“Agora, quero dizer-lhe com absoluta franqueza como se dá comigo: todo o meu empenho sempre foi reconhecer claramente, em tudo, a vontade de Deus e segui-la da maneira mais perfeita” [1].

Essa confissão do bem-aventurado Carlos da Áustria, feita a sua esposa na noite de sua morte, é o “testamento de todos os santos”, no fundo. Se alguém nos perguntasse que é, que faz um santo ou que nota se poderia achar em todos e cada um deles, poderíamos responder, simplesmente: os santos são aqueles que cumpriram a vontade de Deus; são os que fizeram da petição dominical: Fiat voluntas tua, o seu estandarte neste mundo.

Mas e nós, como podemos reconhecer em nossa vida essa vontade de Deus?

I. O primeiro caminho e o mais fundamental encontra-se naquilo que Nosso Senhor já nos deixou revelado, principalmente através de seus Mandamentos (necessários para a salvação) e de seus conselhos (necessários para a santificação). De fato, quando o jovem rico se aproximou de Cristo (cf. Mt 19, 16-22) perguntando-lhe o que devia fazer para ganhar a vida eterna, Deus mostrou-lhe primeiro o Decálogo; como já o cumprisse, então, Ele mostrou-lhe mais: o “caminho da perfeição”, que consiste no desapego, na caridade e no seguimento humilde de Jesus.

A essa vontade de Deus manifesta através da Revelação São Francisco de Sales dá o nome de “vontade significada de Deus”:

A doutrina cristã propõe-nos claramente as verdades que Deus quer que creiamos, os bens que quer que esperemos, as penas que quer que temamos, o que quer que amemos, os mandamentos que quer que guardemos e os conselhos que deseja sigamos. E tudo isso se chama a vontade significada de Deus, porque Ele nos significou e manifestou que quer e exige que tudo isso seja crido, esperado, temido, amado e praticado [2].

Só em nos determos nisso já podemos resolver muitos dos problemas com que muitas vezes nos deparamos nesta vida. De fato, quando se apresentam diante de nós, claramente, o bem e o mal, a Palavra de Deus e a sedução do diabo, que dúvida pode existir no caminho a ser tomado?

Neste ponto, um fato da vida do Beato Carlos da Áustria — ocorrido quando ele já se tinha afastado do trono do Império Austro-Húngaro — pode ajudar-nos a entender a seriedade e a firmeza do propósito que devemos ter no combate contra o pecado:

Durante o exílio suíço, mais de uma vez, altos expoentes da maçonaria ofereceram a Carlos a possibilidade de retomar, através de sua ajuda, o trono do qual, também por causa deles, ele tinha sido deposto, com a condição de que admitisse leis mais liberais com relação ao matrimônio, um sistema de escola livre e a admissão da maçonaria na Áustria. A resposta que dava a tais propostas era verdadeiramente exemplar: “Aquilo que recebi das mãos de Deus não posso aceitá-lo das mãos do demônio” [3].

É certo que esse é o tipo de tentação específico de uma autoridade civil, mas, em nossa vida diária, em nossas próprias funções e estados de vida, quantas não são as situações nas quais devemos escolher se iremos seguir a vontade de Deus ou se faremos, ao contrário, a nossa vontade, traindo a Deus e pecando contra Ele!

Nesta matéria, não há “discurso de tolerância” possível, nem “meio-termo”: diante de uma tentação, como diz Orígenes, ou saímos mártires ou idólatras [4]; ou dizemos sim a Deus e não ao pecado, ou dizemos sim ao pecado… e não a Deus. Assim, sendo bem práticos, ou se vai à Missa ao domingo, ou é necessário confessar-se para voltar a comungar; ou se comete adultério, ou se é fiel; ou se fornica, ou se é casto; ou se rouba, ou se é honesto.

Essas alternativas nos mostram como a oposição mais radical que há à vontade de Deus é quando lhe voltamos as costas pelo pecado mortal. “Há pecado que é para a morte” (1Jo 5, 16), ensina a Escritura, e isso ocorre quando “a alma provoca uma desordem que vai até à separação do fim último — Deus — ao qual se encontra ligada pela caridade” [5]. Isso quer dizer que, assim como não se pode receber as bênçãos de Deus e aceitar ao mesmo tempo as vis ofertas do demônio, assim como não é possível dizer-se amigo de Cristo e, ato contínuo, traí-lo por trinta moedas de prata, “no plano atual da Providência, toda alma se encontra ou em estado de graça, ou em estado de pecado mortal” [6], e tertium non datur.

Relativizar isso — como tantos em nosso tempo, inclusive em posições de autoridade, têm procurado fazer — é relativizar a doutrina de sempre da Igreja, é pôr abaixo todo o edifício moral católico… é frustrar toda possibilidade de que as pessoas tenham uma vida espiritual. Afinal de contas, sem o estado de graça, não há céu depois desta vida e... que tragédia pode haver maior do que essa? O Beato Carlos da Áustria o havia compreendido muito bem e, ainda em seu testamento, deixou consignado este desejo do seu coração a respeito dos próprios filhos: “Deixai-os antes morrer que cometer um pecado mortal. Assim seja” [7].

Eis como deve pensar todo homem que tenha ! Para o Beato Carlos, assim como para todos os santos e santas da Igreja, havia a clara consciência de que é melhor perder o mundo inteiro, pela morte física, do que a vida eterna, pela morte da alma. Mas ai de nós! Quantos estamos dispostos a essa simples determinação?

II. Há entretanto um outro “tipo” de vontade divina, por assim dizer, a cuja obediência está necessariamente ligado um grandioso progresso na vida de santidade: trata-se da “vontade de beneplácito de Deus”, que se manifesta em “todos os acontecimentos providenciais que Deus quer ou permite para nosso maior bem, e sobretudo para nossa santificação” [8].

Por mais que muitos caiam na ilusão de que detêm o controle das próprias vidas, a verdade é que o roteiro da história humana é escrito pelo Criador. Ele, em sua providência, tudo ordena e governa com sabedoria, em seus mínimos detalhes, de modo que até mesmo os “erros” deste ou daquele instrumento da orquestra são dispostos de forma a deixar ainda mais bela e perfeita a sinfonia da história. Em nossa vida particular mesmo, quantas “notas” destoantes não terminam se ajustando a todo o conjunto! Quantas vezes o que encaramos como uma “desgraça” não acabou se mostrando uma grande graça!

Não só quando enxergamos o bem por trás das coisas que nos acontecem, no entanto, mas principalmente quando não conseguimos compreendê-las, é o momento de abandonar-se à vontade de Deus, como fez Santo Jó: “O Senhor deu, o Senhor tirou, bendito seja o nome do Senhor!” ( 1, 21); “Se aceitamos de Deus a felicidade, não deveríamos aceitar também a infelicidade?” ( 2, 10).

Não se trata de coisa fácil, é verdade. Entregar-se à vontade divina de beneplácito, dizer-lhe, ainda que com o coração aflito: Fiat voluntas tua, significa entregar o controle da própria vida nas mãos de Outro. O mais simples ato de abandono nesse sentido talvez nos fará sentir “inseguros” num primeiro instante: “Como assim?”, perguntarão nossos sentimentos, “entregar as rédeas de sua vida assim, sem mais nem menos?” Mas a isso devemos responder com o ato de fé de quem se sabe cuidado por Deus, de quem se sabe amado por Ele com o maior amor, o amor total, o amor de holocausto.

O desejo de Deus por nós, caro leitor — celebramos isso há pouco na Semana Santa —, levou-O à Cruz. Que provas mais de amor poderemos nós reclamar, se Ele deu o seu próprio Filho para a libertação dos escravos, como cantamos na noite do Sábado Santo: ut servum redimeres, Filium tradidisti? Se Ele nos amou assim, como não lançarmos todas as nossas preocupações em suas mãos (cf. 1Pd 5, 7), confiantes de que Ele fará não o que queremos, mas o que Ele sabe ser melhor para nós? Como não rezar com Santa Teresa as seguintes linhas de seu Caminho de Perfeição?

Cumpra-se em mim, Senhor, vossa vontade de todos os modos e maneiras que Vós, Senhor meu, determinardes. Se quiserdes enviar trabalhos, dai-me força, e venham! Se perseguições e enfermidades e desonras e mínguas, aqui estou! Não afastarei o rosto, Pai meu, nem há razão para virar as costas. Pois vosso Filho, em meu nome e no de todos, deu esta minha vontade, não quero que haja falha da minha parte. Fazei-me Vós graça e dai-me vosso reino, como Ele o pediu, a fim de que eu o possa executar; em seguida disponde de mim como de coisa vossa, conforme a vossa vontade [9].

A lista de citações dos santos a esse respeito é abundante, mas, tendo nós começado estas linhas com o Beato Carlos da Áustria, terminemo-las também com uma frase sua régia, que ele costumava repetir com frequência, segundo o testemunho de sua esposa: “Encontramo-nos nas mãos da Divina Providência”, ele dizia. “Tudo o que nos acontece está bem. Apenas confiemos” [10].

Pode haver conselho melhor a seguirmos em meio aos percalços deste “vale de lágrimas”?

Referências

  1. Giovanna Brizi, A vida religiosa do Beato Carlos da Áustria, 2.ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Christi, 2014, p. 10.
  2. Tratado do Amor de Deus, VIII, 3.
  3. Giovanna Brizi, op. cit., pp. 53-54.
  4. Cf. Exortação ao Martírio, 32 (PG 11, 603B).
  5. STh I-II, q. 72, a. 5.
  6. Pe. Reginald Garrigou-Lagrange, Las tres edades de la vida interior. 11.ª ed., Madri: Palabra, 2007, v. 1, p. 31.
  7. Giovanna Brizi, op. cit., p. 71.
  8. Adolphe Tanquerey, Compêndio de Teologia Ascética e Mística. Trad. de João Ferreira Fontes. 6.ª ed., Porto: Apostolado da Imprensa, 1961, p. 233.
  9. Caminho de Perfeição, XXXII, 10.
  10. Giovanna Brizi, op. cit., p. 11.

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