Todos sabemos que vamos morrer, e todos odiamos o fato de que iremos morrer. Porque a morte é algo podre. É o “fracasso da carne”. Na verdade, Chesterton usou o medo da morte para fazer as pessoas apreciarem melhor a vida. Era por isso que, quando alguém dizia que não valia a pena viver, Chesterton sacava uma arma e se oferecia para atirar na pessoa. De repente, por alguma razão, quando fitamos o tambor de uma arma, vemos que a vida vale a pena! A vida é boa. A vida é preciosa.

Embora o medo da morte seja universal, o medo da condenação é mais pessoal e mais individual, porque esse temor é a voz de nossa consciência que nos julga. É o senso inescapável de que, se recebêssemos o julgamento que realmente merecemos, ele não seria agradável. Justiça é algo que todos desejamos quando achamos que fomos prejudicados, mas também é algo em que realmente não gostamos de pensar no restante do tempo, ou seja, na maior parte dele. O medo de ser realmente condenado é apenas uma profunda compreensão de que Deus é justo.  

Assim como Chesterton usou o medo da morte para despertar uma maior valorização da vida, também recorreu ao medo da condenação para estimular um maior apreço pela salvação. Geralmente, o medo da condenação é retratado como algo muito negativo, mas Chesterton não hesita em apresentá-lo como algo bastante positivo. Em São Francisco de Assis ele diz:

Um ateu muito honesto com quem debati certa vez usou a expressão: “Os homens só têm permanecido na escravidão por causa do medo do inferno”. Como lhe mostrei, se ele tivesse dito que os homens só foram libertados da escravidão por causa do medo do inferno, ao menos teria se referido a um fato histórico inquestionável.

Foi o medo do inferno que libertou os escravos, que, ao contrário de seus proprietários, não tinham medo do inferno. Thomas Jefferson se inquietou com o fato de que os recém-formados Estados Unidos da América, fundados sobre a liberdade, não haviam libertado os escravos. Ele se preocupava, dizia, “porque Deus é justo”.

Ao longo da história, os santos e outros amantes da justiça pregaram em defesa da reforma da sociedade, a fim de torná-la mais justa e menos infernal para os pobres e oprimidos. Usaram palavras simples sobre coisas boas como pão, terra, filhos e igrejas, e palavras simples sobre coisas ruins como crime, pecado, morte e inferno.

Pregaram aos presunçosos e aos que estão satisfeitos consigo mesmos, aos que abusam de cada um dos dons de Deus, inclusive o da linguagem, para criar filosofias cujo objetivo é naturalizar a religião. Chesterton diz que essas filosofias são de uma “brandura insondável”. Com certeza se esqueceram de Deus, mas seu grande erro antes disso foi ter esquecido o inferno.

“A Queda dos Anjos Rebeldes”, de Eugenio Cajés.

Quando nos esquecemos do inferno, esquecemo-nos da realidade mais ampla fora de nós. Cedemos ao egoísmo e egocentrismo. O inferno é a separação de Deus. Para piorar as coisas, o inferno é ficar aprisionado a si mesmo. 

Naturalmente, o inferno é sempre retratado como fogo, mas quando nos esquecemos dele congelamos. (Provavelmente, é por isso que Chesterton compara a Escandinávia ao inferno). Ele diz: “O inferno é o lugar onde nada pode acontecer”. Não podemos agir. Nada pode acontecer. Somos congelados. Por isso o inferno é simbolizado por correntes, e o céu por “asas livres como o vento”.

Ironicamente, só podemos agir neste mundo se houver um inferno. Só podemos agir se soubermos que nossas ações são importantes, eternamente importantes. Só podemos agir se nossas ações — boas e más — tiverem consequências.    

Em outras palavras, sem inferno não há livre-arbítrio.

Fomos feitos para o céu, mas não somos obrigados a ir para lá. Chesterton diz que é um dogma fundamental da Igreja Católica “que todos os seres humanos, sem exceção, foram feitos de modo especial, foram moldados e apontados como flechas reluzentes cuja finalidade é atingir o alvo da bem-aventurança”. Porém, as hastes dessas flechas, diz ele, “carregam as penas do livre-arbítrio e, portanto, formam a sombra de todas as trágicas possibilidades do livre-arbítrio”.

A mais trágica dessas possibilidades é a condenação eterna. A Igreja sempre tentou enfatizar “a maravilha da glória possível”, mas também tem de “chamar a atenção para as trevas da tragédia possível”.

No entanto, há no seio do cristianismo, e no da Igreja Católica, uma heresia crescente e insidiosa chamada universalismo. É a ideia de que todos irão para o céu independentemente do que fizerem. Evidentemente, isso contraria a doutrina da Igreja. Mesmo assim, vemos em muitos lugares uma resistência cada vez maior para falar sobre o inferno e as “possibilidades trágicas” que acompanham a glória do livre-arbítrio. Os universalistas superaram os protestantes, que reduziram o plano da salvação à ideia de que bastava a fé para obtê-la, enquanto os universalistas jogaram fora até mesmo a fé. Agora a salvação não depende de nada.

Mas a dignidade humana depende da doutrina do livre-arbítrio. Chesterton diz que o outro nome dela é responsabilidade moral. Também afirma que “pendem dessa perigosa e sublime liberdade o céu, o inferno e todo o misterioso drama da alma”, isto é, a incrível possibilidade de “um homem se separar de Deus”. Mas o fato de um homem poder se reconciliar com Deus é ainda mais dramático. Não há fundamento lógico — nem teológico — para a ideia de que podemos nos reconciliar com Deus sem que possamos nos separar dEle.

O inferno não é um assunto a ser evitado; é um lugar a ser evitado. É um grande risco não pensar nele. Podemos inclusive nos enganar com a ideia de que ele não existe. No entanto, pensar sobre o inferno é uma ótima ideia. E uma boa maneira de nos mantermos fora dele.

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