A maior canonização da história ocorreu há quatrocentos anos, no dia 12 de março de 1622, quando o Papa Gregório XV reconheceu simultaneamente a santidade de Isidoro, o Lavrador (ca. 1070-1130), Francisco Xavier (1506-1552), Inácio de Loyola (1491-1556), Teresa de Ávila (1515-1582) e Filipe Néri (1515-1595). 

Os últimos quatro foram personagens importantes da Reforma Católica do século XVI após a divisão causada pela Reforma Protestante em 1517.

Os santos da Reforma Católica (muitas vezes chamada de Contrarreforma) não se restringem aos santos de 1622. Podemos acrescentar outras personagens importantes, como Francisco de Sales (que morreu em 1622), Joana de Chantal, Roberto Belarmino e Carlos Borromeu.

Gregório XV, o Papa da canonização de 1622, por Guercino.

Geralmente, os santos andam em grupos, pois pessoas santas normalmente têm amigos santos. É assim que deve ser. Jesus fundou uma Igreja — uma ecclesia, uma assembleia — para que não fôssemos discípulos sozinhos. 

Pense no que aconteceu na Polônia ano passado. O país comemorou o 75.º aniversário da elevação ao cardinalato do heroico Adam Sapieha, da sagração episcopal de Stefan Wyszynski e da ordenação sacerdotal de São João Paulo II. 1946 foi um bom ano. Sapieha foi modelo e inspiração para o jovem Karol Wojtyla. Mais tarde, como arcebispo, Wojtyla formaria uma parceria formidável com o Beato Stefan, o Primaz do Milênio. 

Vimos algo semelhante no século XVI. Teresa de Ávila tinha uma profunda amizade espiritual com João da Cruz. Foi uma colaboração fascinante. João era o diretor espiritual de Teresa, mas foi ela quem liderou a reforma do Carmelo. 

Francisco e Inácio se conheceram quando eram colegas de quarto na época em que estudavam em Paris. Francisco já dividia quarto com Pedro Fabro e tinha objetivos um tanto mundanos. Inácio, muito mais velho que os dois, juntou-se à pequena família mais tarde e começou a compartilhar com eles sua sabedoria espiritual. Isso mudou os rumos das vidas de Francisco e Pedro. Os dois são santos canonizados, um modelo magnífico de como amigos podem ajudar outros amigos a se tornarem santos.

Contudo, isso não significa que um santo deva concordar com outros santos. Os cristãos sabem muito bem disso, pois é algo que faz parte da palavra revelada de Deus. Moisés e Aarão discordaram em algumas ocasiões, e Paulo resistiu a Pedro “na cara” (Gl 2, 11-13), num episódio bastante conhecido [i]. Mesmo assim, muitos se surpreendem quando santos que viveram em épocas mais recentes entram em conflito uns com os outros.  

Pedro e Paulo foram os primeiros Apóstolos de Roma. Filipe Néri ficou conhecido como o segundo “Apóstolo de Roma” e também ele conheceu o conflito santo. Inácio viveu muito próximo de Filipe em Roma, mas eles seguiram caminhos muito diferentes. 

As cinco canonizações de 1622. Créditos: BTEU/RKMLGE, Alamy Stock.

Inácio, o ex-soldado, fundou um exército de elite composto por sacerdotes católicos. Para ele, os piqueniques e as peregrinações alegres de Filipe Néri eram no mínimo frívolos, senão tolos. Filipe, o segundo Apóstolo de Roma, foi mais sábio. As perversões profundas e sedutoras de Roma não seriam vencidas à força, mas convertidas pela “alegria na penitência e candura nos preceitos”, como disse São John Henry Newman a respeito de Filipe. Inácio tinha sua Companhia de Jesus; Filipe propunha um convivium

Uma personagem mais rigorosa foi o Papa Pio V, uma das principais personalidades da Reforma Católica, conhecido por ter sido o primeiro chefe da Inquisição (agora Congregação para a Doutrina da Fé), por ter promulgado a Missa Tridentina e o Catecismo Romano [ii], por ter excomungado a Rainha Elizabeth e por ter reunido a cristandade contra os turcos na Batalha de Lepanto

Pio V era cético em relação às ações de Filipe e chegou a restringir o ministério dele. Foi uma ameaça devastadora à pessoa de Filipe e a todo o projeto pastoral dele, que hoje nós chamamos de “Nova Evangelização” — inclusive, a igreja de Filipe em Roma ainda é chamada de Chiesa Nuova (Igreja Nova) mais de quatrocentos anos depois de ter sido construída.

O que Filipe faria se o Papa estivesse contra ele? Ele pensou em ir para o Norte e se refugiar na Milão de São Carlos Borromeu, seu grande defensor. Em todo caso, Pio V só reinou por seis anos. Portanto, a Providência cuidou de Filipe, já que o Papa teve o destino de todos os mortais. Porém, pensemos nisto: São Carlos foi a principal força por trás da eleição de Pio V ao papado, e era um leal apoiador dele. Carlos era aliado de dois santos que discordavam entre si: Filipe e Pio V. No caso de Filipe, em momento algum a veneração dele por Pio V diminuiu, apesar dos conflitos entre os dois.  

O mesmo John Henry Newman, que viria a escrever que Filipe, seu pai espiritual, era o “santo da mansidão e da amabilidade”, também viria a manifestar simpatia por Pio V num registro completamente diferente:

São Pio V era sério e rigoroso, tanto quanto era possível para um coração que ardia e se derretia pelo amor divino. [...] Porém, tal energia e vigor eram necessários para a época. Ele foi um soldado de Cristo numa época de insurreição e rebelião, quando foi proclamado um estado de sítio — em sentido espiritual.

Soldados santos, reformadores radicais, companheiros difíceis, amigos destemidos — estes foram os santos de 1622.

Notas

  1. A Vulgata diz: in faciem ei restiti, que o Pe. Matos Soares traduziu como: “eu lhe resisti na cara”. Preferimos manter a expressão, que constava também no texto em inglês: opposed Peter to his face (N.T.).
  2. A afirmação de que o Papa Pio V “promulgou a Missa Tridentina” (promulgating the Tridentine Mass, no original) deve ser entendida da forma correta: diferentemente do Missal de Paulo VI, produzido por uma comissão ad hoc, o Missal antigo (de Pio V até sua última versão, de 1962) é fruto de um desenvolvimento orgânico da liturgia católica, desde os tempos apostólicos. Mais esclarecimentos a esse respeito, em nosso curso A Batalha dos Missais.

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