[Este texto não foi escrito pelo Pe. Paulo Ricardo; é de autoria do escritor norte-americano Dale Ahquist e foi traduzido para o português por nossa equipe.]

Há muito tempo, muito antes da Idade das Trevas — estamos falando da década de 1970, a Idade “da Pedra” [1] —, quando estava no Ensino Médio, fiz um discurso contra o aborto numa aula de inglês. Faltava muito para que me tornasse católico, mas já era um cristão evangélico devoto; sabia que o aborto era errado em todos os casos e simplesmente não podia ser justificado. A Suprema Corte dos EUA acabara de tomar sua terrível decisão no caso Roe vs. Wade, e creio que o país estava assustado. Simplesmente não parecia possível que aquilo aconteceria um dia. As pessoas favoráveis ao aborto legal faziam parte de uma minoria barulhenta e desagradável; mas, de repente, haviam vencido.

Porém, a discussão não terminara. Eu, que já era um polemista, mergulhei na polêmica, e o fiz polemicamente. Proferi meu discurso, e como recurso visual utilizei… um bebê não nascido de verdade. Meu pai era professor de biologia no Ensino Médio, e às vezes o médico legista do município lhe dava um feto num pote, resultado do assassinato de uma gestante em circunstâncias incomuns. Meu pai tinha três ou quatro deles e os usava num curso de biologia avançada para mostrar os estágios de desenvolvimento pré-natal. Nunca eram expostos ao público. Para minha surpresa, ele me emprestou um para o meu discurso. É claro que, por diferentes razões, hoje nem todo o mundo poderia fazer isso sem arcar com as devidas consequências: um estudante de Ensino Médio dar uma palestra formal contra o aborto e mostrar na sala de aula um pote com um nascituro dentro… 

Mas foi eficaz.

Foto de um nascituro.

Eu havia listado todos os argumentos razoáveis que explicavam por que o aborto é imoral, mas o clímax aconteceu quando tirei o pote de um saco de papel e o levantei. “Isto é um ser humano”.

Ainda precisava finalizar meu discurso. Terminei dizendo: “Nas palavras do poeta: ‘Nunca tenha medo de que sua vida possa chegar ao fim; em vez disso, tema que ela poderia não ter um início’”. 

Todos os estudantes aplaudiram, e ficou bastante claro que eu ganhara o debate naquele dia. Minha oponente me parabenizou com relutância, mas disse: “Aquela parte com o bebê foi um golpe baixo”. (Eu por acaso disse que éramos namorados? Disse também que terminamos depois disso?) 

Esta foi a única coisa que o professor disse: “Quem era o poeta?”

Respondi: “Não sei. Peguei a citação de um cartaz que está colado na parede do meu quarto”.

O cartaz que estava no meu quarto mostrava a silhueta de um rapaz que se apoiava, claramente desesperado, no galho de uma árvore sem folhas, diante de um céu monótono.

Por motivos que explicarei adiante, estava pensando nessa citação outro dia e me perguntando se o autor dela era realmente um poeta, ou se toda a sua vida literária se resumia a um cartaz da década de 1970. Então, fiz uma pesquisa. Imagine minha surpresa quando descobri que a verdadeira citação é de — não, não é de G. K. Chesterton —  John Henry Newman, canonizado recentemente. Muito interessante. Vê-se que eu estava citando um católico. A frase original diz: “Não tema que a vida chegue ao fim, mas que nunca tenha um início”. 

Embora a citação não seja de Chesterton, que escreveu um belo poema chamado By the Babe Unborn [O Não Nascido], há aqui um paradoxo digno dele. Nossa vida precisa ter começado para que possamos ter medo de que ela não começará. Mas é um medo que devemos ter. 

O que é a “Vida sem Início”?

Refleti sobre isso recentemente, quando conversava com um casal que conheço há muito tempo. Eles tiveram um Natal muito infeliz. Seu filho seguiu um caminho permanente de autodestruição durante boa parte de seus 35 anos. Até quando criança, tinha um comportamento imprudente; machucava-se com frequência por se arriscar de forma impensada, e jamais assumia a responsabilidade por suas ações. Quando seu rosto sangrava por ter caído, a culpa era sempre de alguém. Depois de crescido, teve sempre um monte de desculpas para justificar suas não-realizações, ou melhor: suas antirrealizações. Evitou cuidadosamente os trabalhos escolares, de modo que conseguiu manter sua mente vazia. Passou horas jogando jogos eletrônicos. Jamais desenvolveu as disciplinas que lhe teriam dado satisfação mental, intelectual, filosófica ou artística, e somente procurou estímulos físicos. Depois de muitos anos fazendo isso, tornou-se um alcoólatra violento, incapaz de conseguir um emprego. Hoje ele pede esmola e rouba, fica bêbado e quebra coisas, fica sóbrio, arrepende-se (mais ou menos) e então faz tudo de novo.

A vida dele poderia acabar assim, e isso seria trágico. Mas a verdadeira tragédia é que sua vida jamais começou. Ele nunca começou a viver de verdade. Por um lado, ele é o produto de um sistema educacional que não ensina a verdade, a beleza e a bondade. Com isso, a única coisa que lhe resta é procurar em vão substitutos superficiais: gratificações artificiais, atraentes, reluzentes e instantâneas. Por outro lado, ele é um representante da geração do aborto, que aprendeu que suas ações não têm consequências. Seja como for, não existe nenhum sentido, apenas miséria. E ele é miserável. E como ele há milhões de pessoas cujas vidas jamais tiveram início. 

Quando rezarmos pelo fim do aborto, rezemos também pela geração do aborto, que foi duplamente enganada desde o início da vida. Se o primeiro capítulo não foi escrito, tampouco foi o último.

Notas

  1. O autor do texto, Dale Ahlquist, se refere à “Idade das Trevas” jocosamente, a fim de fazer um trocadilho. No original, ele fala da década de 1970 como the Stoned Age, “a Idade da Pedra”. Mas o adjetivo stoned, em inglês, também significa “sob a influência de drogas, especialmente a maconha”. Considerando que muitas drogas são consumidas em pedras, temos um novo jogo de palavras, agora em português (N.T.).

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