Até pouco tempo atrás, a Igreja celebrava no dia 6 de maio a festa de São João Apóstolo ante a Porta Latina.
O nome talvez lhe soe estranho (pois onde já se viu uma festa com o nome… de uma porta?), mas a data esteve no calendário romano geral por mais de 1500 anos, até sua abolição na década de 1960, pelo Papa João XXIII (ou seja, antes mesmo da reforma litúrgica que se seguiu ao Vaticano II).
De que trata a festa?
Você certamente já ouviu dizer que São João foi o único dos Apóstolos que não morreu martirizado. Pois bem, é verdade. Mas isso não significa que o discípulo amado não tenha sofrido por seu Senhor. O antigo Martirológio registra a 6 de maio que, de Éfeso, onde vivia, São João foi preso, conduzido até a Cidade Eterna por ordem do Imperador Domiciano e, depois de um julgamento do Senado, posto numa grande vasilha de barro com óleo fervente, para morrer. O fato se deu por volta do ano 95 d.C.
Milagrosamente, porém, o Apóstolo teria saído do dolium (nome que os romanos davam a esses tonéis) não só intacto, mas ainda purior et vegétior, isto é, “mais puro e mais forte”. Como marco do prodígio, há em Roma a famosa Basilica di San Giovanni a Porta Latina, construída provavelmente no final do século V. (Nem é preciso dizer que a igreja fica bem perto de onde se deu o “martírio” do Apóstolo.)
Pomos martírio entre aspas aqui porque, como se pode ver, não se tratou realmente de um martírio: São João não morreu nesse episódio. O acontecimento está mais para uma tentativa de martírio. De qualquer modo, as obras de arte que retratam o fato intitulam-no simplesmente “Martírio de São João”, e ponto final. Além disso, a festa que havia na Igreja era celebrada com vestes vermelhas, próprias dos mártires, em reconhecimento a esta dura provação vivida pelo Apóstolo já quase ao final de sua vida.
As origens da festa
A origem da festa é incerta, mas os textos próprios de sua Missa se encontram já nos Sacramentários Gelasiano e Gregoriano. (É também da época do Papa Gelásio [492–496] a provável data de construção da basílica relacionada ao milagre.) Considerando também que Tertuliano, ainda no século II, foi o primeiro a registrar o que se passou com o Evangelista, estamos falando aqui, com muita probabilidade, de uma tradição conservada e transmitida pelas primeiras gerações de cristãos perseguidos — numa época em que (frise-se) nem mesmo o Cânon das Escrituras fôra definido!
No Breviário Romano anterior à reforma de João XXIII, o milagre era celebrado na antífona do Magnificat para as Vésperas de 6 de maio:
In ferventis ólei dolium missus beátus Joánnes Apóstolus, divina se protegénte grátia, illæsus exívit, allelúja. — Lançado numa caldeira de azeite fervendo o Apóstolo São João, protegido pela graça de Deus, daí saiu ileso, aleluia.
Além dos paramentos púrpuros, os textos da Missa eram tirados do Comum de um Mártir para o Tempo Pascal. O intróito (atual antífona de entrada) era o seguinte:
Protexísti me, Deus, a convéntu malignántium, allelúia: a multitúdine operántium iniquitátem, allelúia, allelúia. Ps. 63, 2. Exáudi, Deus, oratiónem meam cum déprecor: a timóre inimíci éripe ánimam meam. Glória Patri. — Vós me protegestes, Senhor, das conspirações dos malvados, aleluia, da turba dos que praticam o crime, aleluia, aleluia. Sl. Escutai, Senhor, a prece que vos dirijo, preservai a minha vida do terror do inimigo. Glória ao Pai.
A Coleta própria da festa nos pedia a intercessão de São João contra os “males que de todos os lados nos perturbam” (nos úndique mala nostra pertúrbant), e o Evangelho era o mesmo proclamado na festa de São Tiago Maior, seu irmão, narrando o pedido dos filhos de Zebedeu para que tivessem lugar um à direita e outro à esquerda de Cristo, no seu Reino. A passagem é marcante pela predição de Jesus: “Sim, do meu cálice bebereis” (Mt 20, 23). Como sabemos, São Tiago é mártir — foi inclusive o primeiro Apóstolo a morrer nessa condição. Diante da Porta Latina, porém, é como se São João tivesse de fato sorvido a sua parte do cálice do Senhor.
Mas por que celebrar São João duas vezes?
“Mas por que duplicar a festa de São João? Ele já não é celebrado a 27 de dezembro, em plena Oitava de Natal?”
Sim, é verdade, São João é um dos chamados comites Christi, “companheiros de Cristo”, festejados imediatamente após o nascimento do Salvador, assim como Santo Estêvão e os Santos Inocentes.
Mas não é preciso muito para ver que as duas comemorações — a de 6 de maio e a de 27 de dezembro — são de natureza bem diversa: uma celebra o “quase-martírio” de São João e sua libertação milagrosa de um caldeirão; a outra celebra todo o resto relativo à sua pessoa e, acima de tudo, à sua doutrina (não à toa o intróito para a festa de São João em dezembro é tirado do Comum dos Doutores: “No meio da Igreja o Senhor colocou a palavra nos seus lábios; deu-lhe o espírito de sabedoria e inteligência e o revestiu de glória” [Sir 15, 5]).
São tão diferentes as duas festas que você, por exemplo, muito provavelmente sequer tinha ouvido falar do episódio de São João diante da Porta Latina. Por que isso? Porque, com a abolição da referida festa, praticamente “se enterrou” junto o fato por ela celebrado (felizmente, ao menos o templo em Roma ficou de pé…). Então, é claro que lembrá-lo com uma festa litúrgica todos os anos seria bastante proveitoso: uma oportunidade maravilhosa de acrescentar mais um elemento à nossa vida de fé e piedade — sem falar da intercessão “em dobro” que ganharíamos do Apóstolo e Evangelista.
Mas é curioso notar como os relatos extraordinários das vidas dos santos têm sido, pouco a pouco, “cortados” da liturgia e, por consequência, também do imaginário dos padres e do povo de Deus. E, se o problema fosse só com tradições como a de São João ante a Porta Latina — que, embora sejam antigas e abalizadas, não precisam ser cridas com fé católica —, vá lá… Acontece que, com a tendência de duvidar de eventos sobrenaturais em geral, também os Evangelhos canônicos começaram a ser questionados e postos em xeque. Afinal, eles estão cheios de milagres — muito mais portentosos que o do caldeirão de São João!
O último Evangelho é ainda mais emblemático nesse sentido: por sua defesa aberta da divindade de Jesus — dogma que o modernismo sempre rechaçou com todas as suas forças —, a boa-nova de São João é até hoje uma “pedra no sapato” de vários teólogos e clérigos. Muitos prefeririam um texto mais “pé no chão” do que um que começa com: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” (Jo 1, 1).
“Só o virgem ao Virgem reconheceu”
São Jerônimo, aliás, o grande Doutor da Igreja e tradutor das Escrituras, fala desse Apóstolo e Evangelista com uma eloquência que merece nota. O breve texto a seguir é extraído de seu livro Contra Jovinianum (I, 26) e era lido, até as mudanças litúrgicas de João XXIII, no Ofício de Matinas para a festa de 6 de maio.
Percebam todos a admiração de São Jerônimo pela virgindade consagrada a Deus, sobre a qual já tivemos a oportunidade de falar aqui. Ele não fala do que ele próprio viveu, pois numa carta a Pamáquio escreve: “Se elevo a virgindade até os céus, não o faço por possuí-la, mas por admirar o que não tenho”. Mas as Escrituras exalam o perfume desse estado de vida, a começar pelo exemplo mesmo do Salvador e de sua Mãe, passando pelo conselho de São Paulo e chegando, finalmente, ao Apóstolo de que temos falado: São João Evangelista.
Senão vejamos:
O Apóstolo João, um dos discípulos do Senhor, que segundo a tradição foi o mais jovem entre os Apóstolos, e a quem a fé cristã achou virgem, permaneceu virgem. Por isso ele foi mais amado pelo Senhor, e reclinou sua cabeça sobre o peito de Jesus. Por isso, aquilo que Pedro, casado, não ousava perguntar [ao Mestre], ele rogava a João que lho perguntasse. Por isso, após a Ressurreição, tendo Maria Madalena anunciado que o Senhor ressuscitara, um e outro correram ao sepulcro, mas João chegou primeiro. Também por isso, enquanto estavam no barco, pescando no lago de Genesaré, tendo Jesus aparecido na margem e não discernindo os Apóstolos a quem viam, só o virgem ao Virgem reconheceu, e disse a Pedro: “É o Senhor”.
João foi, a um só tempo, Apóstolo, Evangelista e Profeta: Apóstolo, porque escreveu às igrejas como mestre; Evangelista, porque compôs um Evangelho — coisa que, com exceção de Mateus, nenhum dos outros doze Apóstolos fez; e Profeta, porque, estando na ilha de Patmos, onde fôra exilado pelo Imperador Domiciano para receber o martírio do Senhor, viu o Apocalipse, [livro] que contém infinitos mistérios a respeito das coisas futuras. Conta Tertuliano também que, mandado a Roma [e posto] num tonel de óleo fervente, dele saiu ainda mais puro e vigoroso do que entrara.
O próprio Evangelho por ele escrito difere bastante dos demais. Mateus começa a escrever falando como de um homem: “Livro da geração de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão”; Lucas começa pelo sacerdócio de Zacarias; e Marcos, pelas profecias de Malaquias e Isaías. O primeiro tem rosto de homem, por causa da genealogia [que apresenta]; o segundo, de novilho, por causa do sacerdócio; o terceiro, de leão, por causa da voz que clama no deserto: “Preparai o caminho do Senhor, endireitai os seus caminhos” (cf. Mc 1, 1ss). Nosso João, porém, qual águia, voa para o alto e alcança o próprio Pai, dizendo: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”.
Uma das pérolas mais preciosas da Bíblia é, com efeito, o início do Evangelho de São João. Tanto que os sacerdotes o liam ao final de toda Missa Tridentina. É lamentável que essa passagem, que faz brilhar com tanta clareza a nossa fé na divindade de Cristo, tenha sido relegada agora somente à Missa do dia de Natal — quando tantos na Igreja precisariam tê-la diante de si, proclamá-la e ouvi-la todos os dias.
Seja como for, com ou sem a festa de São João ante a Porta Latina, com ou sem seu Prólogo no final de cada celebração eucarística, a grande lição que nos deixa o Apóstolo e Evangelista é de coragem: por aquilo que escreveu e em que acreditou, ele teve de passar por um caldeirão de óleo fervente. São João certamente não sabia que sairia incólume dali. Naquela hora, o discípulo amado demonstrou o seu amor e, verdadeiramente, entregou-se à morte por causa de Cristo.
E quanto a nós? Teremos a mesma valentia que ele — valentia assistida pela graça de Deus, sim, mas valentia de todo modo? De que coisas estamos dispostos a abrir mão pela fé que dizemos professar?
Que São João Evangelista interceda por nós no Céu, ele que não hesitou dar a própria vida na frente da Porta Latina, e assista-nos no apertado caminho que conduz à estreita porta “celestina”.
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