São Guido, apelidado de Pobrezinho, nasceu e foi educado numa pequena aldeia da Bélgica, filho de pais pobres, mas muito piedosos. Como não podiam mandar o filho para a escola, nem deixá-lo aprender uma profissão, tiveram o maior cuidado em educá-lo piedosamente, incutindo-lhe amor a Deus, temor do juízo divino e horror ao pecado. Guido, obediente aos pais, seguia-lhes as instruções e, temendo e amando o Todo-Poderoso, evitava o mais leve pecado e afastava-se de toda tentação do mal. 

Era tão dedicado às orações que muitas vezes entrava em segredo na igreja, onde sua conduta era tal que o chamavam de anjo da aldeia. Estava satisfeito com a pobreza, e jamais murmurou contra qualquer privação sofrida. Tinha um coração muito compassivo para com os pobres, a quem ajudava até com o que ele mesmo mendigava. 

Um dia, teve de ir a uma aldeia chamada Laken, a cerca de seis quilômetros de Bruxelas. Lá, antes de tratar de seus assuntos, entrou numa igreja e rezou longa e fervorosamente diante de uma imagem da Santíssima Virgem. Ao observá-lo, o vigário do lugar ficou edificado com sua devoção e perguntou-lhe de onde vinha, quem era, como se mantinha e outras coisas semelhantes. 

São Guido de Anderlecht, retratado por Gaspar de Crayer.

A maneira como o rapaz respondeu convenceu o vigário de que ele possuía muito mais inteligência e piedade do que se poderia imaginar com base em sua aparência juvenil: perguntou-lhe, então, se queria ficar e servir na igreja. Guido, muito contente, disse que há muito tempo era esse o seu desejo. Tinha então catorze anos e, quando foi nomeado ajudante do sacristão, era tão incansável em seu trabalho, tão reverente para com o clero, tão modesto e devoto, que se tornou querido por todos. 

Sua maior preocupação era manter limpa a igreja, que ele tratava de fato como a casa do Senhor, de quem era um devoto tão fervoroso. O tempo que lhe sobrava do trabalho, dedicava-o à oração, chegando mesmo a passar várias horas na igreja, diante do altar, todas as noites. Quando ficava cansado, deitava-se no chão da igreja e fechava os olhos durante algum tempo. Muitas vezes era visto em oração, com os olhos cheios de lágrimas, diante de uma imagem da Virgem Santíssima, pedindo-lhe em voz alta que obtivesse para ele o perdão dos pecados. Sempre levara uma vida irrepreensível e chorava mais pela menor falta de que se tornara culpado do que os outros por seus vícios e crimes. 

A remuneração que recebia era muito pequena, mas dava a maior parte dela aos pobres. Um comerciante de Bruxelas, observando a grande caridade do santo para com os pobres, persuadiu-o a ir com ele para lá, onde o empregaria em seu negócio, o que lhe permitiria ganhar mais dinheiro e, consequentemente, dar mais aos pobres. Cativado pela promessa, Guido partiu em segredo com o mercador e dedicou-se ao comércio. No entanto, foi vítima de vários infortúnios, o último dos quais aconteceu da seguinte maneira. Um navio fortemente carregado, no qual ele se encontrava, corria grande perigo. Enquanto cada um tentava se salvar, Guido agarrou uma vela, mas esta partiu-se em suas mãos, deixando uma lasca tão profunda em seu braço que não foi possível extraí-la. Porém, ele chegou à praia em segurança. 

Este acidente abriu-lhe os olhos para a falta que havia cometido ao deixar o trabalho na igreja. Arrependido de seu erro, regressou a Laken, pediu perdão ao vigário e retomou sua antiga atividade. Como a ferida no braço lhe causava uma dor intensa e o impedia de trabalhar, procurou e encontrou ajuda na divina Mãe da Misericórdia. Enquanto rezava perante sua imagem, a ferida desapareceu e o braço foi curado imediatamente. A partir daquele momento, redobrou o zelo no cumprimento de seus deveres e na prática da abnegação.

Algum tempo depois, pediu ao vigário autorização para ir a Roma e, de lá, para a Terra Santa. Passou sete anos visitando os lugares santos, vivendo de esmolas durante esse período. Quando voltou a Roma, encontrou Wondulf, deão da igreja de Anderlecht, que, com alguns cônegos, pretendia visitar a Terra Santa. Como Guido conhecia bem os lugares para onde se dirigiam, o deão pediu ao santo que os acompanhasse. Este, apesar da saúde debilitada, não recusou o gesto de bondade e, pela segunda vez, enfrentou as fadigas da viagem.

Pouco depois de visitarem os lugares santos, o deão e seus companheiros foram acometidos de uma febre muito grave, da qual nenhum deles se recuperou. Guido cuidou deles até a morte, com muita dedicação, e depois voltou para a Bélgica e levou a Anderlecht a notícia da morte do deão e de seus companheiros. Pouco tempo depois, debilitado por suas longas viagens, o próprio santo adoeceu e, como Deus lhe tinha revelado a hora de sua morte, preparou-se para ela com muita devoção. 

“Peregrinação de São Guido a Anderlecht”, por Charles de Groux.

Depois de receber os santos sacramentos, encontrava-se em oração durante a noite, quando, de repente, o quarto encheu-se de um brilho celestial e, ao mesmo tempo, foi possível ouvir uma voz que dizia: “Eia, servo bom e fiel, entra na alegria do teu Senhor” (cf. Mt 25, 21). No mesmo instante, o santo homem deu seu último suspiro, no ano 1012 de Nosso Senhor.   

Seu santo corpo foi sepultado com grandes honras, e a glória da qual ele começou a participar no Céu foi revelada ao mundo pelos milagres operados por sua intercessão. Alguns anos mais tarde, foi construída uma bela igreja em sua honra, e suas relíquias foram transferidas para ela com grande solenidade.  

Considerações práticas

I. São Guido era chamado de anjo da aldeia por causa da reverência com que se portava na igreja. 

Fachada da Igreja Colegiada de São Pedro e São Guido, em Anderlecht.

Será que você pode ser chamado de anjo pelo mesmo motivo? Se você é um daqueles que ficam olhando ao redor, conversando e rindo na igreja, perturbando e escandalizando os outros, certamente não pode ser chamado assim, pois os anjos demonstram grande devoção na igreja, devido à infinita majestade daquele que nela habita. Não estaria longe da verdade aquele que, por essa conduta sua, o chamasse de demônio em vez de anjo, pois só os que são instigados pelo Maligno agem de maneira tão irreverente. Diz Santo Agostinho: “Alguns entram na igreja instigados por Satanás, pois, além de não rezarem, falam, riem, brincam e cometem outras iniquidades e, portanto, logo seguirão seu líder para os tormentos eternos.” 

Na verdade, quase poderíamos pensar até que essas pessoas são piores que os demônios, pois estes, de acordo com o testemunho de São Tiago, creem e estremecem, mas tais pessoas não tremem diante de Deus, seu Juiz, e ousam ser insolentes e audaciosas. Tenha cuidado, pois virá o dia em que Ele, agora escondido sob a aparência de pão, será o seu Juiz; Ele a quem você agora ofende com tanta maldade. Como se sentirá então, quando vir que não lhe prestou a devida honra na igreja, só lhe tendo causado desgosto? Certamente haverá de estremecer diante dele mais que os próprios demônios.

II. São Guido estava satisfeito com sua pobreza, e não se queixava nem murmurava contra Deus ou contra os homens. O Todo-Poderoso dá a alguns uma abundância de bens terrenos, enquanto outros sofrem por falta deles. “O Senhor é quem empobrece e enriquece” (1Sm 2, 7). Os ricos não têm motivo para vangloriar-se, orgulhar-se, elevar-se acima dos outros, nem desprezá-los, porque as riquezas são dons de Deus, esmolas do Senhor do céu e da terra. Os pobres não têm razão para murmurar contra Deus, nem para invejar os ricos, porque Deus não lhes fez mal algum ao recusar-lhes as riquezas. Ele não é obrigado a concedê-las a ninguém. 

Os ricos devem evitar pôr o coração em seus bens, segundo a advertência do salmista: “Se as riquezas aumentarem, não prendais a elas o vosso coração” (Sl 61, 11). Não devem amá-las em excesso, pois está escrito: “Não há coisa mais iníqua do que amar o dinheiro; o que o ama venderia até a sua alma” (Eclo 10, 9). O pobre não deve entristecer-se demais por causa da pobreza, mas consolar-se com as palavras de Tobias: “Não temas, meu filho; é verdade que vivemos pobres, mas teremos muitos bens, se temermos a Deus, se nos desviarmos de todo o pecado, se procedermos bem” (Tb 4, 23). Deve ter a certeza de que é para o bem dele que Deus lhe recusou as riquezas, porque não eram benéficas para sua salvação. Se o pobre Lázaro tivesse possuído as riquezas do rico, acaso não teria se condenado? O pobre deve, portanto, fazer da pobreza uma virtude e suportar pacientemente o peso dela, como fez São Guido, a exemplo de Cristo. 

O mesmo exemplo deve animá-lo nos momentos de desânimo. O pobre não deve tentar remediar a sua pobreza com meios ilícitos ou ofendendo a Deus; antes, deve levar uma vida cristã, trabalhar com diligência e confiar em Deus, que certamente não o abandonará. Se, porém, vier a definhar e morrer de miséria, deve pensar que é melhor perecer na pobreza, como Lázaro, e ir com ele para o Céu, do que viver por algum tempo na riqueza, como o epulão da parábola, e depois ser sepultado no Inferno. 

O rico, por sua vez, deve evitar o mau uso de suas riquezas e empregá-las de acordo com a vontade do Todo-Poderoso, que lhe pedirá contas delas com rigor. Deve ser compassivo e generoso com os pobres, para não ter o mesmo destino que o rico do Evangelho. São Basílio diz que Deus dá a uns a riqueza e a outros a pobreza, para que aqueles consigam a salvação pela esmola e estes pelo exercício da paciência. Se os ricos não agirem de acordo com as intenções do Todo-Poderoso, experimentarão a verdade destas palavras de São Tiago: “Ide agora, ricos, chorai e soltai gritos por causa das misérias que virão sobre vós; juntastes tesouros nos últimos dias” (Tg 5, 1.3). Escute também a terrível ameaça de Cristo: “Mas ai de vós, ó ricos! Porque tendes a vossa consolação (neste mundo)” (Lc 6, 24). Ai deles na vida! Ai deles na morte! Ai deles depois da morte, na eternidade! Diz o profeta Baruc: 

Onde estão os chefes das nações e os dominadores das alimárias da terra? Onde os que brincam com as aves do céu, que entesouram prata e ouro, em que confiam os homens cujos bens são inesgotáveis? Onde os que lavram a prata e andam afadigados, sem que fique vestígios das suas obras?

Respondendo a esta pergunta, ele diz: “Desapareceram, desceram aos infernos, e outros levantaram-se em seu lugar” (Br 3, 16-19).

Referências

  • Extraído, traduzido e adaptado passim de: Lives of the saints: compiled from authentic sources with a practical instruction on the life of each saint, for every day in the year, v. 2. New York: P. O’Shea, 1876, p. 329ss.

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