Muitos protestantes de comunidades mais tradicionais estão de acordo com os católicos em crer que Maria é Teótoco (em grego, Θεοτόκος = portadora de Deus), Mãe de Deus: se Jesus Cristo é verdadeiramente Deus, então Maria é verdadeiramente Mãe de Deus. No entanto, muitos outros, de comunidades fundamentalistas e evangélicas, não fariam coro com os católicos para proclamar Maria Mãe de Deus.
As objeções a esse grande dogma de fé são basicamente três.
A primeira afirma o óbvio: em trecho algum da Sagrada Escritura as palavras “Mãe de Deus” são usadas para falar de Maria. “Se essa doutrina fosse tão importante como dizem os católicos, não teria ao menos um hagiógrafo utilizado o termo?”
A segunda objeção toma-se de Lc 1, 43, texto apresentado por católicos como fundamento bíblico para [o título de] Teótoco, onde Isabel exclamou a Maria em alta voz: “Bendita és tu entre todas as mulheres, e bendito é o fruto do teu ventre. Donde a mim esta dita, que a mãe do meu Senhor venha ter comigo?” Afirmam alguns fundamentalistas que a passagem não chama a Maria mãe de Deus, mas mãe do meu Senhor. O Novo Testamento emprega o termo “senhor” (κύριος [kýrios], em grego) para se referir a Deus algumas vezes, mas também para se referir a pessoas humanas em diferentes contextos. Por isso, argumentam que a passagem do Evangelho de Lucas se refere, não à divindade, mas à humanidade de Cristo.
Por último, argumentam os protestantes ser impossível que Deus tenha mãe: “Deus é Trindade; ora, se Maria é mãe de Deus, então é mãe da Trindade; logo, a Trindade torna-se Quadrindade!
Comecemos pela primeira objeção. Dizer que Maria não pode ser Mãe de Deus porque a Sagrada Escritura não a chama assim explicitamente põe em maus lençóis o próprio protestante, a quem se imporia a conclusão de que muitas outras doutrinas essenciais ao cristianismo são falsas por não se acharem textualmente na Bíblia. Tomemos a Trindade, por exemplo. Essa é a mais importante de todas as doutrinas cristãs, e no entanto a palavra “Trindade” não aparece na Bíblia. Tampouco expressões como ὁμοούσιος (homoúsios, grego para ‘da mesma natureza’: Jesus é da mesma natureza que o Pai) e “união hipostática”.
A pergunta que o protestante se deveria fazer é se o conceito de Maria, Mãe de Deus, está revelado na Sagrada Escritura. E veremos que está. Assim sendo, a primeira objeção desfaz-se com muita facilidade.
Não é o caso da segunda objeção. O grego κύριος, “senhor”, pode aplicar-se de fato à divindade, mas nem sempre é usado nesse sentido. Exemplo disso é 1Cor 8, 5: “De fato, ainda que haja alguns que se chamem deuses, ou no céu ou na terra (e assim sejam muitos os deuses e muitos os senhores)”, onde “senhor”, obviamente, não é usado em referência à divindade. Além disso, Cristo mesmo chama ao dono da vinha, na parábola dos vinhateiros homicidas (cf. Mt 21, 33-40), κύριος [τοῦ ἀμπελῶνος], “senhor da vinha”. Logo, κύριος pode ser usado especificamente para designar uma pessoa humana.
Mas se voltarmos a 1Cor 8, 5, o versículo seguinte nos dará um exemplo de κύριος usado em referência à divindade: “Para nós, contudo, há um só Deus, o Pai, de quem provêm todas as coisas, e para quem existimos, e um só Senhor, Jesus Cristo, por quem todas as coisas foram feitas, e nós também”. Observem-se dois pontos essenciais: Jesus é chamado um só Senhor e criador de todas as coisas.
Não há dúvida de que o contexto se refere à divindade de Nosso Senhor. Todo judeu conhecia a verdade do grande Sh’ma de Dt 6, 4: “Ouve, ó Israel: o Senhor nosso Deus é o único Senhor”. Há um só Senhor em Israel, e este, segundo 1Cor, é Jesus, também chamado criador de todas as coisas. Ora, Gn 1, 1 não poderia deixar mais claro que é Deus todo-poderoso o criador de todas as coisas: “No princípio criou Deus o céu e a terra”. O título de κύριος, aplicado a Cristo como criador de todas as coisas em 1Cor 8, 6, designa claramente a divindade de Cristo. É o contexto que o põe em evidência.
O que importa, pois, à nossa discussão é determinar o sentido de κύριος atribuído a Cristo em Lc 1, 43. Emprega-se o termo para descrever Jesus apenas no que diz respeito à sua humanidade ou também à divindade? Há pelo menos duas razões que nos permitem ter certeza de que ele se refere à Pessoa divina de Cristo.
Em primeiro lugar, se considerarmos seus antecedentes no Antigo Testamento, a conclusão é patente. Isabel referia-se quase ao pé da letra a 2Sm 6, 9, texto em que Davi exclama, referindo-se à Arca da Aliança: “Davi temeu o Senhor naquele dia, dizendo: ‘Como entrará a arca do Senhor em minha casa?’” Quando Isabel exclamou em alta voz: “Donde a mim esta dita, que a mãe do meu Senhor venha ter comigo?” (Lc 1, 42s), foi revelado que Maria é a Arca da Aliança do Novo Testamento.
Portanto, para nós a questão é a seguinte: a Arca da Aliança no Antigo Testamento era a arca de um potentado mundano, ou era a arca do Deus todo-poderoso? A resposta é óbvia. No mesmo sentido, a nova Arca da Aliança, mais gloriosa, não é a arca de um potentado mundano; ao contrário, é a arca do Deus todo-poderoso.
A segunda e mais importante razão pela qual sabemos que Lc 1, 43 se refere a Maria como Mãe de Deus está resumida no Catecismo da Igreja Católica (n. 495):
Denominada nos Evangelhos “a Mãe de Jesus” (Jo 2, 1; 19, 25), Maria é aclamada, sob o impulso do Espírito, desde antes do nascimento de seu Filho, como “a Mãe de meu Senhor” (Lc 1, 43). Com efeito, Aquele que ela concebeu do Espírito Santo como homem e que se tornou verdadeiramente seu Filho segundo a carne não é outro senão o Filho eterno do Pai, a segunda Pessoa da Santíssima Trindade. A Igreja confessa que Maria é verdadeiramente Mãe de Deus (Theotókos).
Maria é Mãe de Deus precisamente porque Jesus Cristo, seu Filho, é Deus. Ela não deu à luz uma natureza ou mesmo duas; deu à luz uma Pessoa divina. Negar essa verdade essencial da fé, como declarou o Concílio de Éfeso (431), equivale a separar-se da plena comunhão com Cristo e a Igreja. O primeiro dos muitos anátemas aceitos pelo Concílio decretava o seguinte: “Se alguém não confessar que o Emanuel é Deus no sentido verdadeiro e que, portanto, a santa Virgem é deípara (pois gerou segundo a carne o Verbo que é de Deus e veio a ser carne), seja anátema” (Cân. 1).
Observe-se que, na definição, o Concílio alude à profecia de Is 7, 14, texto que profetizara, mais de 700 anos antes do nascimento de Cristo, que o Messias nasceria de mulher, mas seria Deus conosco.
O verdadeiro problema em negar que Maria é Mãe de Deus e afirmar que ela é apenas mãe do homem Jesus Cristo é que, ao fazê-lo, invariavelmente negamos a divindade de Cristo (como o fizeram os arianos no séc. IV) ou acreditamos que há duas pessoas em Cristo. Os dois erros são heréticos.
Os Concílios de Éfeso e Calcedônia (433) enfrentaram a heresia do nestorianismo. Ao invés de ensinar a verdade de que Cristo é uma Pessoa divina em duas naturezas — humana e divina, unidas hipostaticamente sem mistura na única Pessoa divina de Cristo —, o nestorianismo, ao menos em uma de suas versões, ensinava que Cristo são duas pessoas, unidas por união meramente moral.
Os Padres conciliares entenderam que os cristãos jamais poderiam afirmar tal coisa. A Bíblia nos diz: “Porque nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade” (Cl 2, 9); “nele foram criadas todas as coisas nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis” (Cl 1, 16). Em momento algum se diz “neles”, apenas “nele”. O erro implica Cristos essencialmente diferentes. Jesus é verdadeiramente uma só Pessoa divina. Se alguém reza a um Jesus que sejam duas pessoas, reza a um “Jesus” que não existe.
E que dizer da terceira objeção? “Se Deus é Trindade, e Maria é mãe de Deus, Maria não seria então mãe da Trindade?” Na verdade, não.
O Catecismo é claro ao afirmar (n. 495) que Maria é Mãe da segunda Pessoa da Santíssima Trindade porque nem o Pai nem o Espírito Santo se encarnaram. Simples assim.
Mas o problema aqui pode ir além da simples confusão entre as Pessoas divinas. Em minha experiência, essa explicação, simples, leva quase inevitavelmente a outra questão, que revela a verdadeira dificuldade de muitos fundamentalistas: “Ainda que Maria fosse a mãe apenas da segunda Pessoa da Santíssima Trindade, Jesus continua a ser tão eterno quanto as outras duas; logo, para ser mãe dele, Maria também teria de ser eterna”.
A raiz do problema da “Quadrindade” está num erro de compreensão sobre a verdadeira maternidade de Maria e, quiçá, sobre o sentido da maternidade em geral.
Quando afirma que Maria é Mãe de Deus, a Igreja Católica não quer dizer que Maria seja a fonte da natureza divina das Pessoas da Santíssima Trindade nem que seja fonte da natureza divina da segunda Pessoa. Apesar disso, ela não precisa sê-lo para ser mãe da segunda Pessoa encarnada.
Uma analogia com a reprodução humana talvez nos ajude a esclarecer o assunto. Minha esposa, Valerie, é mãe do meu filho, Timmy; mas isso não quer dizer que ela seja a fonte de sua alma imortal. Deus criou a alma dele direta e imediatamente, como o faz com todo ser humano (cf. Eclo 12, 7). Isso, porém, não nos leva à conclusão de que Valerie é mãe apenas do corpo de Timmy. Ela é mãe de Timmy, e ponto final. Ela não deu à luz um corpo, mas uma pessoa humana, que é um composto de corpo e alma: Timmy.
De forma análoga, embora Maria não tenha dado a Jesus a natureza divina nem sua alma humana imortal, não deixa de ser Mãe dele, pois não deu à luz um corpo, uma alma, uma natureza ou mesmo duas naturezas; ela deu à luz uma Pessoa, e essa Pessoa é Deus.
É inescapável a conclusão de todo este assunto. Assim como, unidos a nós, católicos, muitos dos protestantes tradicionais já confessam: se Jesus Cristo é uma Pessoa divina, una, eterna e imutável — Deus — e Maria é sua Mãe, logo Maria é mãe daquela Pessoa una, eterna e imutável: Deus.
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