Nós do Ocidente perdemos a visão sobrenatural. Aquilo que outrora era evidente para os cristãos tornou-se obscuro para nós. A conexão entre o mundo espiritual e o material, parte do cotidiano das pessoas na Idade Média e no início da história da Igreja, deu lugar ao super-racionalismo da era pós-iluminista que vivemos hoje.

Para nos adequarmos aos tempos e parecermos relevantes, nós, membros da Igreja, muitas vezes jogamos fora o coração da fé em benefício da “cabeça”. Tudo o que está relacionado ao sobrenatural é considerado supersticioso e descartado; além disso, tentamos convencer nossos contemporâneos de que não somos mais um povo que enxerga o aspecto espiritual das coisas. Isso não é apenas uma injustiça e uma falta de caridade com os nossos irmãos em Cristo ao longo dos séculos; é também uma mentira. 

A adoção dessa perspectiva fez a Igreja ficar cada vez mais desconectada do sagrado na vida cotidiana. Relegamos o culto apenas aos domingos ou, durante esta pandemia, a uma tela de computador ou de televisão. Faltam aos nossos templos beleza e transcendência objetivas; além disso, eles foram reduzidos a um utilitarismo brando e sem sentido. Raramente procuramos elevar nosso olhar para o céu.

Embora sejamos cristãos, essa forma de ver o mundo se impregnou na nossa vida cotidiana. Não procuramos mais encontrar a Deus nos detalhes da vida diária. Não é assim que deveríamos viver. Em sua brilhante encíclica Fides et Ratio, São João Paulo II afirma: 

Assim, a história constitui um caminho que o Povo de Deus há-de percorrer inteiramente, de tal modo que a verdade revelada possa exprimir em plenitude os seus conteúdos, graças à acção incessante do Espírito Santo (cf. Jo 16, 13). Ensina-o também a constituição Dei Verbum, quando afirma que “a Igreja, no decurso dos séculos, tende continuamente para a plenitude da verdade divina, até que nela se realizem as palavras de Deus”. A história torna-se, assim, o lugar onde podemos constatar a ação de Deus em favor da humanidade. Ele vem ter conosco, servindo-se daquilo que nos é mais familiar e mais fácil de verificar, ou seja, o nosso contexto cotidiano, fora do qual não conseguiríamos entender-nos (§11–12).

Nosso dia a dia não deveria ser visto como um padrão sem sentido. Deus age no tempo neste exato momento. Estamos vinculados às pessoas que estão ao nosso redor por meio de nossa natureza comum e de nossa comunhão com a Santíssima Trindade. Deus age por meio de nós e dessas pessoas. Infelizmente, os católicos tendem a enxergar uns aos outros como um oceano de estranhos sem rosto, e não como irmãos em Cristo — um vínculo muito mais profundo do que somos capazes de compreender ou imaginar.

Essa perda de visão sobrenatural é parcialmente responsável pela nossa crescente irrelevância na cultura ocidental. Se quisermos apenas nos adequar aos que estão à nossa volta, não poderemos oferecer algo radicalmente diferente à cultura. Perdemos de vista a radicalidade da mensagem do Evangelho e o fato de que ela existe para transformar cada aspecto de nossa vida e nos ajudar a enxergá-la de uma forma inteiramente nova. Nós deveríamos enxergar com os olhos do Cristo crucificado.

Recentemente, deparei com a visão sobrenatural vivida na prática. Isso me chamou a atenção porque Cristo tem operado muitas coisas em minha vida espiritual para me ajudar a enxergar com os olhos da fé, apesar de minhas dúvidas constantes, tão endêmicas na Igreja ocidental por causa de nossa ênfase excessiva no racionalismo e no materialismo — tanto em sua forma científica como em sua  forma consumista —, que nos levaram a questionar tudo e a não confiar em ninguém, nem mesmo em Deus.

Fui a uma paróquia que fica do outro lado da cidade para rezar as Vésperas e participar da adoração. Lá conheci o novo vigário paroquial, que olhou para mim e disse: “Você veio aqui nesta noite por um motivo.” Como já era esperado, ele era africano, embora eu não soubesse de qual país. A fé está crescendo na África, apesar de estar decaindo aqui no Ocidente.  

Naquele momento, entendi concretamente em que medida devemos viver nossa vida de acordo com a fé sobrenatural. Para aquele sacerdote, cada encontro com uma pessoa fazia parte do plano de Deus. A Igreja não parou de ensinar isso; ao contrário, é uma realidade espiritual que nós escolhemos ignorar ou abandonar. Esquecemos que Deus age principalmente por meio de nossas relações com outras pessoas. Quando estamos abertos às suas inspirações, o Espírito Santo muitas vezes tenta nos guiar por meio de nossos irmãos em Cristo.

Ao longo dos nossos dias, quantas vezes achamos que outras pessoas ou situações são um incômodo, um aborrecimento ou um fardo? Dos pais e sua relação com os filhos aos sacerdotes e o pastoreio de seu rebanho, em nossos dias agitados e muitas vezes sem fé, todos nós esquecemos que Deus age em todos os momentos de nossa vida, inclusive no menor dos detalhes.  

Boa parte de nossa vida está repleta de sentido e carregada de espiritualidade, mas não conseguimos perceber isso. A perda de visão sobrenatural nos torna cegos para a maravilhosa tapeçaria que Deus deseja tecer em nossa vida. Uma tapeçaria que também está interligada com as pessoas ao nosso redor, que Deus deseja unir num só corpo. Os ensinamentos da Igreja sobre a comunhão não são sentimentalistas, mas um reflexo da profunda realidade de nossa interligação e de como devemos responder a Deus. 

Cada pessoa que encontramos ao longo do dia está ali por um motivo. Pode parecer irrelevante, mas na vida eterna ficaremos completamente impressionados com o fato de que as menores das interações faziam parte de um plano maior de Deus para nós. Veremos que certos dias de nossa vida tiveram mais sentido espiritual e que Deus estava agindo neles num nível mais elevado, particularmente em sua relação com o calendário litúrgico. Enxergaremos a importância de datas e épocas. Os judeus compreendem isso; por essa razão têm grande estima pelo simbolismo dos números e nomes.   

Muitas vezes, quando estamos atrasados e aparentemente trombamos com todos os obstáculos imagináveis (seja quando todos os semáforos estão vermelhos ou quando temos de parar e esperar o trem passar), Deus pode muito bem estar nos protegendo, ou talvez tenhamos de conhecer alguém no trajeto no tempo perfeito de Deus. Vi isso acontecer há alguns meses quando estava saindo da igreja após a Missa diária.

Estava dirigindo pela região central da cidade quando um pedestre passou diante de mim inesperadamente, obrigando-me a frear o carro. Então, prossegui em direção ao semáforo seguinte, que estava verde. Quando me aproximava do cruzamento, uma van cruzou o sinal vermelho em alta velocidade. Se o pedestre não tivesse passado na frente do meu carro, a van teria batido em mim. Provavelmente teria tirado minha vida e teria deixado minha filha gravemente ferida, pois ela estava do lado direito do banco traseiro. Deus levantou o véu e permitiu que eu o enxergasse em ação na minha vida de forma tangível. Isso me serviu como lembrete de que Deus age em nossas vidas constantemente, ainda que não tenhamos consciência disso.

Num dia normal, são inúmeros os momentos em que me pedem que leve uma mensagem ou faça algo por uma pessoa e, então, acabo me cruzando com ela. Muitas vezes, é o Espírito Santo confirmando o que Ele quer que seja feito. Se alinharmos nossa visão com a visão sobrenatural de Cristo, enxergaremos as conexões e seremos capazes de cooperar plenamente com as inspirações do Espírito Santo. Se sucumbirmos à incerteza ou se eliminarmos o sobrenatural de nossa vida cotidiana, dando lugar a uma visão de mundo mais racionalista, seremos incapazes de nos entregar ao Espírito Santo. Seremos limitados no modo como vivemos nossa vida de discípulos cristãos porque, essencialmente, viveremos nossos dias às cegas.

Numa época excessivamente científica, que abandonou o dom da fé, devemos recuperar uma vida de fé sobrenatural. Enxergar a ação de Deus em nossa vida cotidiana não é superstição. Quando fazemos isso, enxergamos além daquilo que está diante de nós e alcançamos o coração da própria Santíssima Trindade. A visão sobrenatural nos permite cooperar com as inspirações dela e aceitá-las, de modo que ela possa operar seu plano divino por meio de nós. Devemos ser veículos de seu divino amor. Não podemos responder a esse chamado se abandonamos o coração de nossa fé, que nos faz enxergar com os olhos de Deus, e adotamos uma compreensão puramente racionalista das coisas. É hora de recuperar nossa visão sobrenatural.

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