Lendo e ouvindo a Paixão de Cristo na Quaresma passada, fiquei ainda mais impressionado do que em anos anteriores com a objetividade e minúcia históricas com que os quatro evangelistas relatam esses eventos. Competentes historiadores entendem, como bons romancistas, a importância de detalhes minuciosos, mas reveladores, para uma história ser eficaz e credível. Mateus, Marcos, Lucas e João, embora amadores, compartilharam essa qualidade literária. Alguns dos fatos relatados por cada um deles concordam com o que dizem todos os quatro, enquanto outros aparecem em apenas alguns relatos, e outros ainda são mencionados somente uma vez. No entanto, as quatro narrativas da Paixão têm em comum a proximidade, a objetividade sólida e a coerência que são características importantes da escrita histórica séria. A estas se deve acrescentar uma apreensão aguçada das personalidades envolvidas no drama — seus pensamentos, falas, respostas, gestos e aparências — e do próprio drama.

“A juventude de Jesus”, por James Tissot.

Ainda assim, a busca pelo chamado “Jesus histórico” persiste, cuja historicidade foi confirmada para satisfazer praticamente aos céticos. O trabalho é de uma qualidade fantástica: é como se, após a viagem de Colombo, houvesse aventureiros que duvidavam de que o Novo Mundo tivesse sido descoberto e estivessem construindo barcos na Espanha, em Portugal e em Gênova para navegar ao Oeste, a fim de saber “se era verdade”. Ou, para usar outra metáfora, é como se um homem míope perdesse os dias tentando ler um livro longo e difícil, tendo esquecido no alto da testa o seu caro par de óculos.

Aqueles que acreditam que deve haver um “Jesus histórico” a ser descoberto, separado e distinto do Jesus dos Evangelhos, negam a sua a-historicidade e aceitam que o personagem histórico chamado Jesus Cristo existiu. Além disso, assumem que as técnicas de investigação disponíveis aos estudiosos modernos oferecem uma boa chance de aprender quem e o que Ele “realmente” era — desde que os pesquisadores envolvidos na busca sejam pesquisadores “de mente aberta” e imparciais. Eles ignoram o fato de haver apenas três tipos de estudantes de história das religiões — ou de qualquer outro tipo de história, e provavelmente de qualquer que seja o assunto. São os crentes, os descrentes e os neutralistas (a quem chamamos céticos ou agnósticos).

É razoável pensar que, em uma questão tão essencial como a religião, a neutralidade humana seja uma impossibilidade psicológica, assim como é igualmente razoável acreditar que nenhum ser humano seja realmente assexual. De fato, a experiência e a evidência dão abundantes provas de que nenhum escritor, nenhum pensador — de fato, nenhuma pessoa viva — está totalmente livre de preconceitos sobre qualquer assunto importante, ou mesmo sobre os que não têm importância alguma. É um erro supor, como os “caçadores” do Jesus histórico, que os únicos incapazes de honestidade intelectual são os que crêem que Jesus foi quem Ele disse ser, e o adoram como tal; e que, como consequência, o que quer que eles tenham dito e escrito por dois mil anos a respeito de Cristo é suspeito desde o início. A regra geral é que, nesse assunto, nunca se deve dar aos cristãos o benefício da dúvida; em suma, eles devem ser considerados mentirosos até que se prove o contrário.

Os estudiosos e outros que trabalham na vinha dos estudos sobre o “Jesus histórico” só ficarão satisfeitos, de uma forma ou de outra, quando acharem ter descoberto uma prova histórica incontestável de que Cristo não foi quem Ele disse que era — que Ele não era o Filho divino do Deus vivo. Como eles estão envolvidos na prática de pesquisa e dedução históricas, é de supor que estejam procurando o tipo de evidência a que os historiadores profissionais recorrem para investigar e interpretar: registros falados e escritos de testemunhas oculares; narrativas em segunda mão e boatos contemporâneos confiáveis; documentos, incluindo relatórios oficiais, memorandos e cartas; relatos históricos de pessoas da época; resultados de pesquisas de arquivo feitas por historiadores de períodos históricos subsequentes; artefatos exumados por investigações arqueológicas e assim por diante.

No caso de Jesus de Nazaré, começamos com quatro relatos separados, escritos por quatro homens que acreditamos terem sido seus discípulos, tendo-o acompanhado por três anos e testemunhado sua prisão, julgamento e execução, e tendo-o visto ressuscitado dos mortos e subir aos céus. Esses relatos, como digo, são minuciosamente detalhados, ainda que não documentados, e mais amplificam que contradizem um ao outro. Trata-se, é claro, da obra de homens alfabetizados e de inteligência elevada, graças a um talento nativo até então oculto ou à inspiração divina. Salvo por uma coisa — o elemento sobrenatural, inseparável do início da história até o seu fim —, os Evangelhos seriam aceitos como histórias, boas ou ruins, logo depois que começaram a circular entre o público. Fossem os Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João os Evangelhos segundo Thomas Jefferson [1], poucas pessoas ao longo dos últimos dois milênios teriam tentado desacreditá-los, ou tido razão para crer neles. 

Os materialistas, para quem a história é uma série de eventos naturais que se desenrolam no mundo do espaço e do tempo, naturalmente resistem à intromissão do mundo sobrenatural. Se estivessem abertos a isso, reconheceriam a impossibilidade de procurar explicações naturais para eventos sobrenaturais. É sobretudo esse avanço sobrenatural que ofende a mente não-cristã. Maomé alegou ser mensageiro de Deus e seu profeta, mas não alegou ser, ele mesmo, divino. Como consequência, nenhuma pesquisa foi feita por escritores kafiri (infiéis) em busca do “Maomé histórico”, embora nenhum secularista acredite que o anjo Gabriel tenha aparecido a Maomé em sua caverna e ordenado: “Recite!” Para eles, o islamismo não passa de outro sistema bem elaborado de crença supersticiosa, apreciada por ignorantes e ingênuos; mas, passadas apenas duas décadas desde os ataques de 11 de setembro, não se trataria de uma religião perigosa e ameaçadora (ao contrário do cristianismo, seu sinistro rival) — e quem quer que diga o contrário é prontamente repreendido.

Apesar de toda a aparente seriedade e esforço intelectual que os membros dos estudos sobre o “Jesus histórico” têm devotado ao próprio trabalho, seus praticantes, de mentalidades diversas, até agora não concordam em nada, ou pelo menos em muito pouco. Alguém poderia argumentar que essa falta de sucesso, paradoxalmente, dá suporte ao ceticismo deles, já que, se o Cristo dos Evangelhos fosse o verdadeiro, Ele deveria ter sido muito mais amplamente conhecido e aceito no Mediterrâneo Oriental do que durante o tempo de sua vida. Todavia, sua relativa obscuridade é inteiramente plausível quando se levam em conta o afastamento geográfico relativo e o isolamento intelectual e cultural da antiga Palestina, tão separada da civilização greco-romana da época, não obstante a ocupação romana.

“Jesus acalma a tempestade”, de James Tissot.

De fato, fora do território da Palestina, quem teria tomado conhecimento ou manifestado interesse pelo líder de uma insignificante seita judaica, antes de Ele mesmo ser crucificado, ressuscitar e enfim subir aos céus, deixando seus Apóstolos e demais discípulos espalharem sua doutrina e a história de sua vida entre os judeus e os gentios, e converterem, dentro de poucos anos, alguns daqueles e milhares (ou dezenas de milhares) destes, à nova religião cristã — algo que parece ter acontecido numa velocidade quase sobrenatural? O modus operandi de Sherlock Holmes era que, uma vez esgotada a gama de explicações possíveis, a resposta impossível deveria ser a correta. O mesmo se dá com Jesus Cristo: se Ele não era quem alegava ser, então Ele jamais existiu.

Os cientistas sempre foram preparados para aceitar de modo condicional conclusões demonstradas apenas parcialmente, enquanto se aguardam futuros desenvolvimentos. Mas o público leigo está inclinado a receber essas descobertas acriticamente, já que elas foram “cientificamente” alcançadas por “especialistas”, e é neles que está a fé do materialista moderno — embora muitas das teorias propostas por físicos do séc. XXI alarguem as fronteiras da credulidade humana muito mais do que os ensinamentos de Cristo e da Igreja Católica. (Vale perguntar em que ponto — se é que ele existe — os limites do mundo natural se fundem com os do sobrenatural.)

Além disso, os cientistas, quando desenvolvem uma teoria aparentemente impossível, que  no entanto consideram instintivamente verdadeira, estão dispostos a prosseguir no pressuposto de que é verdade, até que se demonstre falsa. As histórias aparecem o tempo todo nas notícias para relatar novas observações de fenômenos naturais, como buracos negros engolindo estrelas anãs negras, que parecem confirmar as teorias formuladas por Einstein há um século. Os pesquisadores do “Jesus histórico” trabalham inversamente: eles rejeitam a melhor evidência histórica para a verdade de uma conclusão enquanto tentam provar que a conclusão é falsa! Eles estão nesse jogo desde meados do séc. XVII sem chegar a lugar nenhum, e ainda não desistiram.

Notas

  1. O autor se refere aqui à obra The Life and Morals of Jesus of Nazareth (“Vida e Costumes de Jesus de Nazaré”), de Thomas Jefferson, uma seleção naturalista de versículos dos Evangelhos, dispostos em ordem cronológica, mas sem as passagens milagrosas e sobrenaturais (Nota da Equipe CNP).

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