Quem de nós não gostaria de voltar atrás e testemunhar em primeira mão certos momentos da história da Igreja — certos momentos decisivos?
Eis alguns dos meus.
Na véspera da Batalha de Lepanto, sem levantar a voz, Dom João de Áustria silenciou seus almirantes que brigavam. “Cavalheiros”, ele disse, “o tempo para se aconselhar já passou, agora é a hora da guerra.” Imagine só o olhar aturdido no rosto de Sebastião Veniero, veterano de Veneza, com três vezes a idade de Dom João.
Ou imagine ouvir as carmelitas de Compiègne cantando o Veni Creator Spiritus enquanto caminhavam, em procissão, para o cadafalso. Dias depois cessou o Terror. Imagine ainda assistir à pequena Caterina Benincasa, com típica determinação sienense, dizer ao Papa Gregório XI, comodamente instalado em Avinhão: Esto vir!, “Seja homem!”, e mandá-lo de volta para Roma… Grandes momentos, todos esses.
Eis aqui mais um para fazer arder o coração. Imagine estar presente na reunião do Concílio de Niceia. Ver o esplendor da corte de Constantino. Ver os heroicos sobreviventes da perseguição de Diocleciano ostentando suas cicatrizes (talvez até comparando-as entre si, com um pouco de bravata, como os homens costumam fazer), alguns sem olhos e outros sem línguas. Ver São Nicolau acertar um golpe no maxilar do heresiarca Ário. Ver o bispo Alexandre, de Alexandria, defendendo a divindade de Jesus Cristo. E ver, em meio a tudo isso, um brilhante diácono, sem sequer ter chegado aos trinta anos, com os olhos ardentes e o coração cheio de confiança em Deus, chamado… Atanásio.
Santo Atanásio. Este homem foi decisivo.
Não quero dizer com isso, simplesmente, que ele foi bom em tomar decisões — embora ele tenha sido também —, mas sim que, no momento em que “o mundo inteiro, surpreso, se viu ariano”, como disse São Jerônimo, Deus levantou um homem para portar com bravura o estandarte da ortodoxia. Como todos os heróis que a história depois trata de colocar em situações decisivas, Santo Atanásio superou a própria vida. Entrou para a história, como se costuma dizer.
Sua biografia é, de fato, digna de uma epopeia. Atanásio foi sacerdote por mais de meio século, tendo servido como bispo de Alexandria, a sé de São Marcos, por quarenta e cinco anos. Conheceu cinco papas e cinco imperadores. Suportou cinco exílios, totalizando aproximadamente duas décadas. Seus exílios e aventuras levaram-no por toda parte do Império: desde Roma, no sudoeste, até a germânica Tréveris, no noroeste; e de Constantinopla e Niceia, no nordeste, até Tiro, Alexandria e os desertos do sudeste.
Sua mente foi aguçada em meio aos padres da Escola de Alexandria, onde a Verdade revelada e o pensamento grego se uniram para dar à cristandade a primeira fórmula extrabíblica capaz de explicar, na medida do possível, o insondável mistério da relação entre o Pai e o Filho, a Primeira e a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade: os dois são homousion, ou, como nós católicos rezamos no Creio, “consubstanciais”.
Em nossa época miserável, é difícil conceber pessoas comuns brigando por uma questão teológica, mas levar nossas mentes de volta a tal época pode ajudar. As perseguições dos primeiros três séculos de Igreja deram têmpera ao coração da Esposa de Cristo. As heresias inoportunas, que explodiram justamente quando a Igreja passou a se ver livre da tirania política, ameaçavam romper essa consistência. Os fiéis reagiram à heterodoxia de Ário e de seus seguidores com multidões amotinadas nas ruas.
Se a inteligência de Santo Atanásio foi formada em Alexandria, seu coração foi forjado depois, na companhia de Santo Antão do Deserto e dos ascetas que formavam uma comunidade em torno dele. Os primeiros monges solitários, cujas práticas Atanásio traria a Roma em seu segundo exílio (quase dois séculos antes de São Bento), levavam bem a sério as palavras de Jesus ao homem rico: “Vai, vende tudo o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no céu; depois, vem e segue-me” (Mc 10, 21).
Santo Atanásio seguiu Nosso Senhor, nas situações favoráveis e nas desfavoráveis. Niceia deveria ter resolvido a questão, mas o presbítero líbio Ário amava demais os holofotes sob os quais suas novidades teológicas o haviam colocado. Alto, magro e com o cabelo meio embaraçado, ele tinha um modo de falar peculiar e sedutor, que atraía especialmente a atenção das mulheres. Cultivava com cuidado a aparência de alguém que levava uma vida severamente austera. Foi o principal promotor, se não o próprio autor, da maior ameaça que a Igreja já havia enfrentado e enfrentaria até a revolta protestante: a heresia segundo a qual o Filho passou a existir, sendo criado por Deus Pai.
É fácil ver aonde tudo isso leva: uma criatura pode mudar. Se uma criatura pode mudar, ela pode pecar. Se a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade foi criada, ela poderia pecar. Essa heresia, para dizer a verdade, não desapareceu totalmente. Trata-se de um princípio mantido hoje por mórmons e por testemunhas de Jeová.
Na época de Atanásio, porém, essa heresia não estava confinada aos seguidores de uma espécie de “Igreja Adventista do Sétimo Dia”. O arianismo havia seduzido a maior parte do episcopado, e até o Papa Libério foi forçado a assinar uma fórmula semiariana. Ário teve um fim trágico, sofrendo uma morte tão indigna que qualquer homem temente a Deus teria visto nisso um castigo divino, mas já era tarde demais. A heresia havia tomado conta dos palácios do poder, sejam os seculares sejam os religiosos. Inseparáveis como eram, no século IV, a Igreja e o Estado, a heresia ameaçou, ao mesmo tempo, a salvação eterna das almas e a paz temporal do Império.
E no olho do furacão estava sempre Santo Atanásio, cuja fortaleza e perseverança incendiaram os corações de seu rebanho. Em duas ocasiões, quando os imperadores mandaram bispos arianos para invadir a sé de Atanásio, os fiéis de Alexandria cuidaram do assunto com suas próprias mãos.
Uma corja infindável de caluniadores agiu para tentar desacreditar Atanásio. Se não podemos contestar os argumentos de um homem — eles pensavam —, ataquemos o seu caráter. Suas acusações eram as mais fantasiosas. Diziam que ele havia decepado a mão de um certo bispo, de nome Arsínio, para usá-la em ritos de necromancia e, para apanhá-lo, chegaram a forjar uma mão seca durante um julgamento público. Quando Atanásio mostrou o bispo, supostamente aleijado, vivo e passando bem, ele se divertiu um pouco com a situação: “Talvez Arsínio tenha nascido com três mãos?”, ele sugeriu, com um sorriso.
Ele violentou uma irmã, eles diziam. E arranjaram uma mulher para contar em detalhes tudo o que ela havia sofrido nas mãos de Atanásio. Um dos seus, então, passando-se por Atanásio, aproximou-se da moça. “Então eu fiz a você isto e isto?”, ele perguntou. “E isto?” “Sim, você fez!”, a garota respondeu, antes de perceber que havia sido enganada. De tanta vergonha, ela fugiu do julgamento.
Ainda assim, as acusações não cessavam. Quando tudo havia falhado, então, ele foi acusado de simplesmente não se dar bem com as pessoas: era uma pessoa “divisiva”. Como São Thomas More, que enfrentou a outra grande provação da Igreja doze séculos depois, a Atanásio pouco importava “se dar bem” com os outros. Sua preocupação era com a Verdade. E, a exemplo do santo inglês, Atanásio teve a coragem não somente de sofrer pela Verdade, mas também de agir sozinho.
Em sua obra Arians of the Fourth Century [“Arianos do Século Quarto”, sem tradução para o português], o bem-aventurado Cardeal Newman disse que foi Atanásio, “depois dos Apóstolos, um dos principais instrumentos por meio dos quais as verdades sagradas do cristianismo foram defendidas e transmitidas para o mundo”.
Além dessa obra de Newman — que é uma empreitada um pouco mais pesada —, os católicos que quiserem compreender melhor a grandeza de Santo Atanásio podem começar com a “Vida de Santo Antão”, escrita por ele mesmo e, depois, com seu livro sobre “A Encarnação do Verbo” — um favorito de C. S. Lewis. Sobre Atanásio, o autor das “Crônicas de Nárnia” escreveu que “só um gênio poderia, no século IV, ter escrito de modo tão profundo a respeito de um assunto como esse e com uma tal simplicidade clássica”.
Atanásio conclui esse seu trabalho, a propósito, com as mesmas palavras pelas quais ele tão ardorosamente viveu:
Para entender corretamente as Escrituras, é necessário ter uma vida reta e uma alma pura; e, para a virtude cristã guiar a mente, é necessário apegar-se, tanto quanto pode a natureza humana, à verdade referente ao Verbo de Deus. Ninguém é capaz de entender a doutrina dos santos, a menos que tenha uma mente pura e procure imitar-lhes a vida… Quem quer que deseje entender a mente dos escritores sacros deve, em primeiro lugar, purificar a própria vida e aproximar-se dos santos reproduzindo os atos que eles praticaram. Só assim, unindo-se assim a eles na comunhão de vidas, será possível entender as coisas que lhes foram reveladas por Deus e, escapando do perigo que ameaça os pecadores no julgamento, receber o que lhes está reservado no Reino dos céus.
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