“Os nossos olhos não veem senão maná” (Nm 11, 6). Não foi fácil agradar a Israel [o povo de Deus] no deserto. Mesmo o pão milagroso, enviado do céu, não pôde mantê-los satisfeitos por muito tempo. Séculos mais tarde, o profeta Jeremias encontrou algo para saciar seu desejo e o desejo de seu povo: “Quando se me apresentavam as tuas palavras, eu devorava-as; eram para mim o prazer e a alegria do meu coração” (Jr 15, 16). 

A imagem de comer a palavra escrita de Deus é uma das mais poderosas em toda a Bíblia. A Escritura, como o maná, é alimento dado por Deus ao seu povo para o sustentar, nutrir, purificar e deleitar. Mas, esta Palavra tem um efeito mais duradouro que o alimento comum: “Está escrito: Não só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus” (Mt 4, 4). O maná sustentou Israel por quarenta anos, mas a Palavra de Deus não passará jamais (cf. Mt 24, 35).

Alguns alimentos não são saborosos. Eles podem até revirar o estômago (cf. Lm 2, 11). A expulsão do Éden, a destruição de Jerusalém, a Paixão [de Cristo] — não são as coisas mais fáceis de engolir. No entanto, a Palavra de Deus também é doce, mais até que o mel dos favos (cf. Sl 18, 11). A promessa feita a Abraão, o Êxodo, a Ressurreição — estas são as palavras que dão mais alegria do que o trigo ou o vinho (cf. Sl 4, 8), que saciam a alma como de fino manjar (cf. Sl 62, 6).

O profeta Ezequiel devora o rolo com as palavras de Deus, tal como este lhe mandara fazer.

Os profetas devoravam a Palavra de Deus, deixando-se devorar por ela. Há porém outro tipo de devoração, pois “o demônio, vosso adversário, anda ao redor, como um leão que ruge, buscando a quem devorar” (1Pd 5, 8). Aquele que usou as Escrituras para tentar a Cristo no deserto (cf. Mt 4, 6) é o arquétipo de quem distorce as Páginas Sagradas, atacando a compreensão que o homem tem de Deus usando as próprias palavras deste. Quanto àqueles que seguem o caminho do diabo, usando e abusando das Escrituras, “a sua garganta é um sepulcro aberto; com as suas línguas lisonjeiam” (Sl 5, 10). 

Santo Tomás de Aquino, como os homens de outrora, devorou a Palavra de Deus. Seus biógrafos atestam que ele guardou toda a Bíblia na memória: o Pentateuco, os Profetas, os Evangelhos — tudo. Ele deixou-se devorar, não pelo diabo que ronda, mas pelas criaturas do Apocalipse (cf. Ap 4, 8), aqueles quatro evangelistas cujos nomes até dos incréus são conhecidos. Por quanto tempo estas palavras devem ter ecoado nos ouvidos de Tomás: “Filho de homem, come tudo o que achares; come esse livro, e depois, vai falar aos filhos de Israel” (Ez 3, 1). Tomás obedeceu. A Suma Teológica, coroamento de toda a sua obra, continua a ser herança da Igreja e obra-prima do pensamento cristão: ele comeu o livro, e foi este o fruto.

Menos conhecido hoje que sua Suma é um comentário sobre as Escrituras que muito encantou os contemporâneos de Tomás: suas “lições” (lectura) sobre o Evangelho de João, dadas em Paris por volta de 1270. Comentando o discurso do pão da vida, Tomás observa:

Mas o pão da divina sabedoria é vivificante por si mesmo, nem tem a morte contra si [...]. Porque toda Palavra de sabedoria deriva da Palavra unigênita de Deus [...], por isso a Palavra mesma de Deus chama-se principalmente pão da vida; e por isso Cristo diz: “Eu sou o pão da vida” [...]. A carne de Cristo, por causa da Palavra do Senhor, é pão, não da vida comum, mas daquela que não se acaba com a morte (Super Iohannem, c. 6, l. 4).
A Última Ceia, no filme “A Paixão de Cristo”.

De modo harmonioso, Tomás liga a Escritura àquele que é revelado por toda a Escritura: Cristo, o Verbo feito carne, que é nosso alimento eucarístico. Essa “palavra de sabedoria”, à qual Tomás se refere como “alimento especial da mente” (specialis cibus mentis), é o que ele devorou. Como são os efeitos da participação na Eucaristia, ele deixou que ela o transformasse. Palavra e Sacramento, para o Doutor Angélico, estavam associados no mesmo mistério [i]. Para nós, o resultado é uma compreensão mais profunda de que, ao nos achegarmos a Ele, não mais conheceremos a fome (cf. Jo 6, 35).

Peçamos então a Santo Tomás, este gourmand das coisas celestiais, que seja nosso patrono, inspirando-nos a devorar a Palavra do Autor divino e correr zelosos ao seu banquete: “Vinde, comei o pão que eu vos dou, bebei o vinho que vos preparei” (Pr 9, 5).

Notas

Talvez esteja aqui a chave para compreender adequadamente aquilo que ensinou o Concílio Vaticano II: “A Igreja venerou sempre as divinas Escrituras como venera o próprio Corpo do Senhor, não deixando jamais, sobretudo na sagrada Liturgia, de tomar e distribuir aos fiéis o pão da vida, quer da mesa da palavra de Deus quer da do Corpo de Cristo” (Dei Verbum, 21). (N.T.)

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PT
Priscila Terra
21 Jul 2024

muito profundo !!!

Tenho meditado e conquistando muito conhecimento através destes estudos , amo ser católica

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AC
Anderson Carvalho
21 Jul 2024

Fantástico!!!

Como a meditação e assimilação dessa VERDADE erradicaria tantas e tantas "doenças" mentais desses nossos tempos...

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