Até uma atividade rotineira como a alimentação mostra o quanto é falsa a imagem que geralmente se tem da Idade Média cristã. A gastronomia era colorida e sofisticada, revelando uma atitude positiva perante a vida.

Que os medievais gostavam de comer, todos sabemos; que gostavam de comer acompanhados, também o sabemos. Aliás, foi Michel Rouche, historiador da gastronomia, quem afirmou: “O banquete provavelmente nunca teve um papel tão importante como no período carolíngio”. Mas talvez nem todos saibam que também a mística medieval se ocupava dos “baixos” interesses culinários. 

João de Gante, duque de Lencastre, jantando com D. João I, rei de Portugal, em 1386.

Sejamos sinceros: quando pensamos nos místicos cristãos — e sobretudo nos da Idade Média — vem-nos espontaneamente à mente uma rejeição total do mundo e de suas realidades. Nada mais errado.

Em primeiro lugar, é próprio da espiritualidade cristã — e da medieval em particular, que entendia bem o cristianismo! — a distinção entre dois tipos de mundo. Um, o negativo, constitui, juntamente com o diabo e a carne, um dos três perigos para a salvação individual; é o mundo como poder e ambição, como interesse pela salvação terrena e não pela eterna; é quando se acredita que a salvação do corpo vale mais que a salvação da alma. O outro conceito de mundo é, pelo contrário, positivo do ponto de vista cristão. É o mundo criado; o mundo como matéria, desejada e santificada por Deus; o mundo como um livro aberto pelo qual se pode compreender a existência e a grandeza de Deus.

Foi precisamente a espiritualidade medieval que falou também desse segundo tipo de mundo. Sabemos que o Cantico delle Creature (“Cântico das Criaturas”), de São Francisco de Assis, é uma espécie de “manifesto” antignóstico. Naquela época, o perigo cátaro era uma realidade; e o catarismo era uma espécie de nova gnose, de demonização da matéria e do corpo: havia o deus bom, criador do espírito, e o deus mau (o demiurgo), criador da matéria. 

Mas não foi só São Francisco que o combateu.

Muito antes, nos primórdios, quando ainda não se podia falar plenamente em Idade Média, Santo Agostinho já se debruçava sobre o valor do corpo e da matéria. E depois seguir-se-ia uma tendência contínua, até chegar ao austero São Bernardo que, apesar de sua severidade, chegaria a dizer: “Como somos carnais, Deus faz com que o nosso desejo e o nosso amor comecem pela carne.” 

“O Milagre de São Bernardo”, quadro de Alejandro de Loarte.

Mas voltemos ao ponto de partida, ou seja, ao interesse dos medievais pela culinária. A espiritualidade cristã nunca foi indiferente à culinária, e menos ainda a espiritualidade medieval. É claro que não se trata apenas, e nem tanto, de um interesse ditado pelo fato de que um prazer material como comer, desde que lícito, é sempre um prazer cristão a ser valorizado; mas, sim, de um interesse que tem motivações espirituais. 

Alguém dirá: o que a cozinha tem a ver com o espírito? 

É fácil responder.

Os santos foram os primeiros a se convencerem da antropologia cristã, ou seja, da concepção segundo a qual o homem não é apenas espírito, mas também matéria, e que esta (a matéria) pode influenciar o bem-estar e as atividades do espírito. Não se reza bem com dor de cabeça. Com indigestão, então, nem se fale. Quando a digestão é lenta e difícil, sentimo-nos mais nervosos, menos receptivos, talvez mais vulneráveis às tentações. 

Muitos santos protomedievais e medievais insistem em dar prescrições alimentares. 

Santo Agostinho diz que se deve comer bem (exceto nos dias de penitência, entenda-se), mas [é preciso] levantar-se da mesa sempre com um pouco de fome. É uma prescrição que pode desagradar, mas experimente para ver se não é algo necessário para se manter ativo após a refeição. 

E a Regra de São Bento? Ela não fala também sobre quanto e como os monges devem comer? Há prescrições a esse respeito em pelo menos uma dezena de capítulos. [Tome-se] uma emina de vinho por dia, diz o Abade, o que equivale a 250 ml, mas há quem diga que São Bento se referia a uma quantidade maior. Não é pouca coisa. Evidentemente, o vinho era mais leve que o nosso, diluído em água. Além disso, não havia aquecimento a gás, de modo que as calorias, mesmo as provenientes do álcool, eram rapidamente queimadas. 

Hildegarda de Bingen recebe uma divina inspiração e a transmite ao seu escriba. Iluminura do século XII.

Para não falar das mais místicas entre as místicas. Santa Hildegarda de Bingen viveu no século XII e foi autora de importantes escritos (o Liber Scivias, o Liber vitae meritorum; o Liber divinorum operum); foi também abadessa de um convento muito numeroso, estudiosa das ciências naturais e médicas e mística com um incontável número de visões. Uma editora italiana publicou uma coletânea das suas receitas, intitulada Ricette per il corpo e per l'anima [“Receitas para o corpo e para a alma”], editada pela estudiosa Landis Eve [sem tradução portuguesa]. É um verdadeiro livro de culinária. Claro que há muitas sopas e caldos para os dias de penitência, bem como receitas com um claro valor espiritual, como a “sopa do pobre pecador”, cujos ingredientes, segundo os estudos de fisiologia de Santa Hildegarda, deviam facilitar uma espécie de serenidade no pecador arrependido. Mas também há pratos deliciosos, como uma mousse de tâmaras com nata e creme. Nada mal. Ou um pernil de bezerro com ervas aromáticas. Ou, até mesmo, nudeln (o antepassado do espaguete) com molho de manteiga, sálvia e amêndoas. Muito diferente da austeridade da Alemanha teutônica! Essa veio depois... não por acaso, com o fim da Idade Média e o advento do sombrio e sisudo protestantismo.

Enfim, uma santa — austera, muito austera — que não hesita em falar de boa culinária. E, volto a dizer, não é um caso isolado. O famoso tratado Le Ménagier de Paris conta que, na Idade Média, a mesa era muito bem cuidada, até mesmo refinada. Dava-se grande importância à apresentação dos alimentos e à organização geral das refeições. Tanto é verdade que outro famoso historiador da gastronomia, Jean Louis Flandrin, afirmou: “Os cozinheiros aristocráticos da Idade Média certamente sacrificaram o prazer do paladar ao prazer dos olhos; uma escolha que, a partir do século XVII, deixou de ser aceitável.”

Três soberanos franceses e alguns bispos assistem a uma representação teatral da Primeira Cruzada. Tudo durante um banquete oficial.

Outra consideração: com exceção dos dias de penitência, na Idade Média não era raro que, diante dos comensais, ocorressem representações teatrais e espetáculos de bufões. Nós sabemos bem como é agradável degustar e observar ao mesmo tempo. Quando vemos um importante jogo de futebol na televisão, sempre nos dá vontade de petiscar alguma coisa. Pois bem, foi o homem medieval que legitimou esse prazer, na convicção de que é preciso cuidar até dos mínimos detalhes para não perder nenhum prazer, desde que cristãmente lícito e honesto. 

Lembremo-nos dessas pequenas (mas importantes) coisas quando nos apresentarem a Idade Média como uma época triste e tenebrosa.

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