“Como se pode fazer de uma ‘batatinha’ o Corpo de Cristo?”: a provocação feita pelo profanador de Trieste é uma objeção à Eucaristia que atravessa os séculos. Patatina não passa de uma versão mais irreverente do escândalo que muitos dos primeiros discípulos experimentaram ao ouvir falar desse mistério pela primeira vez. É uma versão muito parecida com a acusação que os protestantes vivem fazendo contra os católicos, de que, além de adorarmos imagens, ainda por cima nos prostramos diante de uma “bolacha” ou um “pedaço de pão”. Não estamos falando, portanto, de uma agressão pontual, mas de um desafio constante à nossa fé.
Mas se os hereges debochados, como o profanador de Trieste, ou mesmo os protestantes mais agressivos, não merecem uma resposta, nós, católicos, entretanto, deveríamos ter sempre na ponta da língua a resposta a essa provocação. Se não para os que nos perguntam e provocam, ao menos para nós mesmos, para que tenhamos cada vez mais firmeza da nossa fé, para que nos estejam sempre presentes no espírito as razões da nossa esperança (cf. 1Pd 3, 15).
Respondamos, então, como é possível que em toda Santa Missa os católicos façam de uma “batatinha”, de uma “bolacha”, de um “pãozinho” (ou seja lá como se queira chamar a matéria deste sacramento), nada mais nada menos do que o Corpo, o Sangue, a Alma e a Divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo. Como se dá isso, afinal? Onde o porquê disso?
Comecemos do Evangelho, mais exatamente do momento exato em que Jesus nos promete a Eucaristia. Sabemos que a instituição deste sacramento se deu na noite da Quinta-feira Santa, na Última Ceia. Mas antes disso, em seu ministério público, Jesus já havia aludido ao mistério que havia de inaugurar, e isso aconteceu no célebre “discurso do pão da vida”, presente no capítulo 6 do Evangelho de São João (v. 22-71).
A quem ainda não leu esta importante passagem bíblica, vale a pena fazê-lo, mas sua ideia central é muito simples: Jesus Cristo quer se dar aos homens como alimento. Percebam, no entanto, que Ele não institui a Eucaristia naquele episódio, estando no meio da multidão, senão que escolhe seus momentos finais para fazê-lo, estando na intimidade com seus amigos, e deixando-lhes sua carne e seu sangue como um verdadeiro testamento. Nosso Senhor revestiu de grande solenidade a instituição da Eucaristia, e com isso Ele já indicava o respeito e a reverência que queria receber dos homens neste sacramento.
A promessa do pão da vida, no entanto, é feita a todo o povo, porque de toda a multidão que O escutava desde já Nosso Senhor queria receber a obediência da fé. Jesus Cristo usará nessa ocasião termos fortes, como nunca antes tinha usado: falará de sua carne como “verdadeira comida” e de seu sangue como “verdadeira bebida”, dizendo ainda que seria necessário τρώγειν (lit., “roer, mastigar, comer”) o seu corpo para ter a vida eterna (cf. Jo 6, 53-55). Muitos, ao ouvir dessas palavras, reagirão assustados e perplexos — “Isto é muito duro! Quem o pode admitir?” (Jo 6, 60), deixarão de seguir a Jesus (cf. Jo 6, 66) e no próprio colégio apostólico haverá um que não crê: Judas Iscariotes, a quem o Senhor chama “um demônio” (Jo 6, 70) já nesta ocasião.
Dos lábios de São Pedro, no entanto, Nosso Senhor recebe aquilo por que tanto ansiava: um ato de fé. “Senhor, a quem iremos nós?”, ele diz. “Só tu tens palavras de vida eterna” (Jo 6, 68).
A atitude do primeiro Papa é a atitude que toda a multidão de fiéis deverá imitar ao longo dos séculos para com o Santíssimo Sacramento. Com a diferença que se canta no hino Adoro te devote: In cruce latebat sola deitas, / at hic latet simul et humanitas, isto é, “Na cruz estava oculta somente a divindade, / mas aqui se esconde também a humanidade”. Ou seja, São Pedro ainda pôde ver a carne física de Cristo, enquanto de nossa parte é exigida a fé tanto na divindade quanto na humanidade de Nosso Senhor, ambas escondidas sob a aparência do pão e do vinho.
Toda essa digressão é necessária para explicar por que Deus não opera logo, em nossos altares, todos os dias, o milagre de Lanciano, por exemplo, transformando tudo — inclusive as aparências do pão e do vinho — em seu Corpo e em seu Sangue gloriosos. Ele não o faz porque quer a nossa fé, assim como quis a de seus primeiros discípulos. Se toda vez que fôssemos à Missa o padre tivesse em suas mãos um pedaço da carne viva de Cristo, não seria necessário ter fé. A Missa poderia até se tornar um “espetáculo” aos olhos do mundo, mas não foi para se mostrar vaidosamente aos homens que o Filho de Deus instituiu a Eucaristia; foi para se unir a nós que Ele o fez.
E aqui está a outra grande razão pela qual Nosso Senhor se esconde na Hóstia consagrada: porque foi dando-se a nós na forma de alimento — ou seja, nas espécies do pão e do vinho — que Ele conseguiu realizar o grande desejo de se unir a nós. Eis a razão de Ele se submeter a um tal rebaixamento! Eis o grande amor que O faz descer ao aspecto de um simples alimento, submetendo-se (como se submete) a profanações como a de Trieste, a irreverências que tão frequentemente ocorrem em nossas Missas e às ingratidões de tantas das nossas comunhões!
Embora Nosso Senhor se exponha a isso, no entanto, que fique bem claro: o que Ele quer é a nossa fé e o nosso amor. Não é para os descrentes, para os Judas Iscariotes ou para os malfeitores que Cristo desce aos altares. É, ao contrário, para estar com os que crêem nEle, para estar com os que O amam, para ouvir deles como ouviu de São Pedro: Domine, ad quem ibimus? Verba vitae aeternae habes. Como diz Santa Teresa d’Ávila, “Ele tudo suporta e se dispõe a sofrer para encontrar uma única alma que O receba e Lhe dê uma acolhida amorosa; que essa alma seja a vossa” (Caminho de Perfeição, 35, 2).
Mas se ainda não estamos convencidos o suficiente da grandeza do amor que brota do Coração Eucarístico de Nosso Senhor, que nos convença esta revelação recebida por Santa Teresa e registrada em seu Livro da Vida (38, 23):
Indo comungar, vi com os olhos da alma, com maior clareza do que com os do corpo, dois demônios deveras abomináveis. Tive a impressão de que, com os seus chifres, mantinham presa a garganta do pobre sacerdote. E, na hóstia que ia receber, vi meu Senhor, com a majestade que descrevi, posto naquelas mãos, que percebi com clareza serem transgressoras, compreendendo que aquela alma estava em pecado mortal. Que seria, Senhor meu, ver Vossa formosura entre figuras tão abomináveis? Elas estavam como que amedrontadas e espantadas diante de Vós, e creio que de boa vontade teriam fugido se Vós lhes tivésseis permitido.
Isso me provocou tamanha perturbação que não sei como pude comungar, e fui tomada de grande temor, pensando que, se fosse visão de Deus, Este não me permitiria ver o mal que se instalara naquela alma. O Senhor disse que rogasse por ele e que permitira semelhante coisa para que eu entendesse que força tinham as palavras da consagração e visse que, por pior que seja o sacerdote que as pronuncia, Deus está sempre ali; disse também que o fizera para que eu conhecesse Sua grande bondade, que se põe nas mãos do inimigo só para o meu bem e o de todos.
“Como se pode fazer de uma ‘batatinha’ o Corpo de Cristo?” Como pode ser que Ele se submeta a ficar nas mãos de um criminoso debochado como o de Trieste? Porque é grande a sua bondade, a ponto de se pôr nas mãos do inimigo… só para se unir aos que quer como seus amigos. Assim como aconteceu dois mil anos atrás, quando o Bom Jesus deixou-se prender, flagelar e coroar de espinhos, só para ter o nosso amor, também hoje a sua entrega se repete em nossas igrejas. E cabe a cada um de nós responder se temos sido os malfeitores que O profanam ou as almas adoradoras que O consolam e desagravam.
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