Como todos já sabem, o Papa Francisco fará amanhã, em união com os bispos do mundo inteiro, uma consagração pública e solene da humanidade — e em especial da Rússia e da Ucrânia — ao Imaculado Coração de Maria. 

Todo o orbe católico poderá assistir via internet à celebração penitencial que acontecerá em Roma, após a qual será feita a referida consagração. (O rito está marcado para começar às 17h no horário do Vaticano, 13h no horário de Brasília, mas a consagração propriamente dita será feita por volta das 14h30min em nosso horário.) 

Também será possível participar presencialmente, em várias dioceses, do ato de consagração a ser feito pelos bispos locais que atenderam ao apelo do Papa para que se unissem a ele em oração neste dia.

Uma consagração que tem história

O Papa São João Paulo II e Nossa Senhora de Fátima. Ele acreditava que fôra a Virgem a salvá-lo da morte, no atentado de 13 de maio de 1981.

Amanhã, 25 de março, é solenidade da Anunciação do Senhor, e neste mesmo dia, em 1984, São João Paulo II consagrou a humanidade ao Imaculado Coração de Maria, em Roma. Antes dele, porém, em 1942 e em 1952, também o Papa Pio XII realizou consagrações parecidas e, em 1964, o Papa Paulo VI.

Esses atos de consagração dos Papas já têm, portanto, uma longa história. Mas não sem polêmicas e controvérsias. Isso porque esse ato, repetido várias vezes e de diferentes formas ao longo do século XX, foi colocado por Nossa Senhora de Fátima como condição para a conversão da Rússia e a paz no mundo — vide o que disse a Virgem aos pastorinhos em 1917, logo depois de lhes mostrar o inferno: 

Vistes o inferno, para onde vão as almas dos pobres pecadores; para as salvar, Deus quer estabelecer no mundo a devoção a Meu Imaculado Coração. Se fizerem o que Eu vos disser, salvar-se-ão muitas almas e terão paz. A guerra vai acabar. Mas, se não deixarem de ofender a Deus, no reinado de Pio XI começará outra pior. Quando virdes uma noite, alumiada por uma luz desconhecida, sabei que é o grande sinal que Deus vos dá de que vai punir o mundo de seus crimes, por meio da guerra, da fome e de perseguições à Igreja e ao Santo Padre. Para a impedir, virei pedir a consagração da Rússia a Meu Imaculado Coração e a comunhão reparadora nos primeiros sábados. Se atenderem a Meus pedidos, a Rússia se converterá e terão paz; se não, espalhará seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja; os bons serão martirizados, o Santo Padre terá muito que sofrer, várias nações serão aniquiladas, por fim o Meu Imaculado Coração triunfará.

O pedido expresso de Nossa Senhora pela referida consagração aconteceria em 13 de junho de 1929, em Tuy. Desde então, como dito acima, vários atos foram realizados. Segundo a própria Irmã Lúcia, a consagração tal como a Virgem a pediu teria sido realizada em 1984 — mas desde então muitos ainda se recusam a aceitar que a consagração tenha realmente acontecido.

A Irmã Lúcia, vidente de Fátima, e o Papa São João Paulo II.

Isso certamente se deve, em grande parte, ao fato de que, sem ou com a consagração, nem a conversão da Rússia nem a vinda de um tempo de paz ao mundo efetivamente se realizaram. E Nossa Senhora havia dito aos videntes: “O Santo Padre consagrar-Me-á a Rússia, que se converterá, e será concedido ao mundo algum tempo de paz”. (Uma nota presente nas Memórias da Irmã Lúcia diz ainda: “Esta promessa é incondicionada; de certeza se cumprirá. Nós é que, de fato, não conhecemos o dia em que se tornará realidade.”)

Seja como for, não deixa de ser impressionante que: 

  1. o Papa Francisco tenha convidado os bispos do mundo inteiro a realizarem juntos a consagração de amanhã, tal como pedira Nossa Senhora de Fátima; e
  2. o ato de consagração de amanhã mencione expressamente a Rússia, tal como pedira, também, Nossa Senhora de Fátima.

De fato, o texto da consagração, que será lido em várias línguas ao redor do mundo, diz no penúltimo parágrafo: 

Por isso nós, ó Mãe de Deus e nossa, solenemente confiamos e consagramos ao vosso Imaculado Coração nós mesmos, a Igreja e a humanidade inteira, de modo especial a Rússia e a Ucrânia. Acolhei este nosso ato que realizamos com confiança e amor, fazei que cesse a guerra, providenciai ao mundo a paz. O sim que brotou do vosso Coração abriu as portas da história ao Príncipe da Paz; confiamos que mais uma vez, por meio do vosso Coração, virá a paz. Assim a Vós consagramos o futuro da família humana inteira, as necessidades e os anseios dos povos, as angústias e as esperanças do mundo [grifos nossos].

A interpretação de um bispo da Igreja

Dom Athanasius Schneider, bispo auxiliar de Astana, no Cazaquistão. Sua Excelência foi ordenado sacerdote por Dom Manuel Pestana Filho.

O bispo cazaquistanês Athanasius Schneider fez alguns comentários muito pertinentes a respeito da consagração que se fará amanhã. Ele observa, por exemplo, que,

Em comparação com as fórmulas dos últimos dois atos de consagração, feitos pelo Papa Pio XII (em 1952) e pelo Papa João Paulo II (em 1984), as palavras e a forma da consagração a ser usadas pelo Papa Francisco… expressam mais claramente os pedidos de Nossa Senhora de Fátima.

Respondendo às perguntas sobre a “validade” das consagrações anteriores, ele também faz notar que:

Como sabemos, em 25 de março de 1984, o Papa João Paulo II consagrou toda a humanidade ao Imaculado Coração, na presença da imagem original de Fátima, na Praça de São Pedro. Nessa consagração, ele mencionou especialmente aqueles povos cuja consagração Nossa Senhora gostaria que fosse feita. Tratou-se, portanto, de uma consagração implícita da Rússia.

Na Catedral de Nossa Senhora de Fátima em Karaganda, o centenário da primeira aparição de Nossa Senhora em Fátima, em 13 de maio de 2017, foi celebrado no contexto de um Congresso Mariano. O Papa Francisco enviou na ocasião um legado papal, o Cardeal Paul Josef Cordes, que na homilia mencionou a chamada consagração da Rússia ao Imaculado Coração, feita pelo Papa João Paulo II em 1984. Ele disse que, algum tempo depois da consagração de 1984, fôra convidado pelo Papa a jantar no apartamento dele e, durante esse encontro, perguntou ao Santo Padre: “Por que o senhor não consagrou explicitamente a Rússia?” João Paulo II lhe respondeu: “Era minha intenção fazê-lo”. O Papa então acrescentou que, devido a preocupações dos diplomatas do Vaticano, ele não poderia ter feito a consagração tal como originalmente a concebera, consagrando a Rússia de maneira explícita. Podemos ver, portanto, que devido às consequências políticas apresentadas pela diplomacia do Vaticano, o Papa João Paulo II fez a consagração dessa forma implícita. Esses são os fatos.

Questionada sobre esse ato, a Irmã Lúcia disse que o Céu o havia aceitado. Para mim, no entanto, essa frase da Irmã Lúcia, ou outras similares, não significam que esse ato tenha sido o mais perfeito. É claro, quando um Papa faz uma oração e uma consagração belas, o Céu as aceita. O Céu aceita toda oração bonita e sincera. Mas isso não significa, em minha opinião, que no futuro não pudesse ser feito um ato mais perfeito de consagração, que o Céu também receberia e aceitaria.

Sobre a menção conjunta da Ucrânia no texto da consagração, o bispo também faz um apontamento interessante:

Dada a presente e dolorosa guerra na Ucrânia, é inteiramente compreensível que o Papa Francisco a mencione também. Deve-se considerar, ao mesmo tempo, que em julho de 1917, quando Nossa Senhora falou pela primeira vez da consagração da Rússia, uma grande parte do território da atual Ucrânia pertencia ao Império Russo, que intitulava certas regiões desse território como “Pequena Rússia” ou “Rússia do Sul”. Se o Papa hoje mencionasse apenas a Rússia, uma grande porção do território que Nossa Senhora tinha diante dos olhos em julho de 1917 (isto é, a maior parte da atual Ucrânia) estaria excluída da consagração.

Dom Athanasius Schneider lembrou ainda a importante distinção entre Revelação pública e revelações privadas, tal como explicada pelo Concílio Vaticano II e pelo atual Catecismo: “As mensagens nas aparições de Nossa Senhora de Fátima, e depois separadamente à Irmã Lúcia, ainda que reconhecidas pela Igreja como sendo de caráter sobrenatural, são ainda assim uma revelação privada.” E, falando sobre a eficácia de consagrações como a de amanhã, arrematou: 

O efeito do ato de Consagração da Rússia ao Imaculado Coração de Maria, ainda que feito perfeitamente de acordo com o pedido de Nossa Senhora, não deve ser entendido como se fosse um sacramento, cujo efeito provém de sua celebração válida (ex opere operato). Um ato de consagração, teologicamente falando, é um sacramental (sacramentale), cujo efeito depende principalmente da oração impetratória da Igreja (ex opere operantis Ecclesiae).

A teologia católica especifica que os sacramentais (sacramentalia) não produzem a graça, mas são uma preparação para ela. Um ato de consagração não tem um efeito automático, imediato e espetacular ou sensacional. Deus, na sua soberana, sábia e misteriosa Providência, reserva a si o direito de determinar o tempo e o modo de realizar os efeitos de uma consagração. É bom que tenhamos em mente as palavras de Nosso Senhor: “Não pertence a vós saber os tempos nem os momentos que o Pai fixou em seu poder” (At 1,7). A maneira por meio da qual a divina Providência conduz a história da salvação e a história da sua Igreja é normalmente caracterizada por crescimento orgânico e gradualidade. Nossa tarefa é fazer o que pediu a Mãe de Deus; o resto cabe à Providência determinar, de acordo com tempos e modos ainda desconhecidos para nós. Como disse Santo Agostinho, até que Cristo retorne, “a Igreja fará sua peregrinação em meio às perseguições do mundo e às consolações de Deus” (cf. De civitate Dei, 18, 51).

Unamo-nos, pois, ao Papa e aos bispos do mundo inteiro amanhã, em oração, cientes de que é por um triunfo do Imaculado Coração de Maria que a conversão a Cristo chegará às nações e as almas serão salvas; de nossa parte, tudo que se pede resume-se a duas palavras: oração e penitência. Não façamos ouvidos moucos à mensagem da Virgem de Fátima.

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