Este texto, assim como muitos outros que publicamos, destina-se aos curiosos e estudiosos de liturgia. Especialmente com a publicação dos cursos A Batalha dos Missais e História da Missa (sendo este uma continuação daquele), acreditamos que o interesse por esse assunto cresça de modo natural entre nossos alunos. De nossa parte, nós o faremos crescer ainda mais com publicações como esta. Adentrar o universo da liturgia tradicional é um meio privilegiado de nos fazer conhecer o patrimônio da Igreja ao longo dos séculos.

Os mais antigos sacramentários e lecionários do rito romano atestam uma ordem para a Oitava de Natal que é essencialmente a mesma do Missal e do Breviário de São Pio V, com algumas variantes menores.

As festas de Santo Estêvão, Protomártir, de São João Evangelista e dos Santos Inocentes são absolutamente universais nos três dias seguintes ao Natal. (Estas festas às vezes são designadas em grupo pelo termo comites Christi, “companheiros de Cristo”.)

A antiquíssima festa do Papa Silvestre I (314–335), no dia 31 de dezembro, um dos primeiros não mártires venerado como santo, está ausente em alguns manuscritos do Sacramentário Gelasiano. Em muitos livros, como o Lecionário de Wurzburg, o mais antigo do rito romano, a festa da Circuncisão é chamada “a Oitava do Senhor”.

Havia ainda, é claro, alguma incerteza sobre o domingo depois do Natal, que não aparece em alguns livros; os textos litúrgicos próprios desse domingo também podem ser encontrados, em alguns casos, depois do dia 1.º de janeiro, para o domingo entre a Circuncisão e a Epifania.       

O único acréscimo geral ao calendário para esse período é a festa de São Tomás Becket, mantida no dia de seu martírio em 1170, 29 de dezembro. O culto a ele foi assimilado de modo tão rápido e universal, que a ausência de sua festa de um calendário litúrgico é tratada como indício totalmente confiável de que o manuscrito é anterior à sua canonização, ocorrida em fevereiro de 1173.

O início do Ofício de Natal, de um Breviário Ambrosiano impresso em 1539. Em sentido horário, a partir do canto superior direito, estão Deus Pai; o Menino Jesus com Maria, São José, o boi e o jumento; o martírio de Santo Estêvão; São João Evangelista segurando um cálice de vinho; a aparição do anjo aos pastores; e o martírio dos Santos Inocentes. No painel central, há outra versão do Menino Jesus na manjedoura.

Na época da reforma tridentina, estava bem enraizado, e assim foi durante séculos, o costume de transferir o domingo depois do Natal para o dia 30 de dezembro sempre que ele coincidisse com uma das festas maiores da Oitava, como acontece na maioria dos anos. (No Usus Sarum, ele foi fixado permanentemente nesse dia).

Pode parecer-nos muito estranho celebrar a liturgia de domingo numa sexta-feira, como aconteceria este ano segundo as rubricas antigas, mas a lógica por trás do costume era que todas as Missas da Oitava de Natal tinham um lugar e não podia haver interferência nas antiquíssimas festas dos dias 26, 27 e 28.

Esse foi o costume até a reforma do Missal em 1960, quando o domingo dentro da Oitava passou a ter precedência sobre os comites. Como o direito de transferência foi retirado do grau dessas festas (segunda classe, anteriormente “duplas de segunda classe”), elas foram reduzidas a simples comemoração no domingo [i]. 

Essa mudança mal planejada, na verdade, tornou-se pior no Novus Ordo, quando o domingo dentro da Oitava foi substituído pela festa da Sagrada Família. O Novus Ordo também aboliu quase todas as comemorações. Ou seja, quando 27 de dezembro cai num domingo, por exemplo, a festa de São João Evangelista, discípulo amado de Jesus e autor do Evangelho que prova a divindade de Cristo, é completamente omitida em favor de uma festa devocional que só entrou no Calendário Geral do rito romano em 1921 [ii]. 

Este ano, porém, o domingo dentro da Oitava será simplesmente omitido, já que o próprio Natal cairá num domingo, e o costume de transferir ou antecipar domingos foi abolido em 1960.

Cumpre notar que o texto de intróito desta Missa — Dum médium siléntium tenérent ómnia, et nox in suo cursu médium iter habéret, omnípotens sermo tuus, Dómine, de cælis a regálibus sédibus venit: “Enquanto todas as coisas estavam mergulhadas em profundo silêncio, e a noite, no seu curso, ia a meio caminho, a vossa palavra onipotente, Senhor, baixou dos céus, do seu trono real” — costuma ser considerado, ao menos em parte, a origem da tradição segundo a qual Cristo nasceu no meio da noite e, daí a celebração da Missa da Meia-noite no Natal. No Novus Ordo, por outro lado, a festa da Sagrada Família é transferida para 30 de dezembro.  

Na chusma de comemorações que restaram no Novus Ordo se incluem, ironicamente, as festas de São Tomás Becket e de Silvestre, rebaixadas a essa categoria já na reforma de 1960 em proveito das férias da Oitava de Natal. Mas há exceções para São Tomás em todas as dioceses da Inglaterra, e para quaisquer igrejas dedicadas a um deles que ainda os celebrem como seus padroeiros.

“Circuncisão de Jesus no Templo”, guache sobre papel, século XVIII.

A reforma de 1960 também mudou o nome da Circuncisão para “Oitava da Natividade”, que, menos de um ano depois, foi abolida em benefício de uma nova solenidade, a de Maria, Mãe de Deus. (O Evangelho da Circuncisão, Lc 2, 21, está presente no Evangelho da nova festa. Vale lembrar que, no início de 2016, um judeu sugeriu ao Papa, durante uma visita à principal sinagoga de Roma, que ele restaurasse a festa da Circuncisão.)

Às vezes a nova festa é considerada a versão romana da “Sinaxe da Mãe de Deus”, celebrada no rito bizantino em 26 de dezembro. No entanto, esta segunda observância surge de um costume bizantino particular, segundo o qual a várias festas importantes se segue a comemoração de uma pessoa sagrada que aparece de forma proeminente na festa, mas que é, por assim dizer, ofuscada por outra. Elas costumam ser chamadas, mas não sempre, σύναξις [sýnaxis] em grego e съборъ [sŭborŭ] em eslavônico eclesiástico antigo.

A festa de São João Batista permanece no dia 7 de janeiro, um dia depois do Batismo do Senhor; a de São Gabriel, um dia depois da Anunciação; a dos Doze Apóstolos, depois da festa dos Apóstolos São Pedro e São Paulo, e a de São Joaquim e Sant’Ana, pais da Virgem, um dia após a da Natividade dela. Estas não são as principais festas das pessoas honradas por essas “sinaxes”, e é possível encontrar no calendário bizantino as festas de São João, em 24 de junho e 29 de agosto; de São Gabriel, em 11 de junho; as dos Apóstolos cada uma a seu modo, e a de Sant’Ana em 26 de julho. O rito bizantino mantém a festa da Circuncisão no dia 1.º de janeiro.  

A reforma moderna do rito ambrosiano realizou-se com muito menos pressa que a do romano. Apesar disso, houve em consequência dela vários anos de experimentação litúrgica um tanto caótica em Milão e nos territórios vizinhos que utilizam o rito.

A imitação dos novos costumes romanos se tornou tão difundida e completa em alguns lugares, que até em níveis mais ou menos elevados da hierarquia se considerou a abolição do rito ambrosiano. Felizmente o bom senso prevaleceu, e os responsáveis pela tarefa de reformá-lo oficialmente não só preservaram, em muitas ocasiões, costumes autênticos como também corrigiram alguns dos erros mais graves da reforma romana.

No rito ambrosiano moderno, pois, as festas dos comites Christi são celebradas ainda quando caem num domingo. A festa da Circuncisão celebra-se em 1.º de janeiro, o que se explica em parte pelo fato de o sexto e último Domingo do Advento ser praticamente uma festa mariana [iii]. Sendo assim, uma segunda solenidade da Virgem tão próxima dele pareceria supérflua. A festa da Sagrada Família é fixada no último domingo de janeiro.

Notas

  1. A abolição completa das comemorações é outra perda lamentável da liturgia romana reformada. Em todas essas festas da Oitava, por exemplo, sempre havia no Breviário e na Missa um lembrete de que ainda estávamos na grande festa do Natal: o sacerdote rezava as orações de Santo Estêvão, São João e dos Santos Inocentes, mas logo em seguida fazia uma comemoração da Oitava. (Acesse o site do Ofício Divino antigo para ter uma experiência de como era isso.) Agora, o padre é obrigado a adotar um e omitir por completo o outro: ou a Sagrada Família ou o comes Christi (“companheiro de Cristo”); ou o comes Christi ou a Oitava de Natal. (N.T.)
  2. No texto original, escrito em 2016, o autor citava a festa de São João Evangelista porque o fato tinha se dado no ano imediatamente anterior, 2015. Mas qualquer outro dos comites Christi poderia ser tomado como exemplo: ano passado foi a vez de ser ignorada a festa de Santo Estêvão. — Sobre a festa da Sagrada Família, foi Bento XV que a inseriu no calendário litúrgico, em 1921, mas originalmente ela estava prevista para o 1.º Domingo após a Epifania. O arranjo de agora, dentro da Oitava de Natal, é obra da reforma litúrgica pós-conciliar. (N.T.)
  3. No rito ambrosiano (assim como no moçárabe), o Advento começa duas semanas antes que no rito romano, totalizando seis domingos. A rubrica do rito de Santo Ambrósio é clara: Adventus Domini inchoatur Dominica proxima post Festum S. Martini, “O Advento do Senhor começa no domingo seguinte à festa de São Martinho [de Tours]”, ou seja, de 12 a 18 de novembro. Em nosso rito, Adventus Domini celebratur semper die Dominico, qui propinquior est festo S. Andreæ Apostoli: “O Advento do Senhor se celebra sempre no domingo mais próximo à festa de Santo André Apóstolo” (30 de novembro), ou seja, de 27 de novembro a 3 de dezembro. (N.T.)

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