[Esta crítica possui, tanto em forma de texto quanto de imagem, revelações do enredo de “O Retrato de Dorian Gray”, de Oscar Wilde. Sobre as adaptações desta obra para o cinema, verificar nota no final do texto.]
Oscar Wilde escreveu várias peças de teatro primorosas, às quais deve sua reputação literária, e bom número de poemas medíocres. Seus contos também lhe justificam a fama, sobretudo os escritos para crianças, dentre os quais “O Gigante Egoísta” e “O Fantasma de Canterville” se destacam. No entanto, Wilde é autor de um único romance, “O Retrato de Dorian Gray”, aliás um dos melhores da “era de ouro literária” celebrada por Chesterton em The Victorian Age in Literature [“A Era Vitoriana na Literatura”, sem tradução portuguesa].
O irônico é que a maioria das pessoas conhece Wilde menos por sua produção literária que pelo escândalo de sua vida privada. Depois de abandonar esposa e dois filhos pequenos para se entregar à vida homossexual, acabou preso em 1895. Hoje, Wilde deixou de ser a figura “demoníaca” pintada por seus contemporâneos graças à iconoclastia moral do autor em matéria sexual para ser elevado aos altares como “mártir”, adorado por quantos o consideram um representante da “libertação” (homo)sexual. O mais irônico, porém, é que Wilde mesmo chegou a descrever sua homossexualidade como uma “patologia”, declaração que lhe valeria em alguns lugares da Europa, numa época de falsas liberdades como a nossa, uma passagem só de ida para a cadeia pelo crime hediondo de “homofobia”.
Wilde tampouco ficaria contente em ver sua obra literária eclipsada na prática pelos detalhes sórdidos e grotescos de sua vida privada. “Você sabia o que minha Arte era para mim”, escreveu ele ao amante Lord Alfred Douglas, “a grande nota primordial pela qual eu havia me revelado, primeiro a mim mesmo, e depois ao mundo; a verdadeira paixão da minha vida; o amor para o qual todos os outros amores eram como a água do pântano para o vinho tinto”. Morreu num sótão miserável em Paris, sem honra nem pátria, receoso de que as futuras gerações não vissem mais que a água turva de seus “amores”, deixando porém intocado o vinho de sua arte. Já à última hora entrou para a Igreja Católica, fortalecido e consolado pelos últimos sacramentos. Foi a consumação de um “romance” que se estendera por toda a vida, numa espécie de “flerte” com Cristo e a Igreja que remontava a seus dias de universitário em Dublin.
Que pensar desse que é o mais controverso e sedutor, o mais confuso e obscuro dos homens? Como decifrar o enigma de Wilde? Teria ele algo de valor a nos ensinar? Sua obra tem algo a dizer aos nossos tempos? Seria ela um ícone, capaz de revelar ao mundo Cristo e sua Verdade, ou, pelo contrário, um profissão de iconoclastia com o objetivo de destruir a civilização cristã com as armas da decadência e da irreverência?
Enquanto tentamos resolver o enigma e responder às perguntas de Wilde, somos confrontados e, talvez, afrontados pelo prefácio provocador com que se abrem as cortinas do romance. Isso nos diz algo sobre a veia aforística que atraiu para Wilde, antes da queda, a atenção dos salões de Londres e Paris. De fato, as duas páginas do prefácio são tão conhecidas quanto o romance, e chegam quase a ofuscá-lo. Tomemos por exemplo o juízo injuriosamente mordaz de Wilde sobre a época: “A antipatia do século XIX pelo realismo é a raiva de Caliban ao ver o próprio rosto num espelho. A antipatia do século XIX pelo romantismo é a raiva de Caliban por não ver o próprio rosto num espelho”.
Para Wilde, a Inglaterra vitoriana tardia é sinônimo de um dos personagens de Shakespeare em A Tempestade: um monstro sub-humano privado de toda cultura, de todo valor civilizatório, de toda virtude cristã, cuja deformidade física é reflexo de sua feiúra moral e espiritual. Seu nome [Caliban], anagrama de “canibal”, é um grito contra ele mesmo. É uma época que odeia o realismo porque não suporta ver a feia verdade sobre si mesma, mas que também odeia o romantismo porque se recusa a admitir uma beleza além da própria feiúra. E uma época que não suporta olhar para si mesma nem para além de si mesma está em apuros!
Tendo levantado à la Jonathan Swift um espelho de desprezo satírico à própria época, Wilde elogia os que estão abertos aos dons da beleza: “Os que encontram sentidos feios em coisas belas são corruptos sem ser encantadores. Isso é uma falta. Os que encontram sentidos belos em coisas belas são os cultos. Para esses há esperança”.
Essa ênfase insistente na não-relatividade da presença objetiva da beleza — quer dizer, ela não está nos olhos do observador, senão que está presente independentemente da capacidade de alguém observá-la — é uma condenação à cegueira cínica de quem, não podendo ver beleza ainda quando lha mostrassem, vê apenas feiúra. Isso, aliás, remete a um verso de uma das peças de Wilde na qual se define o cínico como aquele que vê o preço de tudo, mas não vê o valor de nada. No fim das contas, o cínico é um relativista incapaz de ver o intrinsecamente belo, o valor inerente à coisa; ele é capaz de ver unicamente o que está sujeito às variações de seus próprios sentimentos fugidios, isto é, o preço que lhes atribui num dado momento, mas que é sempre suscetível de mudança.
Até agora, Wilde tem-se revelado no prefácio do romance um esteta inclinado para a tradição, pois reflete seu gosto de longa data pela estética tradicionalista de John Ruskin em preferência à do modernista Walter Pater, duas influências profundas de Wilde em seus anos de formação em Oxford. O problema é que essa estética tradicionalista é amplamente ignorada pelos críticos modernos que preferem acentuar a afirmação de Wilde, no mesmo prefácio, de que a arte está além da moralidade: “Não existe livro moral ou imoral. Livros são bem escritos ou mal escritos. Isso é tudo”.
Tal cisão entre beleza e moral viola a unidade transcendental entre bom e verdadeiro, associada com acerto à Trindade pelos filósofos cristãos. Separar beleza, bondade (virtude) e verdade (razão) é violentar o cosmos. Dividir a trindade dos transcendentais equivale, no plano ontológico, a dividir um átomo, algo metafisicamente tão explosivo e destrutivo quanto a bomba atômica. Não admira que a bomba iconoclasta de Wilde, lançada com aparente indiferença no meio do prefácio, seja citada ad nauseam por quem busca a destruição e desconstrução niilista da própria noção de sentido.
Há no entanto uma deliciosa ironia no fato de Wilde negar e desafiar abertamente seu próprio aforismo num romance cuja trama, ao fim e ao cabo, supõe uma concepção moral profundamente cristã, a ponto de parecer uma profecia da futura conversão do autor. Em essência, seguindo a tradição faustiana, Wilde conta a história de um homem (Dorian Gray) que, inspirado por sua vaidade e pela filosofia iconoclasta de seu tentador satânico (Lord Henry Wotton), vende sua alma ao diabo em troca da conservação de sua boa aparência de menino. À medida que Gray satisfaz seus apetites sensuais com uma fome cada vez mais insaciável, seu retrato fica mais feio e cruel, um espelho da corrupção de sua alma.
Enquanto vai de abismo a abismo de depravação, Gray recebe de Lord Henry Wotton um “livro amarelo” que, pela descrição que faz Wilde de sua trama lúgubre, é obviamente a obra-prima decadente de Huysmans, “Às Avessas”, romance sobre a vida sensual e auto-complacente do protagonista, que, pela via do tédio, termina num grito final de desespero e num desejo desesperado por Deus. O protagonista de Wilde segue o mesmo caminho descendente. A diferença é que Dorian Gray, em vez de se arrepender, passa a desprezar o retrato, agora horrivelmente grotesco e salpicado de sangue derramado pelo modelo.
Vendo na pintura um reflexo de sua consciência e, no fundo, de sua alma, Dorian decide destruí-la a fim de gozar seus pecados sem a lembrança medonha das consequências cristalizadas na tela. O esforço para a destruir revela-se fatal e, no fim das contas, suicida. A moral, tão inescapável quanto clara, é que matar a consciência é matar a alma, e matar a alma é matar a si mesmo.
Em sua avaliação do romance, Wilde contradisse seu próprio aforismo, ao dizer que “há uma moral terrível em Dorian Gray — uma moral que o lascivo não será capaz de encontrar em si, mas que será revelada a todos que tenham a mente saudável”. Como toda boa arte, da qual o retrato de Dorian Gray é um símbolo poderoso, o romance de Wilde põe o leitor de frente para o espelho. Ele nos mostra a nós mesmos, e nos ensina as terríveis lições que temos de aprender.
Sim, há livros morais e imorais, estejam bem ou mal escritos. Os morais revelam-nos a nós e o nosso lugar no mundo. São epifanias da graça. Livros imorais são como Lord Henry Wotton da história de Wilde, ou como o próprio diabo na história que todos vivemos. São mentirosos e enganadores, apresentam uma imagem falsa de nós mesmos e do mundo em que vivemos. Se os livros morais nos despertam, os imorais nos embalam para dormir. “O Retrato de Dorian Gray” nos desperta, tirando-nos do caminho sonâmbulo de menor resistência que leva ao inferno. É por esta razão, ainda que não haja nenhuma outra, que devemos agradecer ao Céu pela visão do inferno que o romance de Wilde nos revela.
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