Tornou-se costume entre os intérpretes [1] perguntar se a mulher pecadora referida por Lc 7, 37 tem alguma relação com Maria Madalena (cf. Lc 8, 2; 24, 10; Mt 27, 56-51; 28, 1; Mc 15, 40-47; 16, 1-9; Jo 19, 25; 20, 11-15), com Maria irmã de Lázaro (cf. Lc 10, 39-42; Jo 11, 1-33; 12, 1-8), ou com ambas. O motivo da questão se toma, por um lado, do episódio da unção (cf. Lc 7, 36ss; Jo 12, 1), donde parece seguir-se que a pecadora é irmã de Lázaro; por outro, da semelhança de vida (cf. Lc 7, 37; 8, 2b; Mc 16, 9), donde parece seguir-se que a pecadora é Madalena; por último, da identidade de nome, donde parece seguir-se que Maria de Betânia é também Maria de Magdala.

História do problema. — Deixando de lado os que opinam que a questão é insolúvel [2], encontramos entre os autores três soluções principais: a) alguns defendem que se trata de três mulheres distintas [3]; b) outros, que se trata de duas; c) outros enfim, que se trata de uma única mulher, designada no Evangelho de várias formas [4]. Igual diversidade — antes, até maior — houve entre os antigos, de modo que, não obstante o dito por alguns exegetas [5], não se pode invocar a tradição patrística em apoio definitivo de qualquer das três soluções. Além disso, nenhum Padre apela à fé ou à tradição da Igreja em favor de sua própria opinião [6].

Na Igreja latina, de São Gregório Magno (✝ 604) até os nossos dias, defendeu-se com consenso verdadeiramente unânime a identidade entre as três [7]. Tal consenso se deve à autoridade deste Pontífice [8], uma vez que, antes dele, os Padres latinos defenderam opiniões contrárias, chegando alguns a mudar mais de uma vez de parecer (v.g., São Jerônimo e Santo Agostinho). Os escritores gregos distinguiram as três mulheres, e alguns parecem ter defendido a existência de quatro, porque distinguiam também a unção referida por Mt 26, 6 e Mc 14, 3 da referida por Jo 12, 3, atribuindo cada uma destas três unções a tantas outras mulheres distintas, das quais Madalena diferiria como a quarta.

Argumentos. — Vejamos os argumentos exegéticos em favor de cada uma das soluções:

“Maria Madalena”, por Carlo Dolci.

1.ª solução: três mulheres.a) A mulher pecadora não é nem irmã de Lázaro nem Maria Madalena: α) porque os evangelistas a apresentam como desconhecida e jamais lhe dizem o nome, ao passo que das outras duas, conhecidas e próximas de Cristo, se fala muitas vezes no Evangelho; além disso, β) não há indício algum que permita afirmar que Maria irmã de Lázaro foi pecadora pública (cf. Lc 7, 37); γ) Madalena, por sua vez, é explicitamente contraposta à pecadora porque, narrado o arrependimento desta, cujo nome não é revelado, logo em seguida (cf. Lc 8, 2) se fala de Madalena como de pessoa conhecida entre as mulheres que seguiam a Cristo; δ) embora se diga que Madalena foi possuída por sete demônios (cf. Lc 8, 2; Mc 16, 9), nunca se diz ou sugere nada sobre um suposto passado vergonhoso, enquanto que na narração da pecadora não se vê um só vestígio de possessão; ora, os evangelistas costumam distinguir nitidamente a possessão do estado de pecado; logo… 

b) Maria irmã de Lázaro não é Maria Madalena: α) em razão do nome, dado que tanto Lucas como João, sempre que falam da irmã de Lázaro, a chamam simplesmente de Maria (cf. Lc 10, 39; Jo 11, 1ss; 12, 3) e quando falam de Maria Madalena não dão sinal algum de que se trata da mesma mulher; β) em razão do lugar em que viviam ou do qual procediam, pois a irmã de Lázaro era de Betânia, vilarejo próximo de Jerusalém (cf. Jo 11, 1), ao passo que Madalena, assim chamada por vir (provavelmente) de Magdala, às margens do lago de Genesaré, é contada entre as mulheres que com o Senhor subiram da Galileia a Jerusalém (cf. Mt 27, 55; Mc 15, 41; Lc 23, 55) e com Ele percorriam as cidades da Galileia (cf. Lc 8, 2).

2.ª solução: duas mulheres. — Os defensores desta opinião afirmam que a irmã de Lázaro e Maria Madalena são a mesma pessoa, distinta da mulher pecadora (v.gr., Calmet, loc. cit.; Patrizi, In Mc [Friburgo, 1862] 222; Belser, Joh. 338; L. Murillo, S. Juan, 373 adn. etc.); para outros, no entanto, a pecadora e a irmã de Lázaro é que seriam a mesma pessoa (v.gr., Knabenbauer, In Matt. II, 405s).

3.ª solução: uma única mulher.a) O sentir tácito da Igreja inclina a essa parte (Maldonado); cf. o Ofício antigo de 22 de jul., de Santa Maria Penitente [9]. — b) Nas três se vê a mesma índole generosa, aparece o mesmo amor ardentíssimo a Cristo; em todas transparece aquela que muito amou, a que escolheu a melhor parte, a que, triste e chorosa, buscava o Senhor etc. [10]. — c) O fato de terem saído de Madalena sete demônios não demonstra, necessariamente, que ela fora pecadora, embora provavelmente o indique. — d) As palavras: a que ungiu (Jo 11, 2: ἡ ἀλείψασα) não pode referir-se à unção feita em Betânia (cf. Jo 12, 3ss), que ainda não fora mencionada, mas a uma unção anterior, qual seja: à referida por Lc 7, 37. — e) Que Lc 7, 36-50 fale da pecadora como de uma pessoa desconhecida e logo adiante, em 8, 2, de Maria chamada Madalena não prova que são duas mulheres distintas; nada impede, v.gr., que o evangelista, ao falar da pecadora, tenha julgado mais prudente omitir-lhe o nome. — f) As cenas descritas por Lc 7, 36ss e Jo 12, 3ss são tão parecidas (alabastro, enxugar os pés com os cabelos etc.), que não poderiam ser repetidas senão pela mesma mulher.

Conclusão. — O testemunho dos Padres, tomado isoladamente, não é muito favorável à identidade entre as três mulheres. As razões exegéticas pesam mais a favor da distinção entre elas [11], excetuando talvez Jo 11, 2 (ἡ ἀλείψασα), que parece sugerir a identidade de duas (não de três). Como não há razões conclusivas para nenhuma das soluções, e como a Igreja nunca definiu nada a esse respeito, há a liberdade de opinião. — Seja como for, a sentença segundo a qual Maria Madalena, Maria irmã de Lázaro e a pecadora são uma e a mesma mulher pode ser admitida como a mais provável, porquanto não contradiz o texto evangélico, tem seus defensores entre os antigos e não implica dificuldades tão sérias, a ponto de debilitar o valor desta antiga e venerável tradição (cf. Corluy, p. 206s), de algum modo acolhida pela própria Igreja em sua Liturgia.

Referências

  • Este texto é uma tradução adaptada, com acréscimos e omissões de nossa equipe, de H. Simón, Prælectiones Biblicæ. Novum Testamentum. 6.ª ed., Turim: Marietti, 1944, vol. 1, p. 569ss, n.398ss.

Notas

  1. Cf. Maldonado, In Matt. 26, 6s; 27, 56; Calmet, Dissertatio in tres Marias, Comm. VII 451-60; Corluy, In Ioh. 245-61; K. Sickenberger, Ist die Magdalenenfrage wirklich unlösbar?, in BZ 17 (1965) 63-74; A. Lemonnyer, L’onction de Béthanie, in: Rech. sc. relig. 18 (1928) 105-17; P. Ketter, Die Magdalenenfrage, Trier 1929 (= Pastor bonus 40 [1929] 101-18.203-14.264-85); Prat, Jésus Christ II, 501-6; U. Holzmeister, S. Maria Magdalena estne una eademque cum peccatrice et Maria sorore Lazari?, in: VD 16 (1939) 193-9.
  2. J. B. Nisius, art. “Maria Magdalena”, in: Kirchliche Handlexikon 2 (1917) 822; A. Durand, St. Jean 309.33; (ao que parece) Prat, loc. cit.
  3. Faber Stapulensis (Lefèvre d’Etaples), De Maria Magdalene, Parisiis 1516; Salmerón, t. 4, tr. 6; G. Estius, Calmet, que diz ser esta a opinião mais comum entre os doutores de seu tempo; Lagrange, loc. cit. 531; St. Luc., 235s; Holzmeister, ll. cc.; Sickenberger, loc. cit.; Leben §92.93; Innitzer, Ioh. 334-7; Ketter, loc. cit.;Buzy, Paraboles 239-42; Marchal, Lc 106; Renié, Manuel, IV, 318, adn. 3; Tillmann, Ioh. 231s; Schmid, Lk i. l.; Lauck, Joh. 291.
  4. Quase todos os ocidentais após São Gregório Magno; J. B. Solerius (du Sollier), Acta Sanctorum, ad 22 Iul. (jul. 5, 187-225); Corluy, loc. cit.; M.-J. Ollivier, Revue Thomiste 2 (1894) 585-613; Didon, Jésus-Christ I, 352-5; Le Camus, Les Origines…, II, 293ss; Fouard, Vie…, I, 339-41; Kaulen, Kirchenlexikon VIII, 735-8; K. Kastner, BZ 13 (1915) 345; Lesêtre ap. Vigouroux Dict. IV, 809-18; Cladder, Unsere Evangelien, 173s; Lemonnyer, loc. cit.; Simón; Schuster-Holzammer, Historia, II, 201s; G. Mezzacasa, “De tribus et unica Magdalena”, in: Perfice Munus 3 (1928) 434-8. Entre os acatólicos, Bernard, St. Joh. II, 410-14.
  5. Cf., v.gr., Maldonado, In Lc 7, 3: “opinião constante de todos os antigos autores”; Didon, Jésus-Christ, I, 352: “uma tradição quase unânime”.
  6. Investigou com grande acuidade este aspecto da questão La Grande, Jésus a-t-il été oint plusieurs fois et par plusieurs femmes?, in: RB NS 9 (1912) 504-32; com maior amplitude U. Holzmeister, “Die Magdalenenfrage in der christlichen Ueberlieferung”, in: Zeitschr. für kath. Theol. 46 (1922) 402-22.556-85; mais compendiosamente Ketter, loc. cit., c. 34-43.
  7. Houve “muitos autores” (v.gr., Bossuet, Calmet, Tillemont) que distinguiram duas ou três mulheres, mesmo depois que a Faculdade de Teologia de Paris, a “Sorbonne”, declarou no ano de 1521 que se deve sustentar a sentença que defende a unidade (cf. Holz., loc. cit., 199).
  8. Holzm. VD, loc. cit., 199, explica como São Gregório chegou a essa conclusão.
  9. A oração antiga para a sua festa diz: Beátæ Maríæ Magdalénæ, quǽsumus, Dómine, suffrágiis adjuvémur: cuius précibus exorátus, quatriduánum fratrem Lázarum vivum ab ínferis resuscitásti: Qui vivis et regnas…, “Sejamos assistidos, Senhor, vo-lo pedimos, pelos sufrágios de Santa Maria Madalena, por cujas preces fizestes ressurgir vivo dos infernos seu irmão Lázaro, morto havia quatro dias”.
  10. Cf. Le Camus, Vie de J.-Ch. III, 31ss.
  11. O argumento tomado da índole generosa das três mulheres é de todo artificial. É bastante semelhante a índole de Madalena e da pecadora, mas Maria irmã de Lázaro é uma mulher quieta e contemplativa (cf. Lc 10, 39ss), o que torna difícil imaginá-la a percorrer com o Senhor e os Apóstolos toda a Galileia, como se lê a respeito de Madalena (cf. Lc 8, 1s). O argumento tomado da Liturgia, segundo os próprios especialistas na matéria, tampouco prova nada de modo conclusivo.

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