Quanto chorei de profunda comoção em vossa igreja, ao suave ressoar de vossos hinos e cânticos! Aquelas vozes me fluíam aos ouvidos, e a verdade se me derramava no coração, e se inflamava então o afeto da piedade, e as lágrimas corriam, e bem eu me sentia com elas (Santo Agostinho, Confissões, IX) [i].

A sagrada liturgia expressa as verdades mais elevadas e sublimes não apenas de modo concreto, mas também artístico. O tipo de música requerido por ela é aquele que interpreta os pensamentos e sentimentos de Cristo e da Igreja em sua ação unificada. Ele deve ser um meio adequado para levar até o trono de Deus as orações dos fiéis católicos.     

É quase impossível negar que a música sacra e os hinos litúrgicos são um meio poderoso de oração e treinamento da mente e do coração. Na tradição católica, sobriedade, gravidade e nobreza sempre caracterizaram a música sacra apresentada nos espaços sagrados. 

Os diversos timbres musicais evocam nas pessoas emoções correspondentes. Existe uma relação misteriosa entre música e melodia e as mais profundas aspirações humanas. A música sacra nos instiga a sentir repugnância pelas coisas pecaminosas do mundo. A música e o canto enchem a alma de alegria e consolo. Segundo Cassiodoro:

[A música] afugenta a má tristeza com a alegria; mitiga os furores do orgulho; abranda a crueldade sangrenta; afugenta a preguiça e a languidez abatedora; concede aos que rezam salubérrima quietude [vigilantibus reddit saluberrimam quietem]; chama os viciados em amores torpes de volta à castidade; cura do tédio a mente avessa aos bons pensamentos; converte os ódios perniciosos em graças auxiliantes; e… por prazeres dulcíssimos expele as paixões da alma (Variarum II, Ep. 40: PL 69, 571) [ii].

De fato, isto sempre foi realidade ao longo da história. O herói de Homero encontrou alívio para as dores de um coração enfermo ao sentar-se debaixo de uma rocha elevada à beira-mar e entregar-se ao canto. Saul teve suas conturbadas paixões aplacadas, e sua tristeza, desconfiança e inveja dissipadas, pela música da harpa de Davi.

Em geral, os católicos não têm muita consciência do poder da música sacra e do fato de que a música da Igreja é um sacramental, que foi tocado pelo Sangue de Cristo. Isto é particularmente verdadeiro em relação ao canto gregoriano, “que a Igreja Romana tem como próprio — porque recebido da antiga tradição e mantido no decurso dos século sob a sua cuidadosa tutela — e propõe aos fiéis cristãos como algo próprio deles também” (Mediator Dei, 176).

Na verdade, diz a Mediator Dei, o canto “não só acrescenta decoro e solenidade à celebração dos divinos mistérios, antes contribui extremamente até para aumentar a fé e a piedade dos assistentes” (176). E “a multidão que assiste atentamente ao sacrifício do altar, no qual nosso Salvador, junto com os filhos remidos pelo seu sangue, canta o epitalâmio da sua imensa caridade, certamente não poderá calar, pois cantare amantis est: ‘cantar é próprio de quem ama’” (177).

O Pe. Fidelis Boeser, O.S.B., recém-falecido, chamou o canto gregoriano de “pulsação do Coração de Cristo”. Certamente, quando as palavras da liturgia sagrada, tão cheias de poder sacramental, são apresentadas a Deus Pai junto com a fragrância dos cantos sacramentais, honramos ainda mais a majestade do Senhor. Não estamos aqui na terra para conhecer, amar e servir a Deus, celebrando-o por meio do culto oficial da Igreja, tal como ela nos instruiu em sua sabedoria?    

“São Gregório Magno”, por José de Ribera.

O canto gregoriano abarca as tradições musicais da sinagoga e da Igreja. É a forma romana do antigo cantochão, que se distingue de outros cantos litúrgicos, como o ambrosiano, o galicano e o moçárabe. Historicamente, o canto gregoriano suplantou gradualmente esses outros cantos entre os séculos VIII e XI.  

É chamado de gregoriano por causa de São Gregório Magno, que ocupou a cátedra de São Pedro de 590 a 604. Segundo a tradição, foi ele quem elaborou o arranjo final para essas melodias e determinou que elas fossem aperfeiçoadas e publicadas. Aquilo que se tornou o antifonário gregoriano gradualmente se espalhou de Roma para todo o mundo católico.

Conta-se que foi Gregório Magno quem descobriu a oitava como sucessão naturalmente perfeita dos sons e distinguiu as diversas notas por meio de letras. Ele também acrescentou muitos novos cantos às belas harmonias que desde então receberam o nome de “gregorianas”. 

A ideia atual da pauta com quatro linhas e claves móveis parece ter surgido muito mais tarde e é atribuída ao monge beneditino Guido d’Arezzo, que viveu no século XI. Conta-se também que foi ele quem nomeou as primeiras seis notas da oitava. Originalmente, a nota “dó” era chamada de “ut”, e os seis nomes (dó, ré, mi, fá, sol, lá, si) foram tirados do hino das Vésperas da festa de São João Batista: 

Ut queant laxis resonáre fibris
mira gestórum muli tuórum,
solve pollúti bii reátum,
sancte Ioánnes [iii].

O canto gregoriano é essencialmente diatônico, isto é, as melodias são formadas a partir dos tons da escala diatônica, sem qualquer relação preconcebida com um acompanhamento harmônico. As melodias são cantadas em uníssono, sem nenhuma medida fixa de tempo, mas de acordo com o ritmo da língua falada.

Iluminura retratando São Gregório, por Taddeo Crivelli.

Já se disse muito bem que, por meio da música e da poesia sublimes de sua liturgia, a Igreja contribuiu para a conversão das nações com a mesma eficácia que tinha a sua pregação. Conta-se que Santo Agostinho [da Cantuária] e seus 49 monges encantaram os nativos na Grã-Bretanha com seus cantos gregorianos. São Bonifácio o utilizou para abrandar os costumes selvagens das tribos pagãs germânicas. Carlos Magno favoreceu sua expansão por todo o Império Franco e, em união com os Pontífices Romanos, utilizou-o como um dos mais poderosos instrumentos para civilizar seus vastos territórios.   

Por essa razão, não surpreende o fato de Pio X, em seu Motu Proprio [Tra le sollecitudini] de 22 de novembro de 1903, ter determinado a restauração universal da autêntica melodia gregoriana como o único canto da Igreja Romana, descrevendo-o como “o modelo supremo da música sacra” (que é o mesmo que música litúrgica) por conter em grau mais elevado as qualidades características da música sacra: verdadeira arte e santidade.

Portanto, dado o caráter supremo de sua natureza e sua capacidade artística, o canto gregoriano é completamente indispensável na celebração da liturgia solene, já que é parte integral da liturgia romana. Tanto é assim que, se não houver canto, a Missa cantada não pode ser celebrada de forma adequada. Tal é a relação entre a liturgia da Igreja e a música empregada por ela, como têm estabelecido ao longo dos séculos as diretivas do Vaticano.  

Embora não escutemos o canto gregoriano em todos os lugares atualmente, ele está claramente retornando em algumas paróquias graças a uma renovada apreciação de sua capacidade artística e propensão — uma tendência e habilidade naturais — a atingir as profundezas da alma dos que têm a graça de escutá-lo ao vivo no contexto e no drama dos ritos sagrados, o culto oficial da Igreja.

O fato de um período caótico e mal educado não conseguir entender com clareza estas simples verdades não muda o fato de que o canto gregoriano reina supremo e está retornando com intensidade. Nas palavras de G. K. Chesterton: “Os planos mais ambiciosos para o futuro invocam a autoridade do passado”. O mundo é velho, mas a Igreja (tal como o canto gregoriano) — sempre antiga e sempre nova — é jovem.

Finalmente, é útil incluir aqui o verbete sobre canto gregoriano presente no Catecismo Católico Popular, de Francisco Spirago, um recurso bastante conhecido e confiável:

É provável que o santo pontífice [Gregório Magno] tenha se ocupado dele em virtude de uma inspiração ou de uma revelação divina: é por isso que é sempre representado com uma pomba junto do ouvido. Este canto é de uma gravidade sobrenatural, de uma tranquilidade sacra, de uma majestosa sublimidade; é isento de todos os movimentos apaixonados ou estrondosos e não procura os efeitos; distingue-se assim do canto das ruas, dos concertos, dos teatros e dos divertimentos públicos. É como a linguagem do outro mundo mais elevado, é o verdadeiro canto da oração. No cantochão olha-se antes de mais nada para as palavras do texto, que se percebem muito distintamente; a bela e modesta melodia só se nota em segundo lugar. Mas este canto não é ligado pelo ritmo nem pela medida, e é precisamente esta independência que cativa o homem, como a torrente da eloquência lhe arrasta o coração. O canto gregoriano é invariável como a liturgia, e conserva-se por toda a parte e sempre o mesmo; é assim que ele responde melhor à essência e às qualidades da nossa Igreja, à sua unidade e universalidade. ‘Os cristãos piedosos preferem este canto a qualquer outro, porque ele eleva os corações à devoção e à piedade’ (Bento XIV).

Notas

  1. Quantum flevi in hymnis et canticis tuis, suave sonantis ecclesiæ tuæ vocibus commotus acriter! Voces illæ influebant auribus meis, et eliquabatur veritas in cor meum, et exæstuabat inde affectus pietatis, et currebant lacrimæ, et bene mihi erat cum eis.
  2. Tristitiam noxiam jucundat, tumidos furores attenuat, cruentam sævitiam efficit blandam, excitat ignaviam soporantemque languorem, vigilantibus reddit saluberrimam quietem, vitiatam turpi amore ad honestum studium revocat castitatem, sanat mentis tædium bonis cogitationibus semper adversum, perniciosa odia convertit ad auxiliatricem gratiam; et quod beatum genus curationis est, per dulcissimas voluptates expellit animi passiones.
  3. Diz-se ainda que o “si” também vem do hino, por causa do verso final: Sancte Ioannes (N.T.).

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