Em meu último artigo, expliquei que temos o direito e o dever de almejar um digno culto a Deus e que buscá-lo em outro local que não seja nossa própria paróquia não significa “pular de paróquia em paróquia”, não é “nomadismo paroquial”, mas sim resultado de um legítimo desejo de dar ao Senhor a glória ao seu nome e obter para nossas almas o alimento de que precisam

Mas o contra-argumento sempre é apresentado com rapidez e veemência: “Jesus está verdadeiramente presente na Eucaristia, por pior que seja a liturgia, desde que as palavras da consagração sejam pronunciadas. Está em busca de algo melhor que Jesus? Não encontrará. Isso é tudo o que importa.”

É absolutamente verdadeiro que o Senhor estará presente sob as espécies do pão e do vinho sempre que as palavras da consagração forem pronunciadas por um sacerdote validamente ordenado que tenha a intenção de realizar o sacramento. Porém, essa objeção ignora algo muito importante. Nosso Senhor, por meio de sua Igreja, deu-nos a liturgia para nosso proveito, para que cresçamos em santidade, não para seu próprio proveito (Ele já é infinitamente bom, e nada que façamos pode aprimorá-lo), e Ele se torna presente em nosso meio a fim de realizar essa transformação em nós in statu viae, na condição de viandantes, pois nos cidadãos da Jerusalém celeste ela já aconteceu.

A forma externa da liturgia em todos os seus detalhes deve preparar a alma dos fiéis para a ação do Espírito Santo e deixar sempre transparecer essa obra de salvação. Se não conseguimos passar pelos compassos de abertura tocados num violão ou pelas saudações estilo Hallmark [1] sem demonstrar desânimo ou ter um surto de raiva, como seria possível prepararmo-nos bem para receber o Senhor quando Ele vier? 

É um ascetismo completamente falso imaginar que deveríamos tomar coragem e suportar tudoinclusive a distorção ou a degradação do culto devido a Deus! A Igreja tem o dever de levar as almas à perfeição, e não de impor obstáculos a ela; seus sacerdotes têm grandes poderes, mas causar dano em seu próprio rebanho não é um deles. Uma paróquia não serve a uma nobre vocação penitencial ao punir seus membros com uma combinação de mau gosto e rubricas ignoradas. Por mais que Deus esteja presente em todos os lugares, inclusive em covis de leões babilônios, não somos obrigados a nos lançar neles a cada domingo

(A alusão talvez não tenha ficado clara para alguns porque o novo lecionário excluiu a história de Daniel na cova dos leões [cf. Dn 14, 27-42]. Ela é lida todos os anos no usus antiquor na Terça-Feira da Semana Santa. Por mais de um milênio, foi lida como uma parábola da condenação do Cristo inocente, seu abandono aos poderes da morte e sua ressurreição e triunfo sobre seus inimigos.)

Discursando em 1988 para os bispos do Chile, o Cardeal Joseph Ratzinger proferiu estas palavras, que não perderam nada de sua relevância:

Devemos recuperar a dimensão do sagrado na liturgia. A liturgia não é uma festa, não é uma reunião que tem por objetivo nos proporcionar um momento agradável. Não tem importância, nem de longe, que o pároco consiga levar a cabo ideias sugestivas ou elucubrações imaginativas. A liturgia é o que faz o Deus três vezes santo presente entre nós, é a sarça ardente, e é a Aliança de Deus com o homem em Jesus Cristo, que morreu e ressuscitou. A grandeza da liturgia não se fundamenta no fato de oferecer um entretenimento interessante, mas no fato de tornar tangível o Totalmente Outro, a quem não poderíamos invocar. Ele vem porque quer. Dito de outro modo, o essencial na liturgia é o mistério, que se realiza no rito comum da Igreja; tudo o mais a rebaixa. Os homens fazem experimentos animados nela e descobrem que foram enganados quando o mistério é transformado em diversão, quando o ator principal na liturgia já não é mais o Deus vivo, mas o sacerdote ou o diretor de liturgia.

Portanto, não temos de nos dissuadir de um saudável propósito de emenda — para dizer de modo mais claro: sair de nossa paróquia precária a fim de procurar uma melhor — por causa do argumento segundo o qual “a Eucaristia é, no final das contas, a Eucaristia”. Há uma boa razão para jamais ter existido na história da Igreja uma liturgia com cinco minutos de duração que tivesse apenas a consagração e o rito da comunhão. Se fôssemos intelectos incorpóreos capazes de fixar nossa atenção de modo imediato e impassível apenas numa única coisa, então nada além da Presença Real faria qualquer diferença. Assim, poderíamos instituir essa liturgia de cinco minutos — ou, no que diz respeito ao assunto, uma liturgia sintética, com música, psicologia pop e 55 minutos de duração —, porque de qualquer modo não faria diferença. Ainda assim “receberíamos Jesus”. 

Mas o Senhor que instituiu o Santo Sacrifício da Missa — o Senhor que conhece tudo o que está no coração do homem (cf. Jo 2, 24-25), suas necessidades espirituais, anseios e limitações — quis dar um alimento para o homem inteiro, em todos os níveis de seu ser: sentidos e intelecto, mente e coração. Ele diz: “Tenho desejado ardentemente comer convosco esta Páscoa, antes de sofrer” (Lc 22, 15). Ele nos insuflou o mesmo santo desejo: também nós desejamos ardentemente compartilhar com Ele os mistérios sagrados. A liturgia foi feita para nos alimentar de modo abrangente e integral e, na medida em que impede ou compromete esse propósito, trai a si mesma e se torna um Judas para a Presença Real de Cristo.

Notas

  1. Hallmark é uma empresa americana de cartões comemorativos e enfeites.

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