O Papa Leão XIII, cujo nascimento completa 210 anos neste ano, é talvez mais conhecido por seu marianismo. Ele foi um dos maiores promotores do Santo Rosário e foi o primeiro Pontífice a aplicar o título de Medianeira a Nossa Senhora. Porém, ele foi um dos maiores pensadores da modernidade, tendo esboçado para o mundo moderno uma filosofia do homem e da sociedade singularmente católica.

Antes de debatermos os escritos de Leão XIII, é necessário analisar o contexto em que foram elaborados. O nome de batismo de Leão XIII era Vicente Joaquim Pecci. Ele nasceu em 1810, numa Itália em que o Papa era mantido prisioneiro por Napoleão. Apesar da posterior derrota de Napoleão e da restauração dos Estados Pontifícios, as sementes da revolução já haviam sido lançadas, e durante as décadas seguintes a Igreja sofreria constantes ataques dos que buscavam unificar a Itália sob um governo liberal laico. Em 1870, Roma foi ocupada pelo novo Estado italiano. Pela primeira vez em mais de mil anos, o Papa não tinha posses temporais. Quando Leão XIII foi eleito em 1878, foi o primeiro Papa em séculos a não exercer nenhum poder temporal e a ficar integralmente à mercê de um Estado hostil. Leão XIII foi o primeiro Papa a passar seu pontificado inteiro atrás dos muros do Vaticano, impossibilitado de sair, para que não se tornasse vítima de uma agressão secular.

Embora a perda dos Estados Pontifícios tenha sido uma tragédia, ela permitiu que o Papa voltasse sua atenção para assuntos espirituais e para o ensino dos fiéis. Foi nesse contexto que Leão XIII desenvolveu seu grande corpus doutrinal, que procurou abordar os problemas centrais da sua e da nossa época.

As encíclicas de Leão XIII parecem ter sido escritas hoje e lidam com problemas que ainda perturbam a mente da sociedade moderna. Primordiais entre eles estão o papel da religião na sociedade e o problema do indiferentismo religioso, o papel do matrimônio e da família, o problema da criação de uma sociedade justa, e as ideologias que militam contra uma visão cristã da sociedade. 

Na modernidade, estamos acostumados a viver numa sociedade secular que exila a religião para a esfera privada. “Não falamos de Deus”, proclamou há alguns anos um político britânico de destaque. Nada poderia se opor mais à visão católica da sociedade tal como enunciada por Leão, particularmente em sua encíclica Immortale Dei. Embora a Igreja não tenha preferência por nenhum tipo de governo, toda autoridade na sociedade tem origem em Deus e está sujeita à lei divina

Apesar de Igreja e Estado serem domínios com funções distintas, Leão XIII afirma: 

Necessário é, pois, que haja entre os dois poderes um sistema de relações bem ordenado, não sem analogia com aquele que, no homem, constitui a união da alma com o corpo...: um tem por fim próximo e especial ocupar-se dos interesses terrenos, e o outro proporcionar os bens celestes e eternos (n. 19).

Portanto, é terrível para a Igreja defender um conjunto de valores enquanto o Estado arvora-se em princípios completamente opostos aos dela. Na sociedade moderna, todas as religiões são tratadas igualmente como verdadeiras, falsas ou com indiferença. A perspectiva da Igreja é radicalmente diferente. Leão XIII afirma que a obrigação de seguir a verdadeira religião vincula indivíduos e Estados: 

O maior de todos os deveres é abraçar de espírito e de coração a religião, não aquela que cada um prefere, mas aquela que Deus prescreveu e que provas certas e indubitáveis estabelecem como a única verdadeira entre todas. Assim também as sociedades não podem sem crime comportar-se como se Deus absolutamente não existisse, ou prescindir da religião como estranha e inútil, ou admitir uma indiferentemente, segundo seu beneplácito (n. 11). 

O Estado moderno, diz Leão:

não se julga jungido a nenhuma obrigação para com Deus, não professa oficialmente nenhuma religião, não é obrigado a perquirir qual é a única verdadeira entre todas, nem a preferir uma às outras, nem a favorecer uma principalmente; mas a todas deve atribuir a igualdade em direito, com este fim apenas, de impedi-las de perturbar a ordem pública (n. 32).

Relativamente à religião, pensar que é indiferente tenha ela formas disparatadas e contrárias equivale simplesmente a não querer nem escolher nem seguir qualquer delas (n. 37).

Esses ensinamentos parecem severos aos ouvidos modernos, mas realçam uma verdade essencial. A religião é importante. A religião professada por uma pessoa é importante. A religião professada pelos nossos governante é importante. Ela não é um assunto puramente neutro ou privado.

Igualmente inaceitável para o Papa Leão XIII é a prática — tão comum entre os políticos modernos! — de expressar em privado um conjunto de convicções religiosas e morais e outro em público. Como se estivesse prevendo a existência dos políticos contemporâneos [1], Leão XIII escreve o seguinte: 

Não é, tampouco, permitido ter duas maneiras de proceder: uma em particular e outra em público, de modo a respeitar a autoridade da Igreja na vida privada e a rejeitá-la na vida pública; isso seria aliar juntos o bem e o mal e pôr o homem em luta consigo mesmo (n. 59).

É necessário que um Estado tenha sólidos fundamentos religiosos. Mas isso não é tudo o que é necessário a uma ordenação adequada da sociedade. Um dos alicerces de qualquer sociedade estável e civilizada é a família baseada no casamento. A encíclica de Leão XIII Arcanum tinha por objetivo a defesa da união conjugal contra as ingerências de um Estado secular que a considerava apenas um contrato que poderia ser dissolvido como qualquer outro. Na encíclica Rerum Novarum, Leão XIII descreve a família como uma sociedade mais antiga que o Estado, que tem “certos direitos e certos deveres absolutamente independentes do Estado” (n. 6).

Na Arcanum, ele chama ao casamento base da união familiar, seu “início” e “fundamento”. Diz Leão XIII que o casamento “se deve dar somente entre dois, isto é, o homem e a mulher”; e que, “por vontade de Deus, o vínculo nupcial é tão íntima e fortemente unido, que ninguém entre os homens pode desfazê-lo ou rompê-lo” (n. 7). 

Essa afirmação pode não ter sido muito controversa em 1880, mas hoje Leão XIII seria denunciado por “discurso de ódio”. Numa época, porém, em que o “casamento gay” é autorizado pelo Estado e na qual já se fala em normalizar a chamada “não-monogamia consensual” [2], as palavras dele são mais relevantes e revigorantes do que nunca. 

O casamento é mais do que um contrato cujos termos podem ser ajustados para se adequar às preferências modernas. Nas palavras de Leão XIII: “Como o matrimônio seja, naturalmente, por sua própria natureza e força, uma coisa sagrada em tudo, é bem justo que seja regulado e moderado não pelo poder dos príncipes” (n. 29). Em outro ponto ele lança um alerta: “Ninguém se deve deixar impressionar por aquela distinção tão celebrada pelos regalistas com a qual distinguem o contrato nupcial do casamento, com a intenção de deixar o contrato em poder e arbítrio dos chefes de Estado, reservando para a Igreja as razões do sacramento” (n. 35). 

Antevendo a miséria que as leis de divórcio liberais causariam na sociedade, Leão XIII lamentou: 

Em verdade, é custoso ter necessidade de dizer quantas consequências funestíssimas encerra em si o divórcio. Pois por seu meio, tornam-se instáveis os matrimônios; diminui-se a benevolência mútua; prestam-se incitamentos perniciosos à infidelidade; causam-se prejuízos ao bem-estar e à educação dos filhos; dá-se ocasião à dissolução das sociedades domésticas; semeiam-se as sementes da discórdia entre as famílias... Por isso é claro que é um absurdo e uma loucura esperar a salvação pública dos divórcios, que levarão a sociedade à ruína certa (n. 46.54).

Deveríamos prestar atenção nessas palavras, pois as leis de divórcio sem culpa têm se tornado onipresentes em nações outrora conhecidas como cristandade. 

A verdadeira religião e a família fundada no matrimônio são base essencial para uma sociedade que busca o bem comum. Religião e família, porém, são cultivadas de forma mais eficaz no seio de uma sociedade justa do ponto de vista social. Hoje, o termo “justiça social” evoca imagens de esquerdistas agressivos promovendo uma agenda marxista que considera injusta a propriedade privada. Mas a perspectiva marxista ou socialista da propriedade coletiva é inteiramente contrária à imaginada por Leão XIII.

Em sua histórica encíclica Rerum Novarum, Leão XIII defendeu o direito fundamental do homem à propriedade, um direito resguardado pela lei natural. Porém, ele também deixa claro que é desejável que a propriedade seja distribuída da forma mais ampla possível e que, quanto maior o número de proprietários, melhor. A propriedade privada é necessária ao desenvolvimento da família, e todas as famílias devem adquirir propriedade a fim de transmiti-las aos filhos. No entanto, o Papa reconheceu que, na economia moderna, a aquisição de propriedade pode não ser fácil e que um homem, caso queira obter propriedade, deve receber um salário suficiente. Por isso, encorajou os empregadores a pagarem um salário justo para que o trabalhador pudesse garantir uma vida digna para si e para sua família:

O operário que receber um salário suficiente para ocorrer com desafogo às suas necessidades e às da sua família, se for prudente, seguirá o conselho que parece dar-lhe a própria natureza: aplicar-se-á a ser parcimonioso e agirá de forma que, com prudentes economias, vá juntando um pequeno pecúlio, que lhe permita chegar um dia a adquirir um modesto patrimônio. Já vimos que a presente questão não podia receber solução verdadeiramente eficaz, se se não começasse por estabelecer como princípio fundamental a inviolabilidade da propriedade particular. Importa, pois, que as leis favoreçam o espírito de propriedade, o reanimem e desenvolvam, tanto quanto possível, entre as massas populares (n. 28).

Leão XIII acrescenta:

O homem é assim feito: o pensamento de que trabalha em terreno que é seu redobra o seu ardor e a sua aplicação. Chega a pôr todo o seu amor numa terra que ele mesmo cultivou, que lhe promete a si e aos seus não só o estritamente necessário, mas ainda uma certa fartura. Não há quem não descubra sem esforço os efeitos desta duplicação da atividade sobre a fecundidade da terra e sobre a riqueza das nações. A terceira utilidade será a suspensão do movimento de emigração; ninguém, com efeito, quereria trocar por uma região estrangeira a sua pátria e a sua terra natal, se nesta encontrasse os meios de levar uma vida mais tolerável (n. 28).

Numa época em que muitos podem considerar difícil obter propriedade para si e em que ocorre imigração em massa entre países, as palavras de Leão XIII são especialmente relevantes.

Na Rerum Novarum, Leão XIII apresentou uma perspectiva de justiça social verdadeira. Porém, milita contra essa perspectiva a ideologia moderna do socialismo. Os socialistas, encorajados por uma falsa noção de igualdade, endossam a apreensão estatal da propriedade em nome da justiça para todos. Leão XIII denuncia isso de forma inequívoca, afirmando que “nem a justiça nem o bem público consentem que se danifique alguém na sua fazenda nem que se invadam os direitos alheios sob pretexto de que não há igualdade” (n. 21).

Dado que em 1891, ano da publicação da Rerum Novarum, ainda não havia existido um governo socialista, é bastante profética a previsão de Leão XIII a respeito do fracasso do socialismo na passagem abaixo:

Mas, além da injustiça do seu sistema, vêem-se bem todas as suas funestas consequências, a perturbação em todas as classes da sociedade, uma odiosa e insuportável servidão para todos os cidadãos, porta aberta a todas as invejas, a todos os descontentamentos, a todas as discórdias; o talento e a habilidade privados dos seus estímulos, e, como consequência necessária, as riquezas estancadas na sua fonte; enfim, em lugar dessa igualdade tão sonhada, a igualdade na nudez, na indigência e na miséria (n. 7).

Do mesmo modo, Leão XIII também critica o liberalismo laissez-faire, particularmente sua hostilidade à religião e às necessidades morais do trabalhador. 

No século XXI, a religião é considerada irrelevante e o casamento, reduzido a uma “preferência de estilo de vida”; condições sociais e econômicas tornam cada vez mais difícil a obtenção de propriedade, enquanto as ideologias liberal e socialista continuam a atacar os valores da civilização cristã. Neste contexto, não podemos senão restabelecer a ligação com os valores apresentados por Leão XIII, os quais poderiam formar a base para a reconstrução de nossa sociedade destroçada e lançar as sementes de uma contrarrevolução cristã.

Notas

  1. No texto original, o autor cita, nesta passagem, duas personalidades políticas de seu país: Nancy Pelosi e Joe Biden, ambos do Partido Democrata norte-americano. Preferimos omitir os nomes por se tratar de uma crítica específica do contexto dos Estados Unidos. Mas os leitores brasileiros podem fazer uma rápida pesquisa na internet sobre essas figuras e fazer os devidos paralelos com o que temos aqui (n.d.t.).
  2. Também aqui, o autor cita a iniciativa de um conselho profissional dos EUA, a Associação Americana de Psicologia (American Psychological Association), que dirige um grupo de trabalho sobre a “não-monogamia consensual”. Como o termo, infelizmente, também tem as suas ocorrências na língua portuguesa, preferimos manter a expressão e omitir o fato que, mais uma vez, só tem sentido dentro do contexto específico norte-americano (n.d.t.).

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