O papel do gigante russo no cenário geopolítico não pode ser ignorado jamais. Todavia, desde fevereiro de 2022, quando estourou a guerra contra a Ucrânia, até mesmo os ocidentais, muito além das fronteiras da Rússia, estão atentos à sua presença de uma forma ou de outra.
No decorrer dos últimos dois anos, um número cada vez maior de conservadores e católicos ocidentais passou a simpatizar mais com a Rússia e sua atual liderança do que com os seus próprios governantes. As pessoas decentes, cansadas da crise de autoridade no Ocidente e desdenhosas de seus líderes de esquerda, sejam políticos sejam eclesiásticos, veem em Putin (pelo menos) um homem de autoridade com visão para seu país, não obstante suas falhas. Ante os ataques implacáveis à fé e à moral cristãs no Ocidente, eles estão dispostos a ignorar quase mil anos de cisma, concentrando-se, em vez disso, na reserva de valores cristãos que vislumbram na Ortodoxia russa.
No entanto, é a fraqueza do Ocidente, não a força do Oriente, que fomenta essas inclinações.
Além disso, a Ortodoxia oriental parece sofrer do mesmo tipo de dolorosa tensão interna vivida pelos católicos no Ocidente. Em um ensaio recente, Who guards the Guardians? [“Quem vigia os vigilantes?”], o Dr. John Behr, professor régio de humanidades na Universidade de Aberdeen, discute as razões por trás da relutância dos líderes ortodoxos em desafiar a ideia de Russkii mir [“mundo russo”], promovida pelo Patriarca Kirill de Moscou através de uma “guerra santa”, mais recentemente no Conselho Mundial do Povo Russo, em 27 de março. Citando o Arquidiácono John Chryssavgis, o Dr. Behr questiona se a relutância deles provém de
um reconhecimento agonizante, embora não declarado, de que também eles são fundamentalmente atormentados pelas mesmas falhas e vulnerabilidades… também eles poderiam ser tachados de hereges… Quantas Igrejas Ortodoxas tendem a glorificar a nação e o Estado? Quantas nações de maioria ortodoxa confundem a adoração a Deus com a saudação à bandeira? Será que a maioria, senão todas as Igrejas Ortodoxas, não estão, de fato, muito mais próximas do que podem admitir de uma ideologia russa pervertida?
À medida que uma situação cada vez mais complexa se desenrola no cenário mundial, somos chamados a superar um ponto de vista meramente geopolítico e aspirar a uma perspectiva sobrenatural. A aparição de Nossa Senhora em Fátima, às vésperas da Revolução de Outubro de 1917, é inseparável dessa perspectiva.
Nossa Senhora veio alertar contra o comunismo
Em maio de 1917, durante o tempo da Páscoa, a Primeira Guerra Mundial fez com que a Europa se assemelhasse a uma antecâmara do Inferno, como observou o historiador americano Warren Carroll, em seu excelente livrinho 1917: Red Banners, White Mantle [“1917: Bandeiras Vermelhas, Manto Branco”]. O Papa Bento XV falou de um “suicídio da Europa civilizada” e apelou à Rainha da Paz em 5 de maio com as seguintes palavras:
A Maria, Mãe de Misericórdia, toda-poderosa pela graça, subam, pois, os clamores de todos os rincões da Terra — dos templos magníficos e das mais humildes capelinhas —, dos palácios reais, das mansões dos ricos e das mais pobres choupanas, de toda parte onde haja uma alma fiel cheguem até Ela as angústias das mães, das viúvas desoladas, o gemido dos pequeninos, os anelos de todos os corações generosos. Possa sua solicitude, tão terna e benigna, obter a paz para o nosso mundo agitado [i].
Oito dias depois, em 13 de maio, ela veio pessoalmente, aparecendo num campo da Cova da Iria a três pastorinhos, Lúcia e seus dois primos, Jacinta e Francisco. Ela lhes deu instruções para que o triunfo de seu Imaculado Coração fosse alcançado, de modo a conceder um período de paz ao mundo devastado pela guerra. Em primeiro lugar, a oração, especialmente o Santo Rosário; em segundo lugar, a reparação dos pecados e ultrajes contra os Sagrados Corações de Jesus e Maria; e, em terceiro lugar, ela revelou que a Rússia deveria ser consagrada ao seu Imaculado Coração. Suas palavras foram:
Se atenderem a Meus pedidos, a Rússia se converterá e terão paz; se não, espalhará seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja; os bons serão martirizados, o Santo Padre terá muito que sofrer, várias nações serão aniquiladas (Memórias da Irmã Lúcia, p. 122).
A consagração da Rússia em tempo hábil provou ser uma tarefa difícil, levando a uma considerável controvérsia nos anos seguintes. Sejam quais forem os méritos que se possam atribuir às tentativas aparentemente incompletas ou atrasadas da consagração, é inegável que a Rússia espalhou seus erros pelo mundo e, até hoje, não se converteu.
O principal erro da Rússia é o comunismo — um projeto revolucionário para construir um mundo sem Deus, que conquistou territórios a Ocidente mais do que o Exército Vermelho jamais conseguiu. A disseminação do ateísmo materialista, o colapso da moralidade e a sanção legal do aborto e do homossexualismo — pecados que clamam aos céus a vingança [de Deus] — são todas evidências de seu sucesso. A afronta do comunismo a Deus prova-se pela intervenção de Nossa Senhora. Em 1917, ela desceu do Céu não para condenar a maçonaria, o globalismo ou o islão. Ela veio para condenar o comunismo.
Os erros espalhados pela Rússia
O objetivo do comunismo era redefinir todas as estruturas sociais para excluir Deus. E para fazer isso, primeiro era preciso abolir a família, que reflete a ordem divina.
A família é o lugar onde a vida humana é gerada, nutrida e protegida. Em um nível natural, ela dá um propósito à vida humana. As sociedades baseadas em famílias fortes não são facilmente controladas ou seduzidas pelo pecado e pela autocomplacência.
O modo mais eficiente de se controlar uma nação é atacando seus filhos. Quando suas mentes e corações são conquistados, decide-se o futuro de um país. Os comunistas foram os primeiros a cobiçar o direito dos pais de educar os próprios filhos.
No “Manifesto do Partido Comunista” (1848), Karl Marx e Friedrich Engels defenderam seu slogan “supressão da família” com estas palavras:
Censurais-nos por querermos suprimir a exploração das crianças pelos pais? Confessamos este crime.
Mas, dizeis vós, nós suprimimos as relações mais íntimas ao pormos no lugar da educação doméstica a social [...]. Os comunistas não inventam o efeito da sociedade sobre a educação; apenas transformar o seu caráter, arrancam a educação à influência da classe dominante [ii].
A abordagem “científica” dos marxistas em relação à família negava a lei natural à qual está sujeita a natureza humana. De acordo com eles, a matéria, animada pelo movimento e pelo progresso, é tudo o que existe. Assim, a família é um arranjo social transitório que, com o tempo, daria lugar a uma forma superior de sociedade — uma sociedade de verdadeiros iguais, desfrutando de recursos comuns, onde as mulheres não são mais oprimidas pelos homens nem as crianças “exploradas” pelos pais.
Assim que os bolcheviques tomaram o poder na Rússia, em outubro de 1917, apenas algumas semanas após a última aparição de Nossa Senhora em Fátima, eles lançaram seu programa para abolir a família.
Em 1918, o divórcio fácil e “sem culpa” foi introduzido e consagrado no Código da Família.
Em 1920, a Rússia Soviética tornou-se o primeiro país do mundo a legalizar o aborto, desencadeando um flagelo que destruiu mais vidas do que todas as guerras já registradas na história da humanidade.
A total institucionalização da educação era uma parte essencial do programa comunista. Em 1920, Aleksandra Kollontai, uma mulher muito influente no Partido Bolchevique e a primeira “Comissária do Povo para Assuntos de Bem-Estar Social”, escreveu no Kommunistka: “A sociedade comunista assumirá todos os deveres que envolve a educação de uma criança”.
Em 1922, a prostituição e a homossexualidade foram retiradas do Código Penal.
A revolução política do regime bolchevique foi acompanhada por uma preparação para a revolução cultural, que, desde o início, foi principalmente uma revolução sexual. O objetivo era redefinir não só a sociedade, mas a própria natureza humana.
Como salientou o Prof. Roberto de Mattei, o Instituto Marx-Engels de Moscou tinha relações com órgãos semelhantes na Alemanha — por exemplo, o Institut für Sexualwissenschaft [“Instituto de Pesquisa Sexual”], do Dr. Magnus Hirschfeld, criado em 1919 com o objetivo de normalizar a homossexualidade. Durante toda a década de 1920, estudava-se em intercâmbios acadêmicos a “reforma sexual” para abolir a família.
Em 1929, a liderança soviética convidou Wilhelm Reich a Moscou para dar uma série de palestras. Reich foi aluno de Sigmund Freud, cuja plataforma ideológica confrontava a moralidade cristã — baseada no sacrifício e na caridade para com o próximo — com o hedonismo baseado no prazer individual. Reich defendia o “cancelamento” da família e a mudança de atitudes “sexo-negativas” para atitudes “sexo-positivas” na sociedade.
Reich também era admirador de Vera Schmidt, cujo [programa] Detkski Dom [“Casa das Crianças”], em Moscou, realizava experimentos sexuais e psicanalíticos com menores de idade. Reich recomendou o trabalho como uma confirmação da sexualidade infantil. Essas “descobertas”, desenvolvidas pelos experimentos criminosos de Alfred Kinsey nos EUA algumas décadas mais tarde [iii], apesar de terem sido rejeitadas por sua natureza abusiva, ajudaram a moldar a ideia fundamental dos programas de educação sexual promovidos hoje por governos nacionais e agências da ONU em todo o Ocidente, a saber, a de que as crianças são sexuais desde o nascimento [iv].
Embora os arquitetos da revolução sexual tivessem aliados poderosos entre os líderes do regime comunista (como Trótstki), Joseph Stálin viu nela uma ameaça ao seu poderio político. Ele precisava de uma Rússia forte e, por esse motivo, reverteu muitas das leis antifamília que o regime havia introduzido: o divórcio tornou-se complicado, e o aborto, ilegal; as relações homossexuais voltaram a ser consideradas crime.
Rejeitados por Stálin, os ideólogos da revolução sexual fugiram para a Alemanha de Weimar, dando origem à chamada Escola de Frankfurt, onde continuaram seu trabalho como um think-tank de cientistas sociais marxistas. De lá, esses intelectuais seguiram para os EUA, onde assumiram cargos importantes em universidades como Harvard, Columbia, Princeton, Berkeley e outras instituições que, desde então, formaram a maior parte dos líderes civis e políticos dos Estados Unidos.
É por essa razão que as políticas hoje promovidas no Ocidente parecem e soam como comunistas. Esses são os erros da Rússia — não o patrimônio do Ocidente.
O comunismo do Ocidente e como curá-lo
Os ideólogos sexuais do Ocidente de hoje continuam a promover fielmente o ideal comunista de uma sociedade sem Deus. É uma revolução cultural contínua e paciente, que se concentra na educação, na mídia e na cultura popular. No entanto, ela continua sendo comunista: ainda busca destruir a ordem natural redefinindo a natureza humana; continua a “cancelar” as estruturas sociais baseadas na família e nas normas morais da lei natural; os direitos dos pais como primeiros educadores de seus filhos são minados e atacados; a inocência das crianças é sistematicamente destruída nas escolas, pela doutrinação sexual que visa acabar com o seu pudor natural, através da vulgaridade e da promoção de práticas imorais, especialmente a homossexualidade.
O politicamente correto de hoje pode ser atribuído à Escola de Frankfurt. Seu objetivo era conformar toda a linguagem, pensamento e comportamento aos princípios do marxismo cultural, criando um novo código ético, segundo o qual qualquer expressão da moralidade cristã deveria ser tratada como “crime de ódio”. Assim, aqueles que não aceitam a homossexualidade é que se tornam o problema, não aqueles que procuram forçá-la ao público; os pais que não aceitam a ideia de que seus filhos nasceram no corpo errado é que se tornam uma ameaça, e não aqueles que doutrinam as crianças com a ideologia de gênero; e assim por diante.
Os autores da Declaração Universal dos Direitos Humanos reconheceram muitos dos problemas do marxismo cultural em um nível natural e tentaram oferecer uma resposta secular. A Declaração de 1948 defende a vida e os direitos dos pais, pois ficou evidente, no fim da Segunda Guerra Mundial, que o pai de família não é um cidadão livre enquanto não governa a própria casa e precisa competir com o Estado pela formação da consciência de seus filhos.
Na ONU atual, há pouca consideração por seus documentos fundacionais. Em vez disso, promove-se a visão marxista da educação pelo Estado. O lobby do controle populacional assumiu um papel de liderança na formação de programas de educação sexual e políticas familiares internacionais. Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, a [chamada] Agenda 2030 global, por exemplo, exerce uma pressão esmagadora sobre os Estados-membros para “garantir o acesso universal a serviços de saúde sexual e reprodutiva, inclusive para planejamento familiar, informação e educação, e a integração da saúde reprodutiva em estratégias e programas nacionais” (Meta 3.7).
Isso significa acesso universal a contraceptivos, ao aborto, à promoção da homossexualidade e à doutrinação das crianças nas escolas — em outras palavras, à destruição institucionalizada da família.
É a isso, evidentemente, que todo católico deve resistir. Mas não se pode fazer isso abraçando uma falsa alternativa. Não é uma questão de preferir uma agenda global a outra. Ou mesmo ter de ficar do lado de uma ao rejeitar a outra. Em vez disso, é com a doutrina da Igreja Católica que todas essas visões de mundo devem ser confrontadas e, a partir disso, julgadas.
O Ocidente não se resume aos seus líderes nem aos valores de esquerda proclamados por eles. O verdadeiro Ocidente é a cristandade, a fé e a cultura moldadas pelos ensinamentos da Igreja Católica, seus santos e mártires.
Esse Ocidente parece ter se extinguido atualmente, mas, na verdade, foi apenas eclipsado. Por trás das sombras, o Sol permanece. Não devemos tentar fugir do eclipse à custa de abrir mão do Sol.
Com a necessidade de reconstruir a Rússia, após a devastadora perda de mão de obra e a desorganização social da guerra, foi inevitável que Stálin introduzisse leis para incentivar o casamento e a natalidade. No entanto, apesar dessas “boas políticas”, a história não o considera um líder pró-família. Pelo contrário, ele é lembrado como um ditador, responsável por um terror sangrento que custou milhões de vidas. Esse exemplo deve soar como um alerta para os que exaltam os atuais líderes russos só porque promovem causas pró-vida e pró-família (que os seus pares no Ocidente rejeitam).
Analisando as consequências do comunismo, David Satter argumenta que:
A Rússia de hoje é assombrada por atos não reparados e palavras não ditas, lugares não reconhecidos e valas comuns esquecidas ou só parcialmente homenageadas […]. A incapacidade de enfrentar as implicações morais da experiência comunista, no entanto, tem tornado impossível uma mudança real na Rússia. A psicologia da dominação estatal permanece intacta, [pronta] para influenciar a nova Rússia pós-comunista [v].
Enquanto a Rússia permanecer assombrada por seus erros — enquanto for cismática, anticatólica e comunista —, ela não poderá curar as feridas que seus erros infligiram ao Ocidente. São Pio X disse:
O desejo de paz é certamente um sentimento comum a todos, e não há ninguém que não o invoque ardentemente. A paz, no entanto, uma vez que Deus é negado, é absurdamente invocada: onde Deus está ausente, a justiça é exilada; e sem justiça, a esperança de paz é alimentada em vão (E Supremi, 7).
O mundo secularizado, que hoje envolve tanto o Ocidente quanto o Oriente, diz que quer a paz, mas se esquece de que declarou guerra a Deus ao desafiar as leis que Ele escreveu no coração humano. A mensagem de Fátima nos lembra que não haverá paz se não houver conversão primeiro. A advertência que se aplicou à Rússia em 1917 deve agora ser ouvida em todo o mundo, que adotou os erros comunistas como seus. Não pode haver paz duradoura sem justiça, mas o que isso significa de fato é: não pode haver paz verdadeira antes que as nações voltem a ser católicas.
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