eleitos correrão o risco de se perderem [...].

Estou falando de males que, em sua intensidade e extensão, são peculiares destes tempos. Mas não falei ainda da raiz de todas essas falsidades — que sempre esteve escondida, mas nesta época foi deixada à vista e desavergonhadamente confessada —, ou seja, desse mesmo espírito de falta de fé, ao qual me referi como ao grande mal dos nossos tempos e do qual as objeções que nós constantemente ouvimos e ouviremos serem feitas ao cristianismo ganham sua plausibilidade [2].

A proposição elementar dessa nova filosofia, agora tão ameaçadora, é a seguinte: que em todas as coisas nós devemos ir pela razão, e em nada pela fé; que as coisas são conhecidas e devem ser recebidas à medida que puderem ser provadas. Todos os outros conhecimentos têm provas, dizem seus defensores, por que a religião deveria ser uma exceção? E o modo de prova é avançar do que sabemos para o que não sabemos, de fatos sensíveis e tangíveis para conclusões seguras. O mundo perseguiu o caminho da fé no que diz respeito à natureza física, e o que adveio disso? Até trezentos anos atrás eles acreditavam, porque era essa a tradição, que os corpos celestes estavam fixos em esferas cristalinas sólidas e se moviam ao redor da terra no curso de 24 horas! Por que aquele método que tanto fez no campo da física não poderia beneficiar também esse conhecimento superior que o mundo acredita ter ganhado através da revelação? Não há revelação alguma de cima. Não há exercício de fé algum. Ver e provar são a única base para crer. Eles vão adiante dizendo que, como a prova admite graus, dificilmente se pode ter uma demonstração fora da matemática; nós não podemos ter jamais um simples conhecimento que seja; as verdades são apenas probabilidades. Assim, a fé se torna um erro de duas formas: primeiro, porque usurpa o lugar da razão e, segundo, porque implica um assentimento absoluto a doutrinas, e isso é dogmático, e assentimento absoluto é irracional. Do mesmo modo você encontrará, certamente no futuro, mas — que digo? — mesmo agora, mesmo agora, que os escritores e pensadores do momento sequer acreditam que Deus existe. Eles não acreditam tampouco no objeto — um Deus pessoal, uma Providência e um Governador moral; e, em segundo lugar, aquilo em que eles acreditam, isto é, que há alguma causa primeira ou outra, eles não o sustentam com fé, absolutamente, mas como uma probabilidade.

Vós me direis que suas teorias têm estado no mundo e não são coisa nova. Não. Indivíduos já a tinham trazido à luz, mas elas não eram ideias correntes e populares. O cristianismo não teve jamais a experiência de um mundo simplesmente irreligioso. Talvez a China seja uma exceção. Nós não a conhecemos o suficiente para dizer, mas considerai o que era o mundo greco-romano quando o cristianismo apareceu. Ele era repleto de superstição, não de infidelidade. Havia bastante descrença em todos, quanto à mitologia, e em cada homem instruído, quanto ao castigo eterno. Mas não havia um expurgo da ideia de religião, nem de poderes invisíveis que governavam o mundo. Quando eles falavam do fado (do destino), mesmo aqui eles consideravam que havia uma grande regência moral do mundo, governada por leis inexoráveis. Seus primeiros princípios eram os mesmos que os nossos. Mesmo em meio aos céticos de Atenas, São Paulo podia apelar ao Deus desconhecido. Mesmo à população ignorante de Listra, ele podia falar do Deus vivo que do céu lhes fazia o bem. E, então, quando mais tarde vieram os bárbaros do norte, eles, em meio a todas as suas superstições, acreditavam numa Providência invisível e na lei moral. Nós, porém, estamos nos aproximando de uma época em que o mundo não reconhece nossos primeiros princípios [...].

Que a disciplina de um seminário seja exatamente o necessário para confrontar o atual estado das coisas, não é preciso que seja eu a sugeri-lo [...]. O seminário é a única verdadeira garantia da criação de um espírito eclesiástico. E é essa a primeira arma de verdade para confrontar a época, não a controvérsia. É claro que todo católico deve ter uma abordagem inteligente da própria religião, como diz São Pedro, mas ainda assim a controvérsia não é o instrumento por meio do qual se deve resistir ao mundo e vencê-lo. E isso nós podemos ver se estudarmos essa epístola, que traz consigo uma autoridade própria, por ter sido colocada pelo Espírito Santo na boca do chefe dos Apóstolos. O que ele diz a todos os cristãos, é especialmente conveniente aos sacerdotes. De fato, ele a escreveu em um tempo durante o qual os deveres tanto de uns quanto de outros, contra o mundo pagão, eram os mesmos. Em primeiro lugar, ele os recorda do que eles realmente eram enquanto cristãos, e com certeza nós devemos tomar essas palavras como especialmente dirigidas a nós, do clero. “Vós sois uma geração escolhida, um sacerdócio régio, uma nação santa, um povo adquirido para Deus…” (1Pd 2, 9). 

Nesse espírito eclesiástico, limitar-me-ei a mencionar um espírito de seriedade ou recolhimento. Nós devemos adquirir o hábito de sentir que estamos na presença de Deus, que Ele vê o que o estamos fazendo; e um gosto de que Ele o faça, um amor por esse conhecimento, um prazer nesta reflexão: “Vós, Senhor, me vedes”. Um sacerdote que sinta isso profundamente não se comportará mal em uma sociedade misturada. Isso o guardará da familiaridade excessiva com quaisquer do seu povo; o guardará das muitas palavras, do falatório néscio ou imprudente; o ensinará a ordenar os seus pensamentos. Será um princípio de desapego entre ele e até mesmo seu próprio povo; pois aquele que se habituou a confiar no Deus Invisível, jamais será capaz de se apegar realmente a qualquer de suas criaturas. E assim se criará uma elevação da mente, que é a verdadeira arma que ele deve empunhar contra a falta de fé do mundo (daí o que diz São Pedro em 1Pd 2, 12.15; 3, 16).

Eis o que eu considero ser a verdadeira arma com que a falta de fé do mundo deve ser combatida. 

E, por fim, mais importante na mesma guerra, e aqui também vereis como ela está ligada ao seminário, é um conhecimento sadio, correto e completo da teologia católica. Isso, ainda que não seja controverso, é a melhor arma (depois de uma vida santa) na controvérsia. Qualquer criança bem instruída no catecismo é, mesmo que não o pretenda, uma verdadeira missionária. E por quê? Porque o mundo está cheio de dúvidas e incertezas, e de doutrina inconsistente — e uma ideia claramente consistente da verdade revelada, pelo contrário, não pode ser encontrada fora da Igreja Católica. Consistência e plenitude são um ótimo argumento para persuadir da verdade de um sistema. Se não for consistente, ele não é verdadeiro. 

Referências

  • [São] John Henry Newman. The Infidelity of the Future (Opening of St. Bernard’s Seminary, 2nd October 1873). in: Faith and Prejudice and Other Unpublished Sermons. New York: Sheed & Ward, 1956, pp. 114-128.

Notas

  1. A expressão infidelity é central para este sermão, constando inclusive de seu título. Nesta tradução, achamos por bem vertê-la para “falta de fé”, ao invés de seu cognato “infidelidade”, porque a expressão traduz melhor a apostasia ilustrada por Newman (Nota da Equipe CNP).
  2. Aqui e em um outro trecho mais abaixo, fizemos algumas leves adaptações na tradução, com vistas à clareza e ao melhor entendimento do texto (Nota da Equipe CNP).

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