A participação de mulheres na Igreja é maior que a de homens em quase todas as denominações cristãs. Essa diferença, entretanto, não se explica pela tese de que as mulheres seriam mais religiosas, já que o cristianismo é a única religião no mundo em que a presença masculina é menor que a do sexo oposto.

Qual seria o motivo por trás disso?

Uma das explicações seria a forma como a teologia e a ética cristã se apresentam, ou seja, como algo genuinamente feminino. Neste artigo, vamos examinar as bases dessa ideia e mostrar como o cristianismo pode, na verdade, ser entendido como algo masculino.

O código da masculinidade e a feminilidade do cristianismo

As qualidades e os traços “masculinos” são os mesmos há milhares de anos e se repetem em praticamente todas as culturas do mundo. Na antiguidade, o menino precisava passar por testes de habilidade e autocontrole para receber o título de “homem”; ele tinha de desenvolver autonomia, resiliência e fortaleza, enfrentando riscos, lutas e competições contra os demais garotos. Força física e outras virtudes como a coragem eram muito valorizadas. Afinal de contas, para ser considerado um “homem de verdade”, um rapaz deveria possuir os assim chamados “três pês da masculinidade”: protetor, provedor e procriador.

“Gladiador versus Leão”, de Miguel Coimbra.

Esse código apresentava a masculinidade como uma virtude pública. Assim, a iniciação do garoto era responsabilidade da comunidade, que o avaliava pública e reiteradamente. A primeira preocupação de um homem deveria ser a sua honra, pela qual lutaria a todo momento.

A identidade de um homem provinha de sua participação na tribo, e seu primeiro grupo social era a gangue: um grupo de honra pequeno e fechado, do qual nem todos podiam participar e cuja dinâmica, a do “nós contra eles”, prevalecia. A lealdade de um homem era fundamental; a vontade de sacrificar-se, sangrar e mesmo morrer por um povo sempre foi um ponto básico e indiscutível para o antigo código de masculinidade, embora essa lealdade se restringisse aos camaradas e parentes.

Por isso, não é preciso muito esforço para perceber por que o cristianismo é visto como a antítese da masculinidade tradicional e Jesus, como o modelo das “virtudes suaves”. Tradicionalmente, virtudes como bondade, compaixão, perdão, carinho, castidade e humildade sempre estiveram mais associadas às mulheres do que aos homens.

No cristianismo, a violência e o triunfo sobre o inimigo são substituídos pelo amor ao próximo e pelo perdão; a glória das competições e o respeito cedem lugar à temperança e à humildade; a alma torna-se mais importante do que o corpo, e as honrarias não fazem sentido no Reino de Deus, uma vez que o sucesso mundano não torna ninguém melhor do que ninguém. Além disso, nem só os fortes serão salvos, pois Jesus prometeu que os mansos e pobres seriam exaltados, e os ricos e poderosos, humilhados.

A porta do cristianismo está, pois, aberta a todos; trata-se de uma religião universal, não exclusivista. Contrariando o código antigo da masculinidade, os cristãos devem superar as tendências tribalistas, a fim de abraçar todos os irmãos. E, para completar o quadro, os estranhos devem ser amados tanto quanto os familiares.

É possível argumentar que as regras acima constituem os componentes da excelência humana, mas seria difícil dizer que estão de acordo com a excelência masculina. Não se pode esconder que tais princípios são claramente opostos ao código antigo da masculinidade. Visto dessa maneira, o cristianismo pode até fazer de você um bom homem, mas não será bom o suficiente para fazer de você um homem.

O cristianismo como moral de escravos

Alguns filósofos consideraram o cristianismo uma coisa para fracos, uma repressão religiosa, inconveniente para qualquer homem que deseje dizer “sim” à vida. É o caso de Friedrich Nietzsche. “A fé cristã”, dizia, “é desde o começo um sacrifício: um sacrifício de toda liberdade, todo orgulho, toda autoconfiança e, ao mesmo tempo, escravização, ridicularização de si mesmo e automutilação.”

Friedrich Nietzsche.

Embora nutrisse respeito por Cristo como um indivíduo que criou seus próprios valores, Nietzsche deplorava o fato de Jesus ter negado a realidade por um reino no Céu e ido para a morte sem lutar. Para o filósofo alemão, o cristianismo seria uma fé inventada por escravos invejosos do poder de seus amos.

Nietzsche queria ressuscitar os valores homéricos da Grécia antiga e reviver uma aristocracia em que isso pudesse dar certo. Ele pensava que a humanidade seria hierárquica por natureza, já que algumas pessoas são evidentemente melhores que outras. No topo dessa hierarquia estariam os senhores, os nobres, egoístas descarados que afirmaram sua vontade no mundo e fizeram o que queriam por meio da força, da coragem e da excelência.

Na base, por sua vez, estariam os escravos, seres tímidos e fracos, que não podem exercer sua vontade e invejam aqueles que podem. A partir desse ressentimento da “moralidade dos senhores” é que surgiria a “moralidade dos escravos”, ou seja, uma tentativa de transformar o código dos poderosos segundo o interesse dos subordinados, afirmando que os valores dos senhores não são apenas ofensivos a Deus, mas que ser fraco, humilde e submisso é mais justo e excelente.

A masculinidade do cristianismo

Nos anos seguintes, a teologia não contestou suficientemente a ideia de um cristianismo feminino e fraco, e essa noção acabou prevalecendo na sociedade. Os defensores da masculinidade cristã, por outro lado, não negam que muitos dos princípios do Evangelho sejam “suaves”, mas argumentam que tais princípios estão unidos a um número igual, senão maior, de virtudes “duras” e “exigências extenuantes”, que se alinham ao código da masculinidade em muitos aspectos.

“Cristo expulsando os cambistas do Templo”, de Salvator Rosa.

Para o estudioso católico Leon J. Podles, por exemplo, o caminho de Cristo é de natureza masculina. Em defesa de sua tese, Podles ressalta que, enquanto o lado amoroso, misericordioso, cuidadoso e gentil de Jesus representa uma parte de seu caráter, há ainda outro lado muitas vezes ignorado — um “leão”, em contraste com a visão mais conhecida do “cordeiro” —, marcado por traços como justiça, ousadia, poder e autodomínio. Este é o Jesus que se sacrifica na carpintaria, que vai para o deserto e que maneja o chicote:

  • O homem que disse para “não julgar”, mas condenou severamente os seus críticos.
  • O curador compassivo que defendeu as crianças, mas limpou o templo com uma ira cheia de justiça.
  • O gentil sábio que falou de lírios e pardais, mas repreendeu seu amigo como Satanás e declarou que não “veio trazer a paz, senão a espada”
  • O professor que admoestou seus seguidores a “amar o próximo como a si mesmo”, mas chamou os gentios de cães e, a princípio, reservou o ensinamento de sua mensagem para o próprio povo; e, embora esses “outros” adotassem completamente a sua mensagem, o Evangelho cristão dificilmente se desvincularia da ética do “nós contra eles”; Jesus não teve nenhum problema em traçar uma linha divisória entre ovelhas e cabritosaqueles que faziam parte de sua tribo e aqueles que não tinham lugar nela. Todos seriam bem-vindos, desde que vivessem um árduo código de ética.

Notem ainda que Jesus foi para a cruz como um mártir, cumprindo o código de masculinidade de dar a vida pelo irmão, e suportou como ninguém a morte e sua tortura prévia. E apesar de Jesus não exigir de seus seguidores o combate físico, muitos viram o Evangelho como um chamado de guerra contra outro tipo de inimigo: uma guerra travada no plano espiritual.

Santo Inácio de Loyola, um cavaleiro espanhol que se converteu após ter-se ferido em batalha, fundou a Companhia de Jesus para “quem quiser servir como soldado de Deus”, e organizou os jesuítas em torno de uma ética militar. Inácio viu no chamado ao discipulado algo muito parecido com a convocação de um rei que está montando um exército de batalha e procura quem esteja disposto a lutar com coragem e morrer em serviço pelo sucesso da missão.

Segundo Podles, abraçar “a vida interior como um combate espiritual” e submeter-se à disciplina do Evangelho qual um soldado se submete à disciplina militar é, para o discípulo de Jesus, uma glória maior que a do mundo, pois, seguindo o caminho do guerreiro ascético, ele pode se tornar não apenas um soldado de Cristo, mas um herói como seu Rei.

O caminho cristão como a “jornada do herói”

A masculinidade do cristianismo pode ser defendida mostrando como a religião e a vida de Jesus se harmonizam com a chamada “jornada do herói. Trata-se de um padrão narrativo que está na base de muitas histórias, rituais e mitos do mundo, desde os tempos antigos até o presente. A ordem e as etapas da jornada variam de um autor para outro, mas os três grandes estágios são a separação, a iniciação e o retorno, e estes são alguns dos conceitos básicos contidos nas etapas:

  • O herói recebe um chamado à aventura
  • Deixa sua vida comum
  • Recebe uma ajuda sobrenatural
  • Cruza o limiar que o separa do mundo que conheceu
  • Reúne aliados para sua missão
  • Encara testes e desafios
  • Sofre uma provação
  • Sofre uma morte física ou espiritual
  • Vive uma transformação ou apoteose (tornando-se divino)
  • Obtém uma recompensa ou elixir mágico
  • Volta para casa
  • Partilha a recompensa e a sabedoria que ganhou com os outros
  • Torna-se mestre dos dois mundos pelo qual passou
  • Obtém maior liberdade

A jornada do herói manifesta-se nos ritos de passagem com os quais as tribos iniciavam um jovem na masculinidade: um menino se separaria do confortável mundo da mãe e, apoiado por mentores masculinos, passaria por uma prova dolorosa de habilidade ou resistência. Essas provas serviam para fortalecer a masculinidade e garantir uma posição de respeito e responsabilidade dentro da tribo. Ao término da jornada, o rapaz voltaria mais livre e maduro para sua família.

A história de Jesus encaixa-se no padrão da jornada do herói. Um Filho desce do Céu e, com a ajuda sobrenatural de seu Pai celestial, torna-se um mortal na terra. Ele reúne aliados para sua missão, enfrenta exames e provações, sofre uma provação sacrificial, morre e ressuscita, retorna à terra para anunciar que o poder do pecado e da morte foi derrotado, e depois volta ao Céu.

A jornada dos seguidores de Jesus pode ser compreendida também à luz deste padrão. Um homem recebe um chamado para a aventura ao tornar-se “soldado de Cristo”; ele deixa sua vida comum para o caminho do discipulado e se aventura em um mundo desconhecido, descobrindo outra realidade e plano de existência que ele anteriormente não conhecia. Em sua jornada, os discípulos são auxiliados pelo Espírito Santo, uma força poderosa que Podles compara ao Thumos grego e que o teólogo protestante Rudolf Otto descreve como “vitalidade, paixão, temperamento emocional, vontade, força, movimento, excitação, atividade, ímpeto”.

O discípulo enfrenta exames e desafios, sofre e, imitando seu Salvador, morre para si mesmo, a fim de viver no Espírito e por Ele ser transformado. Após essa transformação, o “novo homem” volta para casa, oferecendo o “elixir mágico” que agora possui aos conhecidos ao longo do caminho, tornando-se um salvador para outros. Ao aprender a equilibrar corpo e espírito, torna-se mestre de dois mundos e ganha maiores liberdades: a libertação da morte e da escravidão de suas paixões e desejos físicos.

Podles recorda que, “para todos os seres humanos, a vida é uma luta, mas os homens sabem que é especialmente seu dever estar no meio dessa luta, enfrentar dificuldades da vida e esforçar-se para saber quais são os mistérios da vida e da morte”. Em sua opinião, o cristianismo oferece exatamente o tipo de luta épica e heróica que atrai a alma masculina.

Conclusão: o cristianismo é uma religião masculina ou feminina?

A resposta a essa pergunta depende. A maioria dos cristãos diria que a criação de um contraste entre o masculino e o feminino cria uma falsa dicotomia, pois Cristo reúne qualidades duras e suaves — a harmonia perfeita de tudo o que constitui a excelência humana —, o que faz dele um Deus digno de adoração.

Ícone de Cristo presente na Igreja de Santa Catarina, no Monte Sinai.

A verdadeira questão, na verdade, não é saber se o Evangelho é mais masculino ou feminino, mas saber por que ele tem sido apresentado mais sob a ótica da feminilidade do que o contrário. É verdade indiscutível que nas congregações, nas obras de arte, na mídia, nos debates políticos e na cultura popular como um todo, prevalece a imagem do judeu “mais suave”, “mais resignado” e “mais abatido”. Não há muita conversa, dentro ou fora da Igreja, sobre seus julgamentos, sua ira, ou natureza dura.

Não obstante, a história dos grandes santos da Igreja — inclusive das santas mulheres — mostra que o cristianismo, como dizia Santa Teresa d’Ávila, não é “coisa de mulherzinhas”, mas de pessoas viris e heróicas, que se dispõem ao combate contra as forças do pecado.

Jesus é o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo, mas defendeu o Evangelho como o Leão da tribo de Judá. E, para os rapazes que desejam ser homens de verdade, não existe maior exemplo de masculinidade que o de Cristo e de seus soldados, pois "o Reino dos céus é arrebatado à força e são os violentos que o conquistam" (Mt 11, 12).

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