Em 1920, o pastor e gramático Eduardo Carlos Pereira lançou um livro para lá de auspicioso: O problema religioso da América Latina. A ideia principal da obra, apresentada com toda a pompa de um “estudo dogmático-histórico”, era provar, sem meias palavras, que a culpada de todos os males da civilização latino-americana não era outra senão a Igreja Católica. Tamanha ousadia não passaria sem ser notada entre a opinião pública, dada a influência do catolicismo no Brasil, ainda mais naqueles tempos. Mas não coube a nenhum grande teólogo da época a missão de refutar brilhantemente o polêmico livro. Veio da pena de um ilustre desconhecido, um adoentado seminarista da Companhia de Jesus, a esmagadora resposta que causaria terror nas fileiras do protestantismo. O nome dele era Leonel Edgar da Silveira Franca.

Quando o livro A Igreja, a Reforma e a Civilização chegou às mãos dos leitores brasileiros, com o imprimatur do então arcebispo coadjutor do Rio de Janeiro, D. Sebastião Leme, os protestantes foram tomados de assalto por uma obra digna dos mais elevados polemistas. De fato, chegou-se a difundir a maledicência de que a Igreja havia recorrido a um de seus maiores teólogos para vasculhar às pressas os arquivos do Vaticano e encontrar material contrário ao sr. Pereira. A verdade, no entanto, era bem outra. Leonel Franca já se encontrava em Roma para concluir seus estudos quando deparou com as traquinagens do pastor. E diante daquele “libelo de sectário apaixonado”, o então seminarista viu a oportunidade de colocar a inteligência a serviço da Igreja e do bem das almas [1]. Iniciava-se ali a jornada pública daquele que — no parecer de ninguém menos que D. Aquino Corrêa — iria ombrear com S. José de Anchieta o título de “apóstolo do Brasil” [2].

O Pe. Leonel Franca.

Padre Leonel Franca foi uma daquelas personalidades raríssimas, capazes de influenciar o rumo da história. Mas nenhuma alma dessa envergadura surge do nada, é preciso frisar. Nascido no dia 7 de janeiro de 1893, em São Gabriel (RS), Leonel foi formado, desde a mais tenra idade, num berço católico e educado em bons colégios, onde aprendeu lições de alemão, francês e inglês. Nesse ínterim, seu avô materno, Joaquim de Macedo Costa, teria vislumbrado uma rosa saindo do coração do neto e exalando um perfume dulcíssimo, como de um santo. Aliás, a veia combatente do futuro sacerdote vinha exatamente deste lado da família: o tio, D. Antônio de Macedo Costa, era bispo do Pará e, ao lado de D. Vital, bispo de Olinda, travara luta voraz contra a Maçonaria. Decerto, é possível imaginar como Leonel Franca fôra cuidadosamente instruído na religião sagrada.

Após a morte da mãe, ele e o irmão Leovigildo foram internados no Colégio Anchieta de Nova Friburgo (RJ). Nesse ambiente, pôde demonstrar suas primeiras inclinações à vida intelectual e ao sacerdócio, recebendo, ao cabo do ano letivo de 1906, oito medalhas condecorativas pelo bom desempenho e aplicação nos estudos. O próprio arcebispo do Rio de Janeiro, o Cardeal Joaquim Arcoverde, foi quem lhe conferiu os títulos. 

Franca sentiu-se atraído pelo carisma da Companhia de Jesus já em meados de 1907, dirigindo um pedido formal ao superior da missão brasileira, Pe. Justino Lombardi, a fim de ingressar na família jesuíta. A princípio hesitantes, por conta da saúde frágil do candidato, os superiores só lhe aceitaram o ingresso após uma intervenção do Pe. Yabar, então diretor espiritual de Leonel. Uma vez admitido, ele não retrocederia nem mais um passo: “[Jesus] chamou-me de novo e, mau grado meu, me trouxe à Companhia! Oh! Amor incompreensível! Mais que nenhum outro sou obrigado a corresponder à minha vocação. O amor, a gratidão, o interesse o exigem” [3].

Leonel Franca entrou para a Companhia de Jesus com 15 anos de idade, no dia 12 de novembro de 1908. Noviço, cuidou em forjar-se na prática da oração e das virtudes, sobretudo para viver os votos de obediência, pobreza e celibato. Esse tempo de preparação ocorreu na casa dos jesuítas em São Paulo, para onde se mudou junto com o Pe. Fialho de Vargas. Já nesse período, sentiu no coração o desejo de um grande apostolado, como se pode ler em seu caderno espiritual: “Sinto inclinação para os estudos e para dar missões, principalmente aos índios…” [4]. Longe de uma pretensão vaidosa, ele manifestava sinceramente um chamado ao “estado de perfeição apostólica para o qual foram chamados... os maiores santos da Igreja” [5]. Por isso temia muitas vezes não ser capaz de corresponder àquela tarefa.

Dada a tenacidade com que Leonel aproveitou a formação, não é nada espantoso o propósito ao qual ele se aplicou após o chamado “Retiro Grande” dos jesuítas. Ele escreveu o seu próprio “Regulamento” em nada menos que 54 páginas de um caderno, imbuído da máxima: Maledictus qui facit opus Dei negligenter, isto é, “Maldito o que faz com negligência a obra de Deus. Desde então, a humildade, a oração e a mortificação se tornaram como as três colunas de sua vida interior, mantendo-as especialmente pela devoção ao S. Coração de Jesus. De fato, Leonel vivia essa devoção como “o lugar do seu repouso” e via como seu dever torná-la mais e mais conhecida. Era sobretudo na Eucaristia que se sentia mais próximo do Coração de Cristo, tendo em vista este seu santo propósito: “ordenar todo o dia, todas as minhas ações em relação à Santa comunhão, tornando-a o centro de minha vida espiritual” [6]. Ademais, tinha também uma piedade bastante voltada para a Via Sacra, a Virgem Santíssima e São José.

Essa vida ascética ajudou Leonel Franca a chegar à ordenação ciente de que seu dever primeiríssimo não era tanto o estudo quanto sua santificação. “No trato íntimo e contínuo com Deus, na meditação da vida e exemplos de Jesus Cristo é que devo haurir todos os dias a luz para a inteligência e sobretudo a força para a vontade, insistia [7]. Em 1923, depois do estrondoso lançamento de A Igreja, a Reforma e a Civilização, ele ainda teria a emoção de uma crise cardíaca que quase o levou à morte. A comorbidade deixou-lhe sequelas para o resto da vida, impedindo-o de realizar certos projetos, como o de assumir uma das cátedras da Universidade Gregoriana. “O essencial na vida é fazer a vontade de Deus, e o programa que Ele traça a cada um de nós nem sempre coincide com o que fantasiamos nos entusiasmos de uma juventude ardente”, escreveu Leonel a respeito [8]. 

Seja como for, no dia 26 de julho do mesmo ano, festa de Sant’Ana no antigo calendário litúrgico, Leonel Franca foi ordenado sacerdote pelo Cardeal Basílio Pompili. O irmão, Pe. Leovigildo, acompanhou de perto como Leonel viveu “aqueles dias envolvido numa atmosfera toda sobrenatural; muito amável e alegre com todos, mas sentia-se que não estava neste mundo”. “Durante toda a sua vida de sacerdote”, anotou depois o Pe. Leovigildo, “meu irmão conservou sempre este fervor edificante na celebração da Santa Missa” [9]. Pe. Leonel Franca concluiu seus estudos em Roma, sendo aprovado no exame ad gradum com sumo louvor. Estava formado o sacerdote que iria conduzir os brasileiros, sobretudo os jovens, para o Caminho, a Verdade e a Vida:

Quando penso no movimento espiritual que traz a juventude ao seio da Igreja, quando penso no campo imenso que no Brasil está esperando por quem o cultive, quando penso ainda que até agora, nós no Brasil não temos feito nada, nada para salvar a juventude universitária, vêm-me as lágrimas aos olhos. Enfim, Nosso Senhor sabe o que faz [10].

De volta ao Brasil, ele imediatamente se viu obrigado a combater pela Igreja frente à investida do modernista José Oiticica [11]. A resposta afiada do Pe. Leonel contra as tendências anticlericais daquele senhor mereceu de Jackson de Figueiredo, diretor do Centro Dom Vital, um elogio profético: “A Companhia, decerto, compreenderá o que o sr. pode fazer de bem ao Brasil contemporâneo, pois não há católico de senso que não saiba que ao sr. cabe dirigir, neste momento, a atividade intelectual das novas gerações…” [12]. Sem dúvida, o Pe. Leonel, em breve, tornar-se-ia o líder dos intelectuais católicos no Brasil.

Monumento em honra a D. Sebastião Leme, bispo do Pe. Leonel Franca.

O trabalho intelectual do Pe. Leonel Franca não serviu apenas à causa da Igreja, mas também à sociedade civil. Durante os 20 anos em que esteve no Colégio Santo Inácio, ele empreendeu iniciativas tremendas. Por nomeação do Cardeal Sebastião Leme, o Pe. Franca dirigiu a Ação Universitária Católica, cuja finalidade era ajudar os estudantes a trabalharem pelo bem da sociedade segundo os princípios da fé católica. A partir disso, em 1930, ele organizou um grupo para pessoas dos cursos de Medicina, Direito, Engenharia etc., para instruí-los na doutrina sagrada. Grupos semelhantes foram surgindo em outras cidades, como São Paulo, onde a agremiação estudantil mais importante, o Centro XI de Agosto, passou a ser dirigida por católicos na sua maioria.

Do mesmo modo, D. Sebastião Leme confiou-lhe o cargo de assessor do Centro Dom Vital, pelo qual já se interessava desde 1923, quando esse importante instituto foi fundado por Jackson de Figueiredo. O Pe. Leonel Franca acompanhou o grupo frutuosamente até 1936. Das conferências que proferiu entre os anos de 1929 e 1930 a respeito dos obstáculos à fé, surgiu o livro A psicologia da fé, outro fenômeno editorial na época. A obra ganhou repercussão nacional e internacional, com vários artigos elogiosos.

O campo de atuação do Pe. Leonel Franca se estendeu também sobre a área do Direito. Outra vez por indicação de D. Sebastião Leme, Leonel passou a auxiliar a Sociedade Jurídica Santo Ivo, cuja missão era reunir magistrados, professores de Direito e advogados católicos para defender o país de leis iníquas e preservar o bem da família e da Igreja. Com esse espírito, o Pe. Leonel Franca conseguiu reintroduzir o ensino religioso nas escolas e debelar o grande erro da época, que ameaçava a família: o divórcio. Durante a reforma do Código Civil, Leonel Franca realizou incansáveis conferências, fustigando com argúcia os argumentos divorcistas. Essas conferências foram depois organizadas em livro com o título de O Divórcio, e ninguém mais ousou tocar no assunto naqueles anos, dada a força da pregação do Pe. Leonel

Com palavras bem acertadas, o prof. Alcebíades Delamare escreveu sobre o sábio sacerdote: “Feliz é o povo que pode inscrever nos índices dos seus mais altos valores mentais, na coluna dos seus mais puros quantitativos morais, um homem da estirpe intelectual e das virtudes angélicas de um Padre Leonel Franca” [13].

Dada a credencial desse digno sacerdote, qualquer um pode calcular o tamanho da encrenca que seria desafiá-lo para um debate. Os oponentes não sairiam sem o devido vexame, ainda que, em sua arte retórica, o Pe. Leonel sempre mantivesse o caráter pacífico, segundo o lema de S. Agostinho: Diligite homines, interficite errores, “Amai os homens, destruí os erros”. Assim se viram corrigidos os vários pastores protestantes que, depois do estupor provocado por A Igreja, a Reforma e a Civilização, quiseram reavivar a polêmica. Para socorrer Eduardo Carlos Pereira, o pastor Ernesto Luís de Oliveira publicou Roma, a Igreja e o Anticristo. Dizia-se que aquele seria o golpe fatal na Igreja Católica, mas, como escreveu Pe. Leonel, “a realidade mentiu às esperanças”, porque “o livro do sr. Ernesto não adianta um ponto à controvérsia; repisa apenas, em mau português, velhos lugares comuns mil vezes refutados” [14]. Pe. Leonel, em resposta, publicou o contundente Catolicismo e Protestantismo.

Não satisfeito, o pastor Othoniel Motta decidiu colocar um ponto final no debate, pois, como ele mesmo reconhecia, o primeiro livro do Pe. Franca havia “tonteado o mundo protestante” [15]. Acontece que, mais uma vez, o campeão dos jesuítas venceu a disputa, trazendo para as fileiras da Igreja muitos reformadores, inclusive um dos mais notáveis alunos do prof. Othoniel Motta, o dr. José Lopes Ribeiro, que declarou:

[...] o amor à verdade nos leva a confessar que, nem a obra do Dr. Lysanias de Cerqueira Leite, nem a do conhecido professor e escritor [Othoniel Mott], nenhuma delas, sob qualquer aspecto, pode comparar-se, em lógica, na exposição de textos bíblicos ou na interpretação dos fatos históricos, a mais esse monumento que o grande e humilde filho de Santo Inácio levanta, ad majorem Dei gloriam, à causa de Nosso Senhor na terra de Santa Cruz [16].

Esses debates, por sua vez, reforçaram em Pe. Leonel a necessidade de trabalhar ainda mais pelo bem intelectual do país. Ele queria, no fim das contas, edificar uma universidade católica que pudesse oferecer aos jovens estudantes o patrimônio intelectual da humanidade, bem como uma orientação segura em meio à complexidade do mundo moderno. O seu apostolado pedagógico atraiu tanto o respeito da sociedade, que o padre acabou trabalhando durante 17 anos no Conselho Nacional de Educação, tendo sido nomeado, em 1931, pelo presidente Getúlio Vargas. Como princípio orientador, o Pe. Leonel tinha a Ratio Studiorum dos jesuítas, que traduziu e comentou. Anos mais tarde, ele lançaria um de seus mais importantes livros: A crise do mundo moderno.

O seu sonho enfim se tornou realidade, em outubro de 1940, com a inauguração da primeira universidade católica do Brasil, no Rio de Janeiro, e sua nomeação como primeiro reitor da instituição, em dezembro do mesmo ano. Mais tarde, em 1946, o governo brasileiro reconheceu a nova instituição dentro da legislação nacional e, em 20 de janeiro de 1947, a Santa Sé concedeu-lhe o título de Pontifícia Universidade Católica, pelo decreto Laeta Coelo Arridens.

Esses últimos esforços, porém, foram bastante severos para a saúde já frágil do sacerdote, de modo que, em 1948, ele começou a apresentar sinais de grave esgotamento. Finalmente, no dia 3 de setembro do mesmo ano, o campeão dos jesuítas entrou na eternidade. A notícia de seu falecimento foi motivo de tristeza em todo o Brasil, suscitando as mais belas homenagens e o reconhecimento por parte de muitas personalidades da época. Na Missa de sétimo dia, a Companhia de Jesus mandou estampar o seguinte lema de recordação: “Amou a Igreja realizando a verdade na caridade”.

Tal foi a vida de quem tudo fez para conservar no coração dos brasileiros o estandarte da Cruz de Cristo. Apesar de sua morte, Pe. Leonel Franca deixou-nos “um monumento a atestar continuamente sua presença no meio de nossa geração, que ele instruiu com sua cultura e edificou com os exemplos de sua vida”, afirmou o Cardeal Jaime Câmara, então arcebispo do Rio de Janeiro, desejoso de que o legado daquele exímio sacerdote fosse preservado e desse frutos abundantes [17]. 

Nestes dias sombrios, em que a Igreja parece caminhar errante, como se houvesse esquecido o Caminho, a redescoberta do patrimônio intelectual e espiritual do Pe. Leonel Franca é tarefa mais do que desejada. É mesmo uma pena que esse eminente pastor de almas seja hoje tão pouco conhecido, sobretudo dentro da Igreja Católica, em cujas fileiras há quem o considere figura ultrapassada e de pouca monta. Mas voltar a esses mestres do passado não representa um retrocesso — não se trata de ressuscitar um “cavaleiro do apocalipse”, como talvez alguns o chamariam hoje —; trata-se, sim, de voltar às veredas de outrora, à boa via da salvação, da reta doutrina da qual jamais deveríamos ter saído, e andar por ela, como nos manda o Senhor (cf. Jr 6, 16). Afinal, Deus suscita profetas do meio do povo para, num mundo vacilante, nos trazer de volta à firmeza de sua Palavra.

Notas

  1. Pe. Leonel Franca, A Igreja, a Reforma e a Civilização. Campinas: Calvariae, 2020, p. 9.
  2. Luiz G. S. D’Elboux, O padre Leonel Franca. Rio de Janeiro: Agir, 1952, pp. 9-10.
  3. Id., p. 30.
  4. Id., p. 37.
  5. Id., ibid.
  6. Id., p. 43.
  7. Id., pp. 80-81.
  8. Id., p. 135.
  9. Id., p. 134.
  10. Id., p. 123.
  11. Militante anarquista e membro da Fraternidade Rosa Cruz, José Oiticica dirigiu um ataque infeliz à Igreja e ao Papado pelas páginas do Correio da Manhã, em 13 de fevereiro de 1926. A resposta do Pe. Leonel Franca veio dias depois, em O Jornal, despertando o vivo interesse dos leitores cariocas. Mas tão-logo percebeu a vulgaridade do opositor, Pe. Franca guardou silêncio, deixando-o falar sozinho ao longo de mais de um mês. Depois de 15 artigos, quando José Oiticica cessou a ofensiva, então o Pe. Leonel mandou publicar Relíquias de uma polêmica, colocando um ponto final na questão. “Deus o inspirou, com a publicação do seu trabalho. Porque se o novo Sancho do leninismo não se confundir com os seus avisos, nós, católicos, sem letras, acharemos muito que aprender e aproveitar no repleto celeiro do seu livro”, disse um dos admiradores do Pe. Franca dentre as centenas que escreveram ao jornal, parabenizando-o pela coragem e sabedoria.
  12. Id., p. 157.
  13. Id., p. 190.
  14. Pe. Leonel Franca, O Protestantismo no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. ABC, 1938, p. 12.
  15. Luiz G. S. D’Elboux, op.cit., p. 223.
  16. Id., p. 227.
  17. A Editora Realeza preparou uma reedição limitada das “Obras Completas” do Padre Leonel Franca, já à venda.

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