É consequência quase que natural, de um processo sério, maduro e verdadeiro de conversão, afastar-se das más amizades que se tinha antes e aproximar-se de outras pessoas que tenham em comum a vida de oração e a busca das virtudes. 

A razão disso é muito simples e consta na própria Sagrada Escritura: “Más companhias corrompem bons costumes” (1Cor 15, 33). Não é possível começar a seguir a Cristo e continuar levando a vida do mesmo modo, de mãos dadas com o mundo e com os mundanos. Os que se fazem amigos de Deus devem fazer-se, isto sim, inimigos do mundo — porque o contrário também é verdadeiro: quem se entrega ao mundo, a última coisa que quer ouvir falar é de Deus, de sua Igreja e dos Mandamentos (cf. Tg 4, 4).

Numa sociedade pagã como a nossa, então, é cada vez mais contrastante o modo como o mundo se comporta com o que nos manda o simples Decálogo. Está tudo estampado, às claras, na maneira como as pessoas se vestem, na linguagem com que falam, nas músicas que escutam, nas coisas que admiram…

Só para dar um exemplo muito concreto: as músicas mais ouvidas nos serviços de streaming de música (e também nas rádios), o que se tornaram senão pornografia auditiva pura e simples? As referências abertas ao que deveria ser o mais íntimo dos atos humanos, a incitação ao adultério, à degradação da mulher e ao próprio abuso de menores... nunca foram tão virulentas. E as pessoas não estão escutando isso (como se fosse pouco…); elas estão “curtindo” também, e divulgando, e colocando essas músicas para serem tocadas nas festas de família, de formatura e de casamento, de modo que também seus filhos são colocados, na maior tranquilidade, para cantar e dançar as baixarias que lhes vão aos ouvidos. 

Ora, quando o pecado se torna assim público, como não exigir dos cristãos um rompimento igualmente público com determinados ambientes e grupos de pessoas, de “amigos” ou até mesmo de parentes próximos? Não se trata justamente daquela “fuga das ocasiões perigosas”, básica para vivermos não só, mas principalmente a delicada virtude da castidade cristã? Não vale aqui o ditado segundo o qual é “impossível não queimar-se no meio de uma fogueira” [1]?

À parte a roupagem nova de que o problema se reveste hoje, também Santa Teresa d’Ávila podia se interrogar, em seu tempo, a respeito das más amizades (Caminho de Perfeição, c. 6): “Quando dois não pensam do mesmo modo, como poderão amar-se por muito tempo? É amor que há de acabar com a vida, pois, se um não guarda a lei divina, e, por conseguinte, não ama a Deus, diferentes hão de ser os seus destinos” [2].

Palavras difíceis de escutar estas, especialmente para uma época que deixou de acreditar na eternidade e no Inferno: “Diferentes hão de ser os seus destinos”. Mas a boa-nova de Cristo comporta essa divisão: “Não julgueis que vim trazer a paz à terra. Vim trazer não a paz, mas a espada. Eu vim trazer a divisão entre o filho e o pai, entre a filha e a mãe, entre a nora e a sogra, e os inimigos do homem serão as pessoas de sua própria casa” (Mt 10, 34-36). 

Radical essa divisão, alguém poderá objetar. E, no entanto, como já dito, essa inimizade não é invenção de nenhum ser humano, tampouco da Igreja; trata-se de um decreto divino mesmo, inscrito na própria natureza das coisas, tal como se apresentaram após a Queda. Na célebre frase de Santo Agostinho: “Dois amores fizeram as duas cidades: o amor de si até ao desprezo de Deus — a terrestre; o amor de Deus até ao desprezo de si — a celeste” [3].

Comentando a passagem de Gn 3, 15: “Porei ódio entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela”, São Luís Maria Grignion de Montfort ainda diz o seguinte em seu Tratado sobre a verdadeira devoção à Santíssima Virgem (n. 52):

Deus estabeleceu apenas uma inimizade — porém irreconciliável —, que haverá de durar e chegará mesmo a aumentar na razão mesma em que o mundo se for aproximando do fim. Esta inimizade é entre Maria, Sua Mãe imaculada, e o diabo; entre os filhos e os servos da Santíssima Virgem e os filhos e seguidores de Lúcifer [4].

Desenganemo-nos, portanto, tentando conciliar o inconciliável. “Quando dois não pensam do mesmo modo, como poderão amar-se por muito tempo?” É inevitável, entre os amigos de Deus e os que não querem saber dele, o distanciamento, a separação e, tantas vezes, até o ódio. (Não de nossa parte, porquanto Nosso Senhor nos pede que amemos inclusive nossos inimigos. Além disso, por mais afundada no pecado que esteja uma pessoa, sua alma imortal também foi comprada pelo Sangue de Cristo, e é nosso dever trabalhar por seu resgate, com oração, sacrifícios e, se houver esperança de emenda, também com apelos e “chamadas de atenção” [5].)

Mas também é verdade uma coisa: as pessoas que não estão na graça de Deus geralmente são as primeiras a não quererem para si a companhia dos justos. E por quê? Porque o comportamento destes é uma reprovação visível do modo como elas procedem. A roupa modesta da moça católica é a condenação explícita da roupa indecente da moça mundana, ainda que não lhe saia uma palavra da boca sequer. O católico que sai de um grupo de WhatsApp porque não concorda com a pornografia que seus contatos lhe mandam, excita o ódio destes mesmo sem fazer alarde algum. A família numerosa gerada por um casal católico aberto à vida é o “escândalo” da paróquia, e por aí vai. 

É lamentável, de fato, que tantos de nosso convívio, e até de nossa casa, estejam tão próximos de nós fisicamente, mas ao mesmo tempo tão distantes espiritualmente… Como já dito, porém, é isso o que acontece naturalmente quando se amam e se querem coisas opostas. Não adianta “forçar a barra” e querer estabelecer uma amizade a todo custo, pois nem os laços de sangue nem a proximidade física podem sanar o problema da discórdia, isto é, quando duas pessoas não têm o coração no mesmo lugar.

Por outro lado, que alegria não experimentamos quando fazemos um amigo, um único que seja, com o qual temos a graça de compartilhar os mesmos amores e as mesmas aversões (idem velle, idem nolle, como diz o adágio latino, “querer as mesmas coisas e rejeitar as mesmas coisas”). C. S. Lewis escreve que “a expressão típica de começo de amizade seria esta: ‘O quê? Você também? Eu pensava que era o único!’” [6]. Se o que os amigos têm em comum, então, é a busca por Deus, essa alegria é potenciada pela graça, e desde já o que se experimenta é um verdadeiro prelúdio da glória celeste, pois é este o destino comum para o qual eles caminham juntos

Para falar a verdade, o único modo de os amores humanos não descambarem para a idolatria é estando constantemente permeados pelo sobrenatural; a única forma de ordenarmos nossos afetos da forma devida é colocando-os sempre diante da Cruz de Cristo; a única maneira de amarmos retamente as pessoas neste mundo é procurando amar a Deus de todo o coração, com toda a nossa alma e com todo o nosso entendimento (cf. Dt 6, 5; Lc 10, 27).  

Do contrário, assim como com qualquer coisa deste mundo, ficaremos sempre insatisfeitos e “saturados” de algum modo, porque nossa alma foi criada para um outro tipo de amizade, a amizade com Deus, fora da qual todas as nossas amizades não passam de “parcerias”, “coleguismos”, destinadas ao mesmo fim das coisas materiais: o túmulo. É por isso que Santa Catarina de Sena aconselhava: “Se quiserdes que uma amizade dure, se quiserdes beber por muito tempo neste copo, deixai que ele se encha sempre na fonte de água viva; de outro modo, não podereis mais saciar vossa sede” [7]. 

Aqui mora o cuidado, também, de não deixarmos as boas amizades que temos se perderem por falta de referência a Cristo, nosso Amigo primeiro e fundamental, com “a” maiúsculo. Assim como na vida de perfeição, não basta que deixemos de lado as más companhias, que nos levam para o pecado; é preciso que transformemos o convívio com nossos amigos de fé em um desejo comum cada vez mais intenso pelas coisas celestes, em uma doação mútua cada vez mais generosa de bens espirituais… E isso exige esforço, luta constante e sabe-se lá quantas “doses” (tantas vezes dolorosas) de correção fraterna!

O importante é não nos esquecermos da miséria de nossa condição e da meta para a qual caminhamos. Estamos numa peregrinação difícil, é verdade, a montanha íngreme que queremos subir tantas vezes se agiganta à nossa frente e parece impossível subir… Mas, se temos bons companheiros para nos ajudar nessa jornada, que nos encorajam a seguir adiante, que não nos deixam desanimar quando tudo já parece estar perdido, que não nos deixam voltar atrás quando teimamos em confiar menos na graça que em nossas próprias debilidades, então temos o próprio Deus, visível, encarnado, caminhando conosco

Pois também Ele não desiste de nós; o que Ele mais quer é a nossa salvação eterna; e é Ele quem, em sua providência, nos presenteia com boas amizades:

Do ponto de vista de Deus, [...] nunca é por acaso que duas almas imortais se encontram, quer se encontrem ambas em estado de graça, quer só uma tenha a vida divina e possa por sua orações, sua atitude e seu exemplo levar a outra a retomar o caminho reto da eternidade. Não foi por acaso que José foi vendido por seus irmãos aos mercadores ismaelitas; Deus tinha decidido desde toda a eternidade que eles passariam ali a tal hora, nem mais cedo, nem mais tarde. Não foi por acaso que Jesus encontrou Madalena, ou Zaqueu, ou que o centurião romano se encontrava no Calvário [8].

Assim também, (não duvide!) não é por acaso nem um sequer de seus amigos!

Referências

  1. Pe. Antonio Royo Marín. Teología moral para seglares, v. 1. Madri: BAC, 1996, p. 446.
  2. Santa Teresa d’Ávila. Caminho de Perfeição (c. 6). Trad. das Carmelitas Descalças do Convento de Santa Teresa do Rio de Janeiro. Dois Irmãos: Minha Biblioteca Católica, 2018, p. 53.
  3. Santo Agostinho, De Civitate Dei, XIV, 28.
  4. São Luís M. Grignion de Montfort. Tratado da verdadeira devoção à Santíssima Virgem. Trad. de Raul Martins. Dois Irmãos: Minha Biblioteca Católica, 2018, p. 36.
  5. Falamos de “esperança de emenda” porque, se previrmos que nossa correção fraterna será inútil ou, ainda, virá a causar mais prejuízo do que benefício a outra pessoa, Santo Tomás de Aquino ensina que é melhor abster-se (cf. STh II-II, 33).
  6. C. S. Lewis. Os quatro amores. Trad. de Estevan Kirschner. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017, p. 92.
  7. Pe. Reginald Garrigou-Lagrange. O homem e a eternidade: a vida eterna e a profundidade da alma. Trad. de José Eduardo Câmara de Barros Carneiro. Campinas: Ecclesiae, 2018, p. 26.
  8. Ibid., p. 33.

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