O Catecismo exalta a esmola como “dinheiro ou bens dados aos pobres como ato de penitência ou de caridade fraterna” [i]. Pode parecer uma prática banal, mas a esmola teria sido inimaginável e estranha para o antigo mundo pagão. Para os antigos gregos e romanos, fazer caridade aos pobres não era uma virtude. De fato, eles sequer tinham uma palavra para designar esmola até que os cristãos inventassem uma. Como diz Roman Garrison: “A falta de terminologia na tradição grega (e também na romana) para o conceito de esmola revela um certo desinteresse pela situação dos pobres” [ii]. Foi o cristianismo, e antes dele o judaísmo, que introduziu a esmola no mundo.

Como ensinou Peter Brown, o eminente historiador da Antiguidade Tardia:

Ao dedicarem tanta atenção aos cuidados dos pobres, os judeus e os cristãos não estavam simplesmente fazendo em maior escala o que os pagãos já vinham fazendo de forma menos sincera e bem organizada. Longe disso. É preciso um certo esforço de imaginação histórica para perceber que, por volta do ano 360 d.C., o “amor aos pobres” era uma virtude relativamente nova (e para muitas pessoas caridosas e solidárias), ainda em grande medida periférica [iii].

Foi somente depois de trezentos anos de pregação cristã que os pagãos começaram a entender que ajudar os pobres era uma coisa boa a ser feita. Seus próprios pregadores e professores nunca foram tão claramente a favor dos pobres.

“Uma jovem dando esmola a um senhor”, por Jan Steen.

Sêneca, o antigo estadista e filósofo, escreveu: “Não darei nada a alguns homens, apesar de passarem necessidade, porque, mesmo que eu lhes dê [esmola], eles ainda continuarão precisando de ajuda” (De Beat. Vit. XXIII 5–XXIV 1). Cícero alertava contra dar [esmola] a mendigos, dizendo: “Aquele que recebe tais doações fica pior e mais propenso a esperar o mesmo no futuro.” “No entanto”, continua ele, “as esmolas devem ser concedidas ocasionalmente, (...) deve-se ajudar os pobres merecedores com os seus próprios bens, mas com parcimônia e moderação” (De Officiis II 54). E um pai instrui seu filho na antiga peça Trinummus (III 39): “Não fazes nenhum favor a um mendigo dando-lhe comida ou bebida, pois perdes o que lhe dás e prolongas a vida dele na miséria”.

A prática da esmola no mundo antigo tinha como objetivo impressionar a comunidade e aumentar o próprio poder. Na Grécia antiga, os ricos encenavam peças de teatro e construíam navios de guerra; em Roma, pagavam o pão e o circo (literalmente). Longe de ser um filantropo altruísta e desinteressado, Brown diz que o doador, na antiguidade, esperava obter “glória” e “o favor do povo”. De fato, tanto na Grécia como em Roma, o governo tinha de restringir o número de ofertas públicas que uma pessoa podia fazer por ano, com receio de que os ricos obtivessem muito apoio do povo e se tornassem uma ameaça para o imperador [iv]. Mas nenhuma destas doações visava os pobres.

Sêneca, Cícero e os seus conterrâneos se parecem muito conosco. Queremos ajudar os pobres, mas não em demasia — e apenas os que merecem. Se efetivamente doamos, gostaríamos de receber algo em troca — um determinado resultado, uma boa reputação ou até mesmo uma dedução nos nossos impostos. Falamos de doações com “impacto” e de um “ROI filantrópico” [v]. Mas a esmola visa os pobres — indiscriminadamente e sem expectativa de recompensa. Os cristãos não andavam pelas ruas interrogando os mendigos, questionando-os sobre as suas aspirações e convicções morais. Não tinham uma folha de registro que os ajudasse a discernir quem devia ganhar a sua esmola. O cristão dedicava-se aos pobres como Deus se dedicava a eles.

São Paulo escreve a Tito:

Também nós outrora éramos insensatos, rebeldes, desgarrados, escravos de paixões e prazeres, vivendo na malícia e na inveja, dignos de ódio e odiando os outros. Mas, quando se manifestou a bondade de Deus, nosso Salvador, e o seu amor pelos homens, não pelas obras de justiça que tivéssemos feito, mas por sua misericórdia, salvou-nos mediante o batismo de regeneração e de renovação do Espírito Santo (Tt 3, 3-5).

A esmola — em grego, elemosina — pertence à misericórdia, à extravagante misericórdia de Deus, que achamos difícil de conceber e cujo sentido muitas vezes nos escapa [vi]. Usamos de misericórdia para com os pobres sob a forma de esmola porque Deus usou de misericórdia para conosco na Pessoa de seu Filho. Quando damos esmola, participamos da prodigalidade de Deus.

“Santa Francisca Romana dando esmolas”, por Giovanni Battista Gaulli.

Contra a proposta de que devemos assegurar-nos de que os pobres são dignos da nossa esmola, o Beato Rábano Mauro (autor do célebre hino Veni, Creator Spiritus) pregava: “Quem dá esmola ao necessitado e não o despreza por causa de algum pecado que ele tenha cometido, defende com razão e justiça a misericórdia, pois na generosidade das esmolas deve ser considerada a natureza e não a pessoa” [vii]. Ora, é necessário estabelecer algumas distinções. A mais óbvia é que precisamos dar prioridade à esmola para os pobres que estão sob nossa responsabilidade. O Sumo Pontífice Nicolau I instruiu os búlgaros para que dessem a todos, embora cuidando primeiro de seus familiares necessitados [viii]. Na medida em que o cristão faz parte de uma família maior, a Igreja, também é obrigado a dar primeiro aos pobres batizados — mas, mais uma vez, sem a expectativa de receber algo em troca.

Cansado de ouvir seus fiéis se queixarem de que os pobres não demonstravam gratidão por suas esmolas, São Cesário de Arles disse: “Dás [uma esmola] ao pobre e talvez um dia ele te pague com uma injúria. Tu, porém, que procuravas o elogio do pobre, e não a recompensa de Deus, julgas ter agido em vão porque encontraste um ingrato, como se Deus desejasse e não quisesse ou talvez não pudesse recompensar-te pela boa obra [feita]” [ix]. O objetivo da esmola não é obter qualquer resultado do homem, mas uma recompensa de Deus. Dar esmola é uma das coisas menos utilitárias que uma pessoa pode fazer; um mergulho no abismo da inutilidade.

É claro que há um retorno com o qual o benfeitor pode contar — o que Jesus chama de “tesouro no Céu”. Deus é a nossa recompensa. Quando agimos com misericórdia, começamos a parecer e a agir como Deus, transformando-nos naquele que foi misericordioso conosco.

Notas

  1. Essa definição aparece no índice analítico da versão americana do Catecismo (cf. Glossary, “Almsgiving”). Mas assemelha-se muito a isto, que diz o próprio texto do Catecismo: “A esmola dada aos pobres é um dos principais testemunhos da caridade fraterna. É também uma prática de justiça que agrada a Deus” (§ 2447) (N.T.).
  2. Roman Garrison, Redemptive Almsgiving in Early Christianity (London: Bloomsbury Academic, 1993), 39.
  3. Peter Brown, Poverty and Leadership in the Later Roman Empire (London: Brandeis University Press, 2002), 3.
  4. Peter Brown, Through the Eye of a Needle (Oxford: Princeton University Press, 2012), 115.
  5. A sigla ROI significa “retorno sobre o investimento”. Aqui o autor se refere de forma crítica à mentalidade pragmática existente na cultura americana, a qual pode chegar inclusive a tratar obras de caridade como investimentos financeiros. Isto seria, portanto, uma completa distorção da caridade cristã (N.T.).
  6. No original: Alms… pertains to mercy, the extravagant, hard-to-conceptualize, I’m-not-sure-this-really-makes-sense mercy of God (N.T.).
  7. Hrabanus Maurus, Commentariorum in Ecclesiasticum libri decem III 6 (PL 109, 846B): Qui indigenti eleemosynam tribuit, nec eum propter delictum aliquod commissum spreverit, bene misericordiam jure custodit, quia natura in eleemosynarum largitione consideranda est, non persona.
  8. Nicolai I Papæ Epistolas IC 101, ed. E. Perels, MGH Epp. 6 (Berlin: Weidmann, 1925), p. 598.
  9. Caesarius, Omelia de spe retributioni boni operis ll. 30-4, in R. Étaix, “Les épreuves du juste: nouveau sermon de saint Césaire d’Arles,” Revue des études augustiniennes 24 (1978), p. 274: Das pauperi et forte alia die facit tibi iniuriam. Tu autem qui laudem querebas a paupere, non mercedem a Deo, putas quod sine causa fecisti quod ingratum invenisiti, quasi te desideret Deus et mercedem boni operis reddere aut non volet aut forte non possit.

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MR
Mateus Rodrigues
18 Mar 2024

A nossa atual dificuldade em dar esmolas revela como estamos em um mundo que em muitos aspectos se parece com a sociedade pagã na qual muitos dos primeiros cristãos viveram, dando testemunho e evangelizando. Façamos nós também o nosso testemunho diário, com a Graça de Deus! Amém!

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MC
Maria Costa
16 Mar 2024

Sem auxílio aos pobres, , não existiriam São Vicente de Paulo, Santa Teresa de Calcutá, nemSanta Dulce dos Pobres. Será que eles “testavam” para verificar quem era pobre de verdade ? 

1
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LP
Luiz Pereira
10 Mar 2024

Não é tão fácil e tão simples assim. Na ninha cidade há " casas de passagem", onde os andarilhos e mendigos podem tomar suas refeições todos os dias e pernoitar algumas noites. No entanto, muitos deles ficam pedindo dinheiro nos semáforos e calçadas. Numa dessas casas de passagem o cidadão relatou detadalhamente sua tática para comover os corações misericordiosos "pede uma fatia de fígado de boi em um açougue; amarra ele com uma gaze na perna; e "ensanguentado com a perna estourada" obtém facilmente o dinheiro da compaixão das pessoas (este, relata ter conseguido R$ 580,00 em apenas um dia com essa tática). Outro caso: o cidadão sendo inquirido como consegue dinheiro para suas drogas, ao que ele diz "eu peço dinheiro para as pessoas e elas me dão, assim, sempre tenho dinheiro para poder comprar".

Eu não nego esmola, mas não o faço sem um pente fino àquilo que se apresenta diante de mim, e já neguei inúmeras vezes, sem receio de ter agido contra a virtude de dar esmola. Cristão não pode ser uma marionete.

1
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RF
Rozilaine Faria
5 Mar 2024

Muito esclarecedor...eu costumava fazer julgamento do tipo: vou dar esmola e ele vai usar droga. Este texto me fez refletir que estou errada. Muito obrigada padre.

2
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KR
Karla Ramos
5 Mar 2024

Há um livrinho que pode nos ajudar nesse assunto: "A Esmola: O Banco Mais Vantajoso e Infalível",  de André Beltrami.

É muito útil. Todo católico deveria ler. Nos ajuda na compreensão desse tema.

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SL
Sérgio Lasserre
4 Mar 2024

Glória a Deus! Que coisa linda o "mergulho no abismo da inutilidade"! A moral utilitarista é a recusa da caridade, é a vitória da pergunta mais torpe que um homem pode fazer: "o que eu levo nisto?" É o mesmo raciocínio que leva pais a decidirem interromper uma gravidez por riscos para a mãe; ou, ainda, a sacrificar seu filho com anencefalia porque não lhes trará o "retorno" esperado.

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AT
Antônio Torres
4 Mar 2024

Amigos, ultimamente estou com dificuldade em dar esmola. Antigamente os pedintes de esmola eram ou deficientes ou pobres realmente.  Hoje vejo , pessoas usando isto como profissão , golpistas , mulheres fingindo , homens dando golpes fingindo , verdadeiros profissionais da esmola . Depois. Do covid então aumentou 100% .  Hoje só dou esmola depois de fazer uma análise rápida na pessoa,  ou que mecha com meu coração, ou então que eu veja que e um trabalhador precisando.  Vejo uma cambada de vagabundos pedindo , agora ninguém quer trabalhar.   Por favor me ajudem com algumas palavras de sabedoria , pois não sei se estou certo em meus julgamentos.  Padre me aconselhe..

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