A história da espiritualidade cristã é como uma montanha-russa, com altos e baixos contínuos, em que a renovação é seguida de declínio, à medida que o espírito humano inevitavelmente vacila e cai, apesar dos melhores esforços. Quando os monges que tinham atingido a paternidade espiritual lideravam a renovação, tudo corria bem, mas, infelizmente, quando o seu fervor se desvanecia, ou quando os monges espiritualmente despreparados para a tarefa se lançavam no mundo, era este que os convertia aos seus costumes e aos seus próprios padrões de “boa” vida. Portanto, no século VIII, a Europa estava inundada de monges errantes, com muitos deles empenhados em desfazer, com seu comportamento, tudo o que fizeram seus ilustres antepassados.
A situação era tão escandalosa que, quando Carlos Magno foi entronizado em 800 d.C., determinou o regresso de todos os monges aos seus mosteiros e decretou que, a partir de então, todos os mosteiros do seu império deveriam aceitar e observar a regra de São Bento.
O voto de permanência feito por todos os monges significava que os mosteiros nunca mais poderiam fornecer à cristandade pregadores itinerantes como no passado. Os monges cluniacenses, cistercienses e cartuxos contribuíram para reinterpretar e reformar a vida monástica nos séculos seguintes, mas pouco fizeram pelos leigos, cada vez mais carentes de espiritualidade evangélica. Os cônegos regulares, que inicialmente se desenvolveram a partir da vida monástica, tiveram pouca influência, pois a forma diluída de espiritualidade monástica da qual dependiam dificilmente bastava para impedir que eles mesmos padecessem de fome espiritual, e muito menos para alimentar os famintos do mundo. Com certeza não era suficiente para suscitar, com alguma consistência, a profunda oração contemplativa que anima o apóstolo eficaz.
Para obter uma renovação genuína e de grande alcance, a fim de que a Igreja reconduzisse o seu povo à espiritualidade que lhe fora dada por Deus, seriam necessárias duas coisas.
Em primeiro lugar, Cristo deveria ser recolocado no centro da espiritualidade cristã. Isto deveria ser feito de tal forma que as pessoas pudessem voltar a conhecê-lo e amá-lo em sua natureza humana e, assim, ser levadas à sua natureza divina, para contemplar o Pai.
Em segundo lugar, essa nova apresentação da antiga espiritualidade deveria ser levada ao mundo secular, às pessoas comuns, por um novo tipo de religioso que, em primeiro lugar, praticasse o que deveria pregar aos outros.
Tudo isso estava prestes a começar no início do século XII.
Na história da humanidade, há momentos em que os tambores devem rufar, os címbalos tocar, as trombetas soar e os holofotes iluminar um acontecimento ou uma pessoa particularmente importante, ou as duas coisas. Foi exatamente assim no ano de 1112.
O local onde esse evento estava prestes a acontecer era um mosteiro recém-fundado em Citeaux, na França. O abade inglês Stephen Harding estava prestes a desistir do novo empreendimento para regressar à tradição beneditina primitiva em todo o seu rigor e simplicidade, com ênfase no trabalho manual diário no campo, até que bateram à porta de mosteiro. Quando ele abriu a porta, lá estava São Bernardo, um jovem nobre de 23 anos de idade, acompanhado de trinta e dois amigos. Tal como os primeiros apóstolos, estavam embriagados de fervor espiritual. Mas ainda não estavam prontos para sair para o mundo e enchê-lo com o que os preenchia. Precisavam entrar na solidão para que o seu ardor carismático fosse temperado pela purificação mística.
Eles haviam sido inflamados pela mais recente tendência religiosa que estava consumindo a Europa medieval. Em 1095, o Papa Urbano II inaugurou a primeira Cruzada. Menos de dez anos depois, os peregrinos que tinham ido à Terra Santa regressavam em massa, inspirados e animados com o que tinham presenciado. Viram o local onde Jesus nasceu, cresceu, pregou, fez milagres, sofreu e morreu antes de ressuscitar dos mortos e subir ao Céu para enviar o Espírito Santo. Quando Jesus, em sua natureza humana amorosa e amável, voltou a estar no centro do cristianismo, os fiéis puderam amá-lo, e entrar nele e em seu Corpo místico.
No início dessa nova era, São Bernardo foi o primeiro a seguir o seu coração no caminho místico que lhe permitiria desenvolver uma nova teologia centrada em Cristo e uma espiritualidade mística, que seria a pedra angular da espiritualidade cristã nos séculos vindouros. Apenas três anos depois de aderir à nova reforma cisterciense, foi enviado para fundar outro mosteiro em Claraval, em 1115, onde foi abade até o seu falecimento, em 1153.
Em seu monumental estudo sobre a espiritualidade cristã, Pierre Pourrat dedica quase cem páginas a São Bernardo, mostrando a sua “ênfase sobretudo na devoção aos mistérios da vida de Nosso Senhor — a infância, os episódios da Paixão e da Crucificação — e também a sua devoção à Santíssima Virgem”. Para Pourrat, foi sobretudo São Bernardo que moldou a teologia da Idade Média tardia e também dos tempos modernos.
Sua teologia mística foi particularmente inovadora.
Na Igreja primitiva, sabia-se que as virgens eram consideradas as noivas de Cristo. Muitos dos primeiros Padres comentaram o Cântico dos Cânticos a fim de desenvolver a ideia de que a Igreja é a esposa de Cristo. Mesmo os indivíduos em sua busca espiritual pessoal eram por vezes referidos como noivas de Cristo.
Mas São Bernardo foi mais longe. Em seus famosos comentários a esse poema profundamente comovente e romântico, ele dá um passo a mais e, em seguida, enriquece o tema com uma das linguagens mais líricas usadas até hoje para descrever a relação de um místico com Cristo. Com efeito, é no próprio ato de contemplação mística que o místico se torna, de uma forma muito real e concreta, uma noiva de Cristo. Além disso, é no desabrochar dessa íntima relação nupcial que a pessoa chega à consumação da vida espiritual, o chamado matrimônio espiritual.
Esse mesmo tema será retomado pelo grande místico escocês Ricardo de São Vítor (1110-1173), que se tornou o influente prior dos Cônegos Regulares de Santo Agostinho na Abadia de São Vítor, em Paris. Desde então, a ideia de que o matrimônio místico ou espiritual representa o cume da via mística tornou-se amplamente aceita. Ela está presente nos místicos da Renânia, depois em João Ruysbroeck e, naturalmente, em São João da Cruz e Santa Teresa d’Ávila. Através destes dois últimos, a mística nupcial passou a ser o modo corrente de designar o ápice do itinerário místico.
Embora os escritos teológicos e místicos de São Bernardo tenham produzido um efeito imediato em seus contemporâneos monásticos, nos teólogos, nos bispos de espírito aberto e no seu clero, era outra pessoa que estava destinada a levar essa nova espiritualidade centrada em Cristo às pessoas comuns. Para São Bernardo e os novos membros da Ordem de Cister, sua espiritualidade era mais do que adequada para conduzi-los aos cumes da via mística, mas seu voto de estabilidade ainda os impedia de levar sua recém-descoberta espiritualidade cristocêntrica ao mundo que tanto necessitava dela. Nos anos que se seguiram à morte de Bernardo, um número cada vez maior de pequenos grupos de homens fervorosos, alguns dos quais tinham peregrinado à Terra Santa, dedicaram-se a levar uma vida mais centrada no Evangelho e a pregar aos outros que fizessem o mesmo.
Não havia dúvida de que a renovação que tentavam promover era necessária, pois o longo e depressivo esvaziamento espiritual da Idade das Trevas havia afetado a fibra moral de uma Igreja carente da vida mística interior que estava prestes a reanimá-la. O texto do IV Concílio de Latrão (1215), que se avizinhava, pintava um quadro sombrio dos males decorrentes das irregularidades clericais que era chamado a remediar. No entanto, já fora constatado que os numerosos grupos de homens com espírito evangélico que haviam se proposto a renovar a Igreja não eram adequados para a tarefa. Com toda a boa vontade do mundo, eles haviam se transformado em “evangelizadores ranzinzas”, carregados de raiva e de ódio contra o clero (o qual talvez merecesse suas invectivas); mas deste modo eles jamais o converteriam, pois só os humildes podem falar aos dissolutos e aos depravados com alguma esperança de serem ouvidos.
O homem que faria o que eles não conseguiram fazer nasceu trinta anos após a morte de São Bernardo. Ele não só se alimentou do fervor de outros que tinham visitado os lugares santos, como ele próprio foi até eles. Seu nome era São Francisco de Assis.
Ao contrário de São Bernardo, Francisco foi chamado a levar a nova espiritualidade a pessoas comuns como ele, fundando uma nova ordem religiosa que lhe permitiu fazê-lo em grande escala. Com os franciscanos, começaram a florescer outras ordens mendicantes, todas elas tentando, à sua maneira, responder às necessidades de uma cristandade que caía novamente no paganismo. Os franciscanos nasceram de um movimento laico; os carmelitas, da vida eremítica; e os dominicanos devem muito à vida monástica que adaptaram em benefício dos que definhavam espiritualmente no mundo.
Foi no IV Concílio de Latrão (1215) que essas novas ordens religiosas receberam o incentivo para realizar a reforma da Igreja, há tanto tempo esperada, com a nova espiritualidade desenvolvida por São Bernardo. Elas estavam repletas de homens e mulheres santos que ainda hoje são conhecidos: São Francisco de Assis, Santo Antônio de Lisboa, São Boaventura, São Domingos, Santo Alberto Magno, Santo Tomás de Aquino, Santa Clara, Santa Margarida de Cortona, Santa Ângela de Foligno e tantos outros canonizados por sua santidade manifesta e heroica.
Ao verem o que parecia ser uma liberdade que lhes era negada pelo voto de permanência, alguns membros das ordens monásticas começaram a criticar essas novas ordens, sugerindo que seu lugar era no mosteiro, e não andando pelo mundo. Foi Santo Tomás de Aquino quem lhes respondeu com palavras que descrevem muito bem a essência da espiritualidade cristã primitiva: “O nosso apostolado”, insistia ele, “é contemplar e depois partilhar com os outros os frutos da contemplação” (contemplare et contemplata aliis tradere).
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De certa forma S. Bernardo de Claraval influênciou D. Afonso Henriques no surgimento da idéia de um Portugal... Cristão com a preciosa ajuda e acção dos Templários.
Como é bom conhecer nossa igreja e ver que Deus a mantém viva e que dos céus Ele olha para nós e envia filhos que se oferecem para combater o que não está de acordo com o projeto Dele.
Amém!