Quando Deus criou a humanidade, todos estavam chamados a conhecê-lO, amá-lO, fazer a sua vontade e um dia ir para o Céu. Mas, depois da Queda, o gênero humano tornou-se insensato, rebelde e escravo de paixões de toda espécie (cf. Tt 3, 3), e essa situação assim permaneceu até a Encarnação de Cristo. Assumindo a natureza humana em sua totalidade, exceto no pecado, Nosso Senhor abriu novamente as portas do Céu para os homens, tornando-os dignos da filiação divina pelo sacrifício redentor da Cruz.

Jesus mesmo providenciou um “batismo de regeneração e renovação” (cf. Tt 3, 5) para converter cada pecador em filho de Deus, herdeiro da vida eterna. E, em virtude da graça santificante recebida no Batismo, todos podem agora participar da vida sobrenatural, esforçando-se, como pede São Paulo, por se aperfeiçoarem na prática do bem (cf. Tt 3, 8).

Deus pede de nós um esforço pela santidade. Favorecendo-nos com seu amor, Ele espera uma resposta livre e sincera pelo exercício das virtudes e das boas obras.

Nestes últimos dois mil anos de história, a Igreja Católica teve a felicidade de testemunhar essa resposta na vida de muitos de seus filhos: homens e mulheres imbuídos de tal espírito heróico que se sacrificaram, dia e noite, por amor a Cristo e aos homens; um espetáculo público de pureza, bondade, fortaleza e generosidade. Como não se emocionar lendo a biografia de um Santo Tomás de Aquino, São Francisco de Assis ou Santa Teresa d’Ávila? Os santos foram aqueles que, auxiliados pela graça, guardaram livremente os mandamentos e a Palavra de Deus, e Ele mesmo veio fazer morada neles (cf. Jo 14, 23).

Bem diferente é a crônica do protestantismo. Baseados numa interpretação completamente absurda da Sagrada Escritura, os protestantes adotaram as teses luteranas da depravação total e da escravidão do livre arbítrio, razão pela qual eles não creem na santidade. Para Lutero, a natureza humana estaria tão corrompida, que ninguém teria condições de escolher livremente entre o bem e o mal. Ao contrário, todo e qualquer ato humano seria, ao fim e ao cabo, apenas mais uma perversão.

Mas, se os protestantes soubessem como o pai da Reforma chegou a essa ideia, pensariam duas vezes antes de lhe darem crédito. Lancemos, pois, um olhar à biografia de Lutero.

A sua entrada no seminário foi bastante indigesta, e não teve como impulso uma razão deveras vocacional. Antes disso, o reformador fez-se monge simplesmente para pagar uma promessa. Já no período de formação e depois como monge, o medo de seus pecados e a vontade escrupulosa de sentir-se perdoado por cada ferroada da concupiscência jogaram-no numa verdadeira paranoia; de fato, ele “era um sentimental e se preocupava doentiamente com o problema da predestinação, querendo sentir em si à fina força a certeza de que era um predestinado” [1].

Ademais, o monge reformador não conseguia distinguir entre tentação e pecado. Bastava um pensamento impuro, mesmo que não consentido, para que o homem se afundasse em desespero. Angustiado, atormentado pelo medo de padecer no inferno, Lutero procurou consolo nas Escrituras e leu: “O justo vive pela fé” (Rm 1, 17). E assim se deu a grande “descoberta” do reformador: a presunção de que a fé, e somente ela, seria necessária para a salvação, pois, como escreve o Apóstolo, “não há nenhum justo, não há sequer um. Não há um só que tenha inteligência, um só que busque a Deus” (Rm 3, 10-11).

Assim mesmo, então, sem aprofundar na teologia paulina, Lutero lançou-se contra a necessidade das boas obras, decretando o princípio da sola fide. Afinal, a interpretação que dera àquele versículo da Epístola aos Romanos lhe servia como justificação e apanágio.

Martinho Lutero no leito de morte.

Mas Lutero foi ainda mais longe. Para desculpar suas faltas, não teve pudor de blasfemar contra o Céu, imputando a responsabilidade de seus crimes não à sua vontade desordenada pelos vícios, mas à do próprio Criador: “Deus opera em nós o mal e o bem. Tudo o que fazemos, fazemo-lo não livremente, mas por pura necessidade” [2].

Doravante, a coleção de sandices só aumentou. Se Jesus exigia esforço para a passagem pela porta estreita, Lutero, por outro lado, aconselhava a rebeldia: “Se a consciência do pecado te acusa… não deves ouvi-la, mas contra a consciência e contra os teus sentimentos deves julgar que Deus não está irado” [3]. Se São Paulo mandava correr por uma coroa incorruptível, Lutero, por sua vez, incentivava ao pecado: “Temos que pecar enquanto somos o que somos” [4]. Se São Pedro dizia que a salvação custara o preço do Sangue de Cristo, Lutero considerava “como nos saiu barata a redenção de nossos pecados em um tal e tão grande Cordeiro” [5].

As consequências da teologia luterana não poderiam ter sido piores. A abolição da santidade e do esforço por uma vida sem pecados, radicada na prática das boas obras, levou os homens a uma pletora de imoralidades. É da pena do próprio Lutero esta confissão reveladora: “Depois da pregação da nossa doutrina, os homens entregaram-se ao roubo, à mentira, à impostura, à crápula, à embriaguez e a toda espécie de vícios. Expulsamos um demônio e vieram sete piores” [6].

Mas só podia dar nisso. Sem livre arbítrio, não há imputabilidade, não há mérito, não há moral, e o homem se torna uma marionete nas mãos de um “deus” que supostamente quer a conversão de uns e a condenação de outros.

Ora, a Igreja Católica pregou durante 1500 anos sobre a responsabilidade dos homens por cada um de seus atos, exortando-os a uma vida de acordo com o Evangelho de Cristo. Para ajudá-los, ela os agraciou com a oração e a eficácia dos sacramentos de Nosso Senhor, pelos quais Ele nos comunica os méritos de Sua Paixão e a força para resistir às tentações do maligno.

E se, por um lado, o Magistério condenou o pelagianismo e as suas derivações, defendendo a precedência da graça sobre as decisões humanas, é verdade também que os Papas sempre defenderam a liberdade do homem como um pressuposto básico para a conversão e o amor a Deus. Do contrário, Nosso Senhor seria um tirano que faz violência contra as suas criaturas: umas Ele obriga ao amor e outras ao ódio.

Na verdade, o protesto de Lutero, se levado até as últimas consequências, anula completamente os efeitos da Paixão do Senhor, que se resumiria a uma manta sobre a devassidão humana. Não haveria regeneração, nem graça santificante. Lutero, no fim das contas, preferiu a “graça barata”.

Mas e os protestantes? Que será destes cristãos que não acreditam na santidade? Qual será o salário daqueles que se apartaram da Santa Igreja para ficar só com a fé sentimentalista do reformador?

No capítulo 25 de São Mateus, Jesus não nos pede para pecarmos fortemente e crermos mais forte ainda [7]. Ao contrário, Ele descreve o juízo final como um interrogatório sobre as obras de santidade: “Tive fome e me destes de comer”. Se o próprio Martinho Lutero não teve dificuldades em admitir que sua doutrina “expulsou um demônio” para chamar outros sete piores; se o rio, ao que tudo indica, está contaminado em sua nascente, talvez seja o momento de os protestantes repensarem a fonte onde vão buscar a sua água…

Referências

  1. Lúcio Navarro, Legítima interpretação da Bíblia. Recife: Campanha de Instrução Religiosa, 1958, p. 47.
  2. Martinho Lutero, Weimar XVIII-635.
  3. Idem, Weimar XXV-330.
  4. Idem, De Wette II-37.
  5. Ibidem.
  6. Martinho Lutero, Weimar XXVII-443.
  7. Cf. Idem, De Wette II-37.

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