Desde que Blaise Pascal compilou cerca de oitocentos fragmentos de visão religiosa naquilo que viria a ser o livro de sua vida — uma obra-prima de apologética que ele deixou inacabada ao morrer, em 1670 —, não houve nada que igualasse a beleza e a persuasão de seus Pensées (“Pensamentos”). Até que G. K. Chesterton nos deu “Ortodoxia”, uma obra que, na opinião de muitos, nunca poderá ser superada em sua defesa brilhante e original da religião cristã. E ele ainda não tinha se tornado católico quando começou a escrevê-la, em 1908. A conversão só viria anos mais tarde, em 1922.
No entanto, após a morte de Chesterton, em 1936, a sua viúva receberia um telegrama assinado por Sua Santidade, o Papa, declarando-o “Defensor da Fé”, um título conferido pela última vez três séculos antes ao Rei Henrique VIII, que, antes de pôr fim a cerca de mil anos de fidelidade à Igreja una e verdadeira, a defendera contra as teses de Martinho Lutero. Ah, como Chesterton teria saboreado a ironia disso!
O que nos leva de volta a “Ortodoxia” e ao motivo pelo qual, como exercício de defesa da fé católica, a obra causou tanto impacto — ou deveria causar, para aqueles que ainda não a leram. Escolha um capítulo qualquer e o argumento apresentado em suas páginas será de tirar o fôlego.
Considere, por exemplo, um ou dois parágrafos do Capítulo IV, “A Ética no País das Fadas” [1], no qual ele descreve como as grandes verdades da fé lhe chegaram através dos contos de fadas que lhe eram contados quando era criança. Ele os chama de “minha primeira e última filosofia”: “As coisas em que eu mais acreditava naquela época, as coisas em que mais acredito agora...”
Então, o que é que são estas coisas?
Temos a lição de “Cinderela”, que é a mesma do Magnificat — exaltavit humiles (“exaltou os humildes”). A grande lição de “A Bela e a Fera”: uma coisa deve ser amada antes de ser amável. A terrível alegoria da “Bela Adormecida”, que conta como a criatura humana foi abençoada com todos os dons recebidos no nascimento, mas amaldiçoada com a morte; e como a morte também pode talvez ser suavizada e transformada em sono.
Naturalmente, todas estas histórias provocam um sentimento de deslumbre, alimentado pela capacidade inata da criança de surpreender-se. Prova disso, argumenta Chesterton, é o fato de, entre os muito pequenos, os contos de fadas não serem realmente necessários.
A simples vida já é interessante por si mesma. Uma criança de sete anos fica entusiasmada quando lhe dizem que Tomás abriu uma porta e viu um dragão. Mas uma criança de três anos fica entusiasmada quando lhe dizem que Tomás abriu uma porta. Os meninos gostam de contos românticos, mas os bebês gostam de contos realistas — porque consideram-nos românticos.
Só uma criança, diz Chesterton, poderia ler um romance moderno impregnado do mais puro realismo e não se aborrecer.
Isto prova que mesmo os contos infantis apenas refletem um salto quase pré-natal de interesse e espanto. Tais contos dizem que as maçãs eram douradas apenas para reavivar o momento esquecido em que descobrimos que eram verdes. Fazem correr os rios com vinho apenas para nos fazer lembrar, num momento de entusiasmo, que eles correm com água.
É aqui que Chesterton toca o ponto mais importante de todos, a saber: a necessidade de gratidão, cujo cultivo é o único a conferir a verdadeira felicidade. “Agradecemos às pessoas por termos recebido charutos e chinelos como presentes de aniversário. Não posso agradecer a ninguém pelo presente de aniversário que foi o meu nascimento?” E uma vez que somos todos mendigos perante a grande mesa de banquete do ser — destinatários de uma dádiva que nenhum de nós jamais poderia dar —, por que não haveríamos de nos sentir movidos a agradecer?
“O que disse o primeiro sapo?”, pergunta Chesterton. “E a resposta foi: ‘Senhor, como me fizeste saltar!’ Isso resume tudo o que estou dizendo. Deus deu ao sapo a capacidade de saltar; mas o sapo prefere saltar.” É assim que Chesterton apresenta ao leitor, “pelo prazer do pedantismo”, aquilo a que costuma chamar “a Doutrina da Alegria Condicional”, que se encontra em todos os contos de fadas já narrados.
E como ela funciona exatamente?
O tom do discurso da fada é sempre: “Você pode viver num palácio de ouro e safira, desde que não pronuncie a palavra ‘vaca’”; ou: “Você pode viver feliz com a filha do rei, desde que não lhe mostre uma cebola”. O sonho sempre depende de um veto. Todas as coisas estonteantes e grandiosas que são concedidas dependem de uma pequena coisa que é negada.
Percebe onde isso vai dar? Para pertencer ao país das fadas, para se tornar um verdadeiro habitante de uma cidade tão encantada, é preciso obedecer a algo que não se pode compreender totalmente.
No conto de fadas, uma felicidade incompreensível baseia-se numa condição incompreensível. Abre-se uma caixa e todos os males escapam. Uma palavra é esquecida, e as cidades perecem. Acende-se uma lâmpada, e o amor voa para longe. Uma flor é colhida, e os amores humanos são perdidos. Come-se uma maçã, e a esperança em Deus desaparece.
É impossível imaginar um modo mais vívido ou expressivo de explicar a Queda dos anjos e dos homens. Que a felicidade, seja a humana seja a angélica, deve depender de uma única escolha incompreensível: Obedecer ou não obedecer? — Eis a questão. E como poderíamos saber a resposta antes de fazer o teste?
Se a Cinderela disser: “Por que tenho de sair do baile à meia-noite?”, a madrinha poderá responder: “Por que ficará nele até meia-noite?” E tive a impressão de que a existência era, em si mesma, um legado tão excêntrico que não poderia me queixar de não entender as limitações da visão quando não entendia a visão limitada por elas. A moldura não era mais estranha do que a imagem. O veto pode ser tão selvagem quanto a visão; pode ser tão surpreendente quanto o sol, tão esquivo quanto as águas, tão fantástico e terrível quanto as árvores imponentes.
Era justamente esse fato paradoxal, dizia Chesterton, que explicava por que ele nunca se uniria à revolta geral contra a monogamia. “Porque”, insistiu ele,
nenhuma restrição ao sexo pareceria tão estranha e inesperada quanto o próprio sexo. Ter permissão, como Endimião (o príncipe pastor em quem a deusa da lua pôs o seu afeto), para fazer amor com a lua e depois queixar-se de que Júpiter mantinha as suas próprias luas num harém parecia-me um vulgar anticlímax. Manter-se fiel a uma só mulher é um pequeno preço pelo simples fato de poder ver uma mulher. Queixar-me de que eu só poderia me casar uma vez era como queixar-me de que só tinha nascido uma vez. Era algo incompatível com o terrível entusiasmo de que se falava. Mostrava, não uma sensibilidade exagerada em relação ao sexo, mas uma curiosa insensibilidade a ele. É um tolo quem se queixa de não poder entrar no Éden por cinco portas ao mesmo tempo.
Como é possível melhorar isso? Naturalmente, a resposta é que não é possível. Ninguém pode. Por isso, mergulhe de cabeça, leia o máximo que puder desse homem espantoso, regozijando-se ao longo do caminho, dando graças a Deus por tão grande e maravilhosa dádiva.

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