Há 250 anos, numa Quarta-feira Santa, 11 de abril, quando a Cidade Eterna recebia grande número de peregrinos e visitantes, atraídos pela liturgia papal da Semana Santa e da Páscoa, Wolfgang Amadeus Mozart, o gênio musical, então com quatorze anos, chegou a Roma acompanhado de seu pai, Leopoldo, um músico competente.
O jovem Amadè — como chamava a si mesmo — realizaria três viagens à Itália entre 1769 e 1773, atingindo o ponto culminante do Grand Tour europeu, que nos séculos XVIII e XIX era quase obrigatório para a educação e a formação de um “cavalheiro”.
A “maravilha daquela época” era particularmente o Miserere de Gregorio Allegri (1584–1652), a famosa composição em nove partes e dois coros, composta pelo músico e sacerdote romano com base no texto do Salmo 50, em que o penitente lamenta seus pecados e implora a misericórdia divina:
Segundo Giuseppe Gioachino Belli (1791–1863), o grande poeta do dialeto romano, todos os ingleses que se hospedavam no hotel de Londres, na Piazza di Spagna, só conseguiam falar do prazer de escutar o Miserere na Basílica de São Pedro sem o acompanhamento de instrumentos. De fato, Belli se pergunta: na Grã-Bretanha e em todas as outras igrejas no estrangeiro, quem pode dizer, como em Roma, naquelas três noites de Quarta, Quinta e Sexta-feira Santas: Miserere mei, Deus, secundum magnam misericordiam tuam? O poeta recorda que, naquele dia, eles permaneceram no magnam por uma hora e cantavam daquele jeito — bebendo “como vinho puro o sangue das uvas” (Dt 32, 14), pois magnam é uma palavra apaixonante. Primeiro um músico a pronunciava, logo dois, três e então quatro; por fim, todo o coro cantava junto: misericordiam tuam.
Em carta à esposa datada de 14 de abril de 1770, dia em que ele e o filho chegaram a Roma, Leopoldo diz o seguinte:
Chegamos aqui em segurança no dia 11. Eu poderia ter sido facilmente persuadido a voltar para Salzburgo em vez de vir a Roma, pois a viagem de Florença a Roma durou cinco dias e foi feita sob uma terrível chuva com ventos frios. Ouvi dizer que em Roma tem chovido constantemente nos últimos quatro meses, e com certeza sentimos isso na pele quando fomos até a Capela Sistina para escutar o Miserere na quarta e na quinta [sic]. Inicialmente, o tempo estava bom, mas no caminho de volta para casa fomos atingidos por um aguaceiro tão intenso que jamais os nossos casacos haviam ficado tão ensopados como naquela ocasião [...]. Em Roma, fala-se com frequência do famoso Miserere, levado em tão alta conta que os músicos da capela são proibidos (sob pena de excomunhão) de levar consigo um único trecho da partitura, muito menos de copiá-lo ou passá-lo a outra pessoa. Porém, nós já o temos. Wolfgang já o copiou, e se não fosse necessária a nossa presença para executá-lo, nós o teríamos enviado a Salzburgo junto com esta carta. O modo de executá-lo deve desempenhar um papel mais importante do que a obra em si; portanto, nós o levaremos para casa. Por ser parte de um dos segredos de Roma, não queremos que ele caia nas mãos erradas, ut non incurramus mediate vel immediate in censuram Ecclesiæ [para que não incorramos, mediata ou imediatamente, na censura da Igreja]. Já exploramos a Basílica de São Pedro, e tenho certeza de que não deixaremos de ver nenhum lugar importante. Se Deus quiser, amanhã ouviremos o sermão de Sua Santidade.
O que aconteceu? Apesar do tempo chuvoso, pai e filho chegaram a Roma pelo norte, passando a Porta del Popolo e indo até um edifício localizado onde hoje se encontra a Piazza Nicosia, como desde 1996 nos recorda uma placa: “Wolfgang Amadeus Mozart / na casa que outrora existiu aqui… registrou o Miserere de Allegri”. Durante a tarde, pai e filho conseguiram escutar o Miserere de Allegri, cantado pelo coro da Capela Sistina e regido por Giuseppe Santi Santarelli, maestro pro tempore em 1770.
Composto em 1638, o Miserere era executado duas vezes por ano, durante o Ofício das Trevas, que hoje é chamado de Ofício das Leituras da Quinta-feira e do Sábado Santos (na Sexta-feira Santa cantava-se o Miserere de Felice Anerio ou o de Sante Naldini), depois das Vésperas do dia anterior — isto é, depois do pôr do sol da Quarta-feira e da Sexta-feira Santas — exclusivamente na Capela Sistina no Vaticano. Bem, Mozart, então um jovem adolescente, decorou e transcreveu a composição logo após chegar em casa. Tendo retornado para escutá-la na Sexta-feira Santa, levou em segredo a transcrição e a corrigiu durante a apresentação.
Por esse “furto” musical e por seus outros méritos artísticos, o jovem compositor não somente evitaria a excomunhão, mas seria feito cavaleiro da Ordem do Esporão Dourado pelo Papa Clemente XIV, para honrar “te, quem in suavissimo cymbali sonitu a prima adolescentia tua excellentem esse intelleximus — a ti, cuja excelência no suavíssimo som do cravo reconhecemos desde a tua mais tenra infância”, como se pode ler no Motu proprio de 4 de julho de 1770 [1].
É fato que Wolfgang Amadè Mozart, “da bela terra onde o si ressoa” [2], compôs pouca, mas escutou muita música sacra. “O milagre que Deus fez nascer em Salzburgo” — era assim que Leopoldo apresentava o filho aos italianos e, por meio deles, ao mundo inteiro — conheceu o milagre da polifonia sacra, na qual várias vozes se seguem umas às outras, entrelaçam-se harmonias, calam-se os instrumentos e ecoam as abóbadas de basílicas. Durante muito tempo, o gênio de Salzburgo preservaria a memória da polifonia e a lição aprendida com ela, a ponto de ter escrito em 4 de setembro de 1776 ao Pe. Martini (1706–1787), famoso teórico e músico bolonhês, além de seu maestro durante a temporada na Itália: “Nossa música de igreja é um tanto diferente da que é feita na Itália [...]. É necessário um estudo específico desse tipo de composição” [3].
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